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Suicídio é um tabu. É o comportamento humano que menos compreendemos, que mais traumatiza, que é condenado por diversas religiões. Tentamos compreender como alguém chega a esse ponto, por que faz. Todo mundo já ouviu de tudo sobre isso. Problemas de saúde mental e dificuldades na vida são sempre colocados como motivos. Mas será que é tão simples? Fosse assim, sobrariam quantos vivos?
Foi noticiado pelos serviços de saúde que houve aumento do número de suicídios e automutilações de jovens desde o início da pandemia. Abrindo meu coração, não sabia como noticiar isso. Sou da geração de jornalistas que não noticiavam suicídio, a não ser quando fosse de alguém famoso ou autoridade. Os dados científicos que tínhamos naquela época indicavam que a notícia sobre um suicídio incentiva outros.
A ciência evolui rápido. Descobriu-se que o problema não é falar sobre suicídio, é como se noticiava. A questão é que eu não sabia como falar e parece que a era digital vai nos obrigar a aprender. Outro dia fiz um artigo pisando em ovos sobre um suicídio de um adolescente, que já era público. Mas agora soube de algo que jamais imaginei. Um grupo na internet que incentiva jovens ao suicídio para vender os remédios que eles vão usar no ato. Já há mortes.
Não pude pensar em outra expressão, coloquei no título até: a marca da maldade. Como descrever esse tipo de atuação na sociedade? Soube da história por uma reportagem do Correio Braziliense. A polícia já prendeu alguns dos criminosos envolvidos. Os relatos das famílias são carregados de uma dor descomunal e um pedido claro por justiça. Diante de casos assim, imaginamos que a vítima teria algum tipo diferente de fragilidade, não são todos que correm o risco.
O fato é que sabemos pouquíssimo sobre o tema. A imprensa não cita, é um tabu social, um estigma. Um suicida passa a ser determinado por um único momento, o mais condenável e incompreensível de sua vida. O estigma espalha-se pela família. Muitas famílias guardam segredo, vivem uma dor que se adiciona à do luto. É pela evolução da ciência que concluiu-se que é debater sobre suicídio ajuda na prevenção.
Descobri, num congresso sobre o tema, que é possível a prevenção do suicídio e que não há pessoas suicidas, é um estado transitório que ocorre a muitos. Ouvimos falar em "ideações suicidas" pensando que trata-se de uma manifestação do inevitável. Não é. A imensa maioria das pessoas que tem ideações suicidas consegue enfrentar. Serviços como o telefone 188, do CVV, existem para intervir no momento em que é possível salvar alguém da tempestade perfeita. E daí eu descubro que tem gente no Brasil fazendo o oposto.
Depois de entender um pouco mais sobre suicídio, fiquei ainda mais revoltada com os criminosos. Eles foram presos ontem, em uma megaoperação da Polícia Civil do Distrito Federal. As investigações começaram depois do suicídio de duas amigas, uma de 22 e outra de 21 anos de idade em um intervalo de meses. A primeira fazia parte de um grupo que, além de incentivar, dava instruções precisas sobre como cometer suicídio sem errar e vendeu a ela uma substância tóxica. Descobriu-se que a amiga recorreu ao mesmo grupo. Uma das duas arrependeu-se logo após ingerir a substância, pediu socorro aos pais, mas não foi possível salvar.
Quando eu falo grupo na internet, tenho medo de parecer que trata-se de algo amador ou brincadeira de criança. Era uma quadrilha que atuava em no Distrito Federal, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo e Minas Gerais. Atuavam na Deep Web mas também tinham grupos em duas redes sociais legalizadas, WhatsApp e Telegram. Quatro criminosos já estão presos na Papuda e podem pegar penas de até 6 anos de prisão pelo incentivo ao suicídio, fora a da venda de substâncias ilegais.
Como nunca discutimos suicídio, pode parecer que não era um negócio tão promissor assim vender o veneno e ensinar filho dos outros a usar de forma a não ser possível o salvamento. Ocorre que suicídio é hoje a segunda causa de morte entre os jovens brasileiros, perdendo apenas para acidentes. O fundo do poço da perversidade já descobriu isso. Nós, como sociedade, precisamos desmistificar o tema e aprender que é possível salvar a maioria desde que saibamos como.
Geralmente associa-se o suicídio a fraqueza de caráter, problemas mentais irreversíveis ou uma situação de desespero diante de acontecimentos da vida. Não há nada isolado que justifique mas tendemos a buscar essa explicação. É mais comum que pessoas com problemas de saúde mental ou passando por um desespero cheguem ao momento da tempestade perfeita em que tiram a própria vida. A maioria não chega, se soubermos que é possível intervir, menos pessoas ainda chegarão.
Uma ligação para o 188 nesse momento inexplicável em que alguém decide tirar a própria vida pode salvar. Uma pessoa com ideações suicidas não as têm constantemente, é algo transitório e que pode ocorrer inclusive uma única vez. Acompanhamento psicológico dos problemas de saúde mental e em momentos muito difíceis da vida ajuda a evitar que o momento da tempestade perfeita chegue. Apoio e conversa francos sobre o tema dentro da família também são muito eficientes.
Imagine que, sabendo dessa inconstância das ideações suicidas, um grupo resolveu se aproveitar estimulando que a situação seja levada a cabo. Pior ainda, fornece os meios, ensina a fazer de modo irreversível, em que é impossível salvar. Nem quem volta à razão no último momento tem chance depois de ter contato com esse grupo. Não sei quantos limites mais veremos ser cruzados ao pisotear a importância e a sacralidade da vida.
Precisamos todos saber que é normal nos ocorrer pensamentos suicidas em algum momento, mesmo que sejam completamente contrários à nossa fé e nossos princípios. Isso também pode acontecer com as pessoas que amamos, inclusive as que parecem muito fortes e alegres - lembrem-se do ator Robin Williams. O diálogo aberto, principalmente em períodos de mudança de comportamento, é o primeiro passo para aprender a buscar ajuda. Não ter vergonha da situação já é um passo gigantesco e que efetivamente pode salvar uma vida.
Os 4 criminosos já estão presos, mas Facebook e Telegram têm novos assuntos para explicar. Redes Sociais colocam-se como mero instrumento para partilhar informações, comparam-se a redes telefônicas. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Rede telefônica não fica ouvindo e gravando todas as conversas, redes sociais sim. Por isso as redes telefônicas não têm o que denunciar, não sabem o que se conversa. Redes sociais além de saber usam para distribuir seus anúncios e manter pessoas mais tempo usando seus produtos.
Quanto mais a tecnologia evolui, mais precisamos entender de gente, da natureza humana. Escrever este artigo deu-me a oportunidade de aprender mais um pouco. Confesso, no entanto, que até agora não compreendo o funcionamento da mente de alguém que monta uma rede de incentivo a suicídios. Talvez tenhamos até de rever as penas que aplicamos hoje, criadas antes dessa possibilidade. Deixo ao final alguns links para você guardar e partilhar com quem precise.
Orientações da Agência Brasil sobre como lidar com o luto.
Centro de Valorização da Vida - CVV - telefone 188 em todo o Brasil.
O CVV fez uma série de vídeos direcionados especificamente a jovens e adolescentes: