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Em épocas banhadas pela tragédia como a nossa, muito é dito, com razão, sobre virtudes e vícios. Coragem, covardia, disciplina, prudência e descaso aparecem no horizonte como um discurso comum e justificado.
Entretanto, uma virtude, tipicamente trágica, deveria ser lembrada em momentos como este em que podemos nos perder em fetiches como o culto do home office, do novo normal ou de cozinhar brócolis no Instagram. Refiro-me à virtude da reverência.
A propósito, a leitura do ensaio "Reverence, Renewing a Forgotten Virtue", ou reverência, retomando uma virtude esquecida, numa tradução selvagem, de Paul Woodruff, que saiu pela editora Oxford University Press há 19 anos (e ainda está sem tradução no Brasil), pode ser um bom guia para essa discussão.
O autor chama atenção para o fato de que a reverência não é "mera" virtude religiosa, mas, antes de tudo, virtude política e se refere ao convívio social.
Uma sociedade que nada reverencia ou que reverencia "ídolos ocos" tipo sucesso, dinheiro, poder (aqui tocamos no combate do velho hebraísmo bíblico à idolatria), tende ao vazio de sentido.
A reverência gera sentido na vida individual e coletiva, produzindo melhores condições éticas entre as pessoas. Convida-nos à humildade.
Com a boçalidade estrutural erguida à condição de ferramenta emancipatória, já identificada de modo claro pela literatura russa nos anos 1860, e retomada pela boçalidade da contracultura dos anos 1960 no Ocidente (atrasado cem anos em relação à Rússia), fica difícil valorizar a reverência por considerá-la truques do patriarcado ou dos opressores da hora. A boçalidade chique virou um ativo.
Voltando ao momento trágico em que vivemos, se alguém me perguntasse o que eu gostaria que ficasse como saber pós-pandêmico (o que eu não acredito que acontecerá), eu diria que aprendêssemos a reverenciar a pandemia como materialidade de nossa insignificância.
Aviso aos inteligentinhos, que agora se revestem da retórica de uma ciência de ocasião, que "segurem seus cavalos", como se diz em inglês.
Com a sociabilidade retardada das redes sociais e sua semântica literal, normal em crianças de cinco anos, mas signo de estupidez estrutural em adultos, é sempre importante lembrar que reverenciar a pandemia nada tem a ver com dizer que ela seja legal. Estamos aqui longe das margens da polarização histérica do mundo em que vivemos.
Reverenciar a pandemia é ver nela o "eterno retorno do mesmo" que dizia Nietzsche no século 19. É reconhecer nela a força da contingência que molda nossas vidas e que sempre volta a nos cercar. E ver nela a razão para nosso ancestral terror da contingência, como dizia Mircea Eliade, historiador das religiões do século 20.
O contemporâneo é ignorante para com a realidade da contingência, achando que esta pode ser contida para sempre com seu marketing de causas.
Por outro lado, reverenciar nada tem a ver com romantizar a pandemia. Romantizar a pandemia é achar que ela nos quer ensinar a ser vegetarianos, a revalorizar a família ou o cotidiano distante da produção materialista.
A pandemia é cega, silenciosa, sem intenção, vem e vai ao saber do nada. Para ela, não existimos simplesmente. Talvez só como hospedeiros da reprodução de um vírus que não tem consciência do que faz.
De fato, para nosso narcisismo estrutural (aliás, "estrutural" é a palavra da moda, né?) e sua ridícula economia da autoestima, imaginar que a natureza não vê nada, nem mesmo a vã espécie humana, é demais.
Diria que, para além da falta de empatia para com o sofrimento das pessoas demonstrada pelo presidente da República, ficou claro no seu comportamento, exatamente, a total ausência de reverência pela pandemia.
O sucesso técnico moderno acabou por produzir uma ignorância em nós que nunca existiu antes. Somos os boçais históricos do sucesso.
Nada disso tem a ver com divinizar a pandemia como evento apocalíptico. Tem a ver com nos recolocar em nosso verdadeiro lugar cósmico: em nós, o pó tomou consciência de si mesmo.
O coração da pandemia é cego e silencioso como o Universo. É hora de ler Eclesiastes.