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Tudo quanto é empresa precisa mudar o logotipo para uma bandeira de arco-íris no mês de junho. Quem não faz é obviamente homofóbico, transfóbico, fascista e morrer é até pouco perto do que será desejado por aí. Não tem jeito, pouco importa se junho é o aniversário da sua empresa. Ou bota a bendita da logomarca de defesa LGBT ou o cancelamento é serventia da casa.
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Certa vez, debatendo com um amigo muito religioso, critiquei a postura de colocar-se como moralmente superior aos demais quando conversava. Ele discordou. "Eu venho para a igreja e faço tudo isso aqui para sentir que sou superior mesmo, se fosse para ser igual, iria ao jogo do Corínthians", argumentou. Que Jesus não tenha ouvido, mas é fato que a regra é seguida à risca.
Em outro artigo, batizei de "deliriocracia" o processo de confusão entre autoajuda e militância que tem contaminado a sociedade brasileira. Grupos de ajuda mútua vêem redenção em ações restritas ao universo simbólico, mas os indivíduos são reconhecidos como inclusivos. Está na moda na minha área, comunicação. O marketing de grandes empresas virou refém desse processo psicanalítico.
Todo perverso sempre encontrará justificativa moral para praticar perversidade. A máxima valeu primeiro para paquitas de político, um grupo dedicado ininterruptamente a esculachar quem critique seu político de estimação. Agora vale também como forma de purgar a tal da "culpa burguesa".
Uma legião de ricos e bem nascidos que vivem como Rockefeller mas discursam igual Che Guevara na fase boliviana encontrou uma forma de viver a meritocracia. Claro que não vão abrir mão de nada e nem parar mesmo de querer mandar nos outros, também não vamos tão longe assim. Mas fingir nas redes que briga pela inclusão virou um bálsamo para espíritos aflitos por ter privilégios.
Eu trocaria na hora meus boletos pela aflição de ter nascido com muitos privilégios e a vida ganha. Aposto que você também. É uma bênção ter a tranquilidade de fugir da economia da emergência para investir em sonhos, legados, transformar vidas. Mas daí tem que trabalhar e é muito chato, ficamos mesmo só na lacração de internet, que espalhou-se pela elite cultural.
Para os donos da bola, nenhum posicionamento é suficiente. Esta semana atazanaram a Ivete Sangalo até ela ficar contra o presidente Bolsonaro. Ela foi lá no insta, deu uma saraivada de stories e disse que não se sente representada. Claro que é pouco. Agora estão criticando porque ela falou o mínimo e demorou. Ninguém é nem será jamais bom o suficiente. As grandes marcas já perceberam isso e estão se mexendo.
A Alemanha vai jogar contra a Hungria, que acaba de passar uma lei proibindo uso de situações com pessoas LGBT em material visto por crianças. É uma tendência que começa na Europa pela mão forte de Vladimir Putin e, tal qual seu conselheiro Alexandr Durgin, exerce forte influência em governos que aparentemente são do pólo político oposto.
O Parlamento Europeu fez-se de desentendido e isso, nessas circunstâncias, quer dizer que apóia a Hungria, bebendo da fonte russa. O contraponto de progressistas é jogar a bola para a opinião pública. A cidade de Munique pediu para que o estádio do jogo fosse iluminado como arco-íris em homenagem ao mês LGBT. Numa sinuca de bico que nem a União Europeia quer enfrentar, a Uefa lavou as mãos e proibiu a história alegando não fazer protestos políticos.
Tentar discutir questões humanas sérias no duelo entre populismo e lacração nunca deu certo. Mas não custa insistir no erro para tentar um resultado diferente. Foi estabelecida uma competição de qual marca lucra mais numa jihad de postagens e símbolos para proteger a população LGBT. Além de não ajudar ninguém que realmente precisa, o movimento dá a impressão de que há exagero nas reclamações. Isso pega e os políticos aproveitam.
Há clientes que começam a questionar as marcas. O caso mais famoso no Brasil é o do Carrefour, que lançaria uma campanha com linguagem neutra e tudo mais falando de igualdade racial. Daí, no dia do lançamento, os seguranças matam um cliente negro a socos em uma das lojas. Deu super certo a campanha, né? Fica muito claro tratar-se de um gasto inútil de marketing que irrita clientes, não significa posicionamento nenhum da empresa e não beneficia quem precisa.
O efeito colateral do exagero na publicidade é o cidadão comum acreditar que há exagero nas reclamações de pessoas reais que sofrem com preconceito. As pessoas ficam irritadas e confundem dramas humanos com lacração de quem lucra financeiramente ou emocionalmente com esses dramas.
Preconceito é um dos residentes permanentes da alma humana. Há pessoas que são injustiçadas por isso, não recebem as oportunidades que merecem, são escanteadas, são sistematicamente ofendidas. Nós podemos mudar isso e viver uma sociedade melhor. Grandes marcas dos Estados Unidos já perceberam que diversidade significa lucro, mas lacração significa dor de cabeça.
Um levantamento feito por Judd Legum e Tesnin Zekeria para a newsletter Popular Information mostrou que 25 grandes empresas investem em publicidade lacradora, mas financiam políticos com projetos firmes contra a patrulha identitária. Quanto mais a patrulha fica poderosa, mais gasto com publicidade lacradora é necessário. Só que nada jamais será bom o suficiente para a patrulha, nem quando passar dos limites daquilo que desejam os clientes da marca.
Recentemente, o Burger King meteu-se numa encrenca por usar linguagem neutra em uma publicidade. Perdoem-me os que trabalham no ramo, inclusive os da família, mas rede de junk food fazendo campanha por um mundo melhor não deveria nem ser cogitado. As pessoas vão a restaurantes de junk food entupir-se do que não presta, sabendo que faz mal.
Daí, você tenta enfiar uma linguagem neutra na cara do cliente que se afoga em hambúrguer de linha de produção. Não me parece o público adequado nem a forma adequada de falar do tema. Até porque, ignorantada por ignorantada, melhor a de quem pelo menos é cliente da marca. Linguagem de gênero neutro é algo lícito como protesto e provocação, mas é ridículo quando realmente se tenta impor. Claro que o público do Burger King reclamou e empresa voltou atrás.
Nas universidades, a patrulha de discursos já incomoda a ponto de gerar novas leis. Na internet, a patrulha identitária adota os mesmos métodos que condena nos políticos de extrema-direita. A "correção do comportamento" dos dissonantes é feita por meio de ataques direcionados até que a pessoa - ou empresa - não tenha como resistir. Mas pode porque é sempre por um bem maior.
O comportamento certo é fazer o que a patrulha manda. Se não fizer, sinto muito, qualquer linchamento é justificável. E, se alguém reclamar, vai ser linchado junto. Melhor todo mundo obedecer de bico fechado ou repetindo clichês, é pelo bem. E, assim, a marca que não se manifesta a favor do que a patrulha manda será alvo porque evidentemente é fascista.
Grandes marcas têm feito sistematicamente campanhas evidentemente superficiais, que nada têm a ver com o negócio, sem relação com os objetivos da empresa mas capazes de blindar contra ataques em enxame das patrulhas ideológicas. Já que estão pagando por isso, decidiram ao mesmo tempo financiar quem pode mudar isso, políticos conservadores.
O principal alvo dos legisladores conservadores tem sido barrar tratamentos sem comprovação científica defendidos pela militância trans, como a cirurgia de transição sexual em adolescentes. Trata-se de tratamento experimental criado para homens de meia idade que desejavam viver como mulheres e já foram documentados os efeitos colaterais quando se aplica a pessoas mais novas.
O problema do embate com a militância trans é que não há embate. Ou há agachamento completo a caprichos e abuso médico ou há cancelamento. Até a Chimamanda Ngozi Adchie, intelectual queridinha dos lacradores, foi publicamente acusada de transfobia e cancelada esses dias. Não há investimento capaz de impedir que a militância se vire contra uma marca.
O processo de cancelamento nos Estados Unidos é feito por ONGs que produzem índices próprios cujos regulamentos não são bem entendidos pelas pessoas. A Human Rights Campaign, HRC, maior organização de defesa LGBT dos EUA, criou o índice HRC. Empresas que apoiarem causas anti-gay, homofóbicas ou transfóbicas recebem zero. O problema é que qualquer discordância será rotulada como alguma fobia.
A gigantesca rede de farmácias CVS chegou a assinar o manifesto da HRC garantindo que se somava a outras empresas para garantir que não houvesse supressão de direitos da população LGBT. Ocorre que agora deram zero para a empresa e uma baita cancelada porque descobriram financiamento de políticos conservadores.
Como políticos financiados pela CVS Health estão envolvidos em legislações estaduais contra a cirurgia de redesignação sexual em adolescentes, a ONG tirou a empresa do topo do índice de Direitos Humanos. Agora eles estão com zero no HRC e foram publicamente inquiridos sobre parar de financiar os tais políticos porque isso é anti-gay. Não responderam.
Gigantes das telecomunicações também foram abordadas pela militância. Primeiro, foram parabenizadas por suas lindas campanhas publicitárias nas redes sociais falando do mês do orgulho LGBT. Afinal, só não faz quem é fascista, nazista, homofóbico e transfóbico.
As mesmas empresas que fazem anúncios lacradores apóiam ideias agora taxadas de transfóbicas pela ONG HRC. Também tiraram zero no índice de apoio à população LGBT. Cada uma das empresas doou, nos últimos dois anos, mais de US$ 1 milhão para políticos empenhados em criar novas regras para participação de mulheres trans em esportes universitários de alto rendimento.
Entre empresas que fazem o marketing mais lacrador possível mas apóiam políticos conservadores, alinhados com seus interesses comerciais e econômicos, estão as Big Techs Google, Facebook e Amazon. Eu não entendo que seja correto dar uma no cravo e outra na ferradura, fazer propaganda lacradora e apoiar políticas condenadas pelos lacradores. É por isso que eu não sou bilionária.
A confusão entre militância e autoajuda passou a denominar como militantes ou ativistas figuras autoritárias que negam a política. A intenção não é garantir direitos ou melhorar a convivência, mas impor regras no grito e na perseguição. Não há debate e convencimento, há agachamento ou esculacho. A dita luta por inclusão virou uma luta pelo poder de ditar regras. Aqui chegamos: nada dita regras com mais poder que o dinheiro. As empresas estão se mexendo.