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A desinformação é uma das armas de guerra mais tradicionais e antigas. Em 2014, Putin já exibiu o esplendor e a excelência de sua poderosa máquina de propaganda durante a invasão da Criméia. No ano seguinte, a ONU fez o primeiro grupo de trabalho especializado para impor regras a esse tipo de conflito. Agora a propaganda russa está mais forte e consolidada, ocorre que o mundo também descobriu como isso funciona.
Você não precisa entender de algoritmos nem de geopolítica da Rússia e Ucrânia para sentir os efeitos da máquina de desinformação de guerra. Conhece alguém incapaz de admitir não saber muito da região, que tem agido com raiva e uma tonelada de certezas? Pronto, estão aí os efeitos da desinformação de guerra. É o comportamento profundamente emocional e desproporcional. Isso chega ao mundo todo pelas redes.
Desta vez, Putin colocou sua máquina de desinformação para funcionar a todo vapor nos meses que precederam a invasão da Ucrânia. Ocorre que temos agora uma situação muito clara em que novos poderes entraram no jogo. Além das outras potências internacionais, as Big Techs e os grupos de cyberativistas mostram que vivemos um novo mundo, muito mais complexo. Um Elon Musk sozinho pode mudar os rumos de uma guerra.
Desta vez, a desinformação foi centrada em arrumar uma justificativa moral para a invasão do território da Ucrânia e o massacre deliberado de civis. Nenhum país é santo e nenhum governo é santo. Ocorre que não tem justificativa para a barbárie contra civis. Podemos ter a maior crise migratória do mundo desde a II Guerra Mundial, já são mais de 500 mil refugiados.
O que justifica fazer isso com as pessoas? Nada. Você verá a casta dos Che Guevara de apartamento bradando que foi necessário e explicando as razões. A primeira é que a Ucrânia seria nazista. A outra, mais nova, é que a Ucrânia é racista e não permite que negros fujam da guerra. São justificativas moralistas que servem para sinalizar virtude, não para explicar que vidas humanas sejam tratadas com desprezo, como se fossem efeitos colaterais.
Aliás, no meio da barbárie ainda resta humanidade. A vida é muito mais complexa que as certezas dos nossos intelectuais de nível Dollynho. Há soldados russos que estão se rendendo aos civis ucranianos que pegaram em armas. Em vários casos que começam a ser divulgados nas redes, eles são acolhidos, alimentados e colocados em contato com suas famílias na Rússia.
A equipe de Tecnologia e mudança social do Shorenstein Center da Universidade de Harvard fez uma espécie de "vacina" contra a guerra de desinformação. São 6 pontos que deveriam constar dos trabalhos jornalísticos para evitar que os leitores concluíssem com base em propaganda que circula nas redes. Todos eles são fatos importantes diante de argumentos manipulados.
- A GUERRA NÃO COMEÇOU AGORA - O conflito entre a Rússia e a Ucrânia já tem 8 anos de duração, começou em 2014 com a tomada da Criméia e teve episódios de violência e tensão até a invasão deste ano.
- A UCRÂNIA NÃO ERA PARTE DA RÚSSIA, COMO DIZ PUTIN - Putin tem um histórico de excelência no uso de desinformação em conflitos. Agora alegou que a Ucrânia seria parte da Rússia, o que nega completamente a história de duas nações próximas e diferentes entre si.
- A UCRÂNIA FOI UMA DAS FUNDADORAS DA UNIÃO SOVIÉTICA - É uma das repúblicas independentes que fundou a URSS e tornou-se independente dela em 1991. A história da Ucrânia, no entanto, remonta ao século IX.
- A UCRÂNIA NÃO É MEMBRO DA OTAN - O país é um aliado do bloco, não membro. Desta forma, o princípio de que o ataque a um dos membros seria um ataque a todo o bloco não se aplica ao caso da Ucrânia.
- CLAREZA NA TRAJETÓRIA DOS MANDATÁRIOS - Putin é presidente da Rússia desde 2012 e, entre 1999 e esta data, foi primeiro-ministro do país. Durante os 16 anos anteriores, foi chefe da KGB. Zelensky foi eleito para seu primeiro mandato em 2019 na onda da "nova política". É judeu.
- A UCRÂNIA NÃO TEM MAIS ARMAS NUCLEARES - O país entregou seu arsenal em 1994, num acordo que a Rússia já descumpriu duas vezes. As armas foram entregues em troca de proteção ao território por parte da Rússia.
A diferença deste conflito é a interferência de diversos outros poderes, para além das máquinas de desinformação. Sanções econômicas, decisões de Big Techs, financiamento por criptomoedas e a ação de grupos hackers de ambos os lados mudam completamente o equilíbrio de poderes num conflito. Ainda não é possível fazer uma análise completa, mas já temos monitoramento dessas ações em tempo real.
Eu tinha ouvido falar sobre uma ou outra sanção e vi muita gente fazendo avaliações precipitadas. Então conheci o trabalho do coletivo independente de jornalismo Correctiv, da Alemanha. Eles atualizam em inglês e alemão todas as sanções econômicas no mundo contra indivíduos e empresas devido à invasão russa na Ucrânia.
Sanções não existem só em tempos de guerra, como você vê no gráfico. Mas a comparação entre a reação de agora com a reação do início desta guerra, em 2014 na Criméia, é impressionante. Ouvimos falar que a Alemanha não deixaria funcionar um gasoduto que efetivamente está funcionando. Falaram do sistema SWIFT e das operações da Apple. Mas aqui falamos de algo muitíssimo maior.
Até o momento em que eu escrevi este artigo, havia 963 diferentes tipos de sanções contra indivíduos e empresas russas, vindas das mais diferentes partes do mundo. O monitor, que tem atualizações diárias, mostra uma realidade que se desenha aos poucos. O avanço da tecnologia dá mais poder aos já poderosos, só que também abre um flanco gigantesco de vulnerabilidade.
Um exemplo do poder antes jamais imaginado é Elon Musk. Alguém provocou o dono da Tesla nas redes sociais para dar à Ucrânia a internet via satélite de uma empresa dele. A Rússia estava sabotando os sistemas ucranianos, como já havia feito em 2014. Ele ligou internet via satélite de graça no país todo e isso é muita coisa numa guerra do século XXI. Um único homem poderoso pode mudar completamente os rumos de um conflito armado entre duas nações sem sequer pisar no local.
Por outro lado, também ficam os bilionários vulneráveis com a tecnologia. Bloquear o sistema SWIFT, por exemplo, é um baque no país todo e principalmente na vida de quem tem muito dinheiro. Observe também as sanções individuais aplicadas contra magnatas russos próximos de Putin e os poderosos do regime. Sacrifícios individuais diante de uma situação dessa podem gerar conflitos que antes não existiriam. Só num sistema bancário como o de hoje é possível tomar esse tipo de medida tão rapidamente e nessa escala.
Outro ponto são as sanções das redes sociais mirando em contenção da desinformação de guerra. Você deve ter ouvido falar de YouTube deixando de impulsionar as agências de propaganda do governo russo, como Ruptly e Sputnik. Ocorre que esse movimento de derrubada e retirada de alcance de conteúdo é maciço, no mundo todo. Se vai conter as operações de desinformação de guerra são outros quinhentos. Não creio que vá, mas é interessante para o marketing das Big Techs.
Mostrar proatividade para conter um dos maiores mestres da desinformação digital é sem dúvida um bônus de imagem para as Big Techs. Agora a crise chama Putin. Antes da guerra, elas é que estavam na berlinda da tentativa mundial de entender como fazer com que se submetam a leis. É uma oportunidade única para mostrar que nem precisa de lei, elas criam as próprias leis e isso funciona bem.
O número de sanções até o momento é impressionante e, de certa forma, um novo lado da desinformação como arma de guerra. Os ucranianos também já têm suas armas de desinformação para combater os russos. Além daquelas feitas pelo governo, existem ativistas cibernéticos de outros países que participam desse tipo de operação voluntariamente. Abaixo você vê um exemplo do grupo liderado pela ativista bielorrussa Yuliana Shemetovets.
Eu tenho dúvidas se diminuir o alcance das agências oficiais russas ou impedir que elas estejam em plataformas ocidentais combate mesmo a desinformação. Também há desinformação do lado ucraniano, é uma arma de guerra que todo país usa. Talvez educar as pessoas sobre este contexto fosse mais eficiente. Eu não vejo problema na existência de uma agência estatal russa, vejo problema é em jornalista brasileiro divulgando os posts dela achando que é mídia independente.
Todo o parque antialérgica da esquerda esteve esses dias nas minhas redes fazendo perguntas da profundidade de um pires. Perfis com cara de conteúdo questionavam se a "mídia liberal do ocidente é, por acaso, imparcial e isenta". Comparavam agências estatais russas com o New York Times e, pasme, até a Gazeta do Povo. Eu deixei. Ser imbecil é um direito e eu não sou ninguém para impedir esse pessoal de exercer com orgulho.
Minha posição, sempre voto vencido no jornalismo brasileiro, é a de acabar com a hipocrisia e dizer claramente o que pensamos. Onde tem um ser humano é impossível ter isenção, vemos o mundo pelas lentes das nossas experiências e valores pessoais. Qual a posição da Gazeta do Povo, por exemplo? Está aqui, com detalhes. Você pode concordar ou não, mas sabe qual é e isso torna muito mais fácil sua análise sobre o trabalho do jornal.
No mundo todo tem agência estatal de notícia, cada uma com a cara do país que representa. Temos a BBC e a Deustche Welle, também tratadas por muitos jornalistas como mídias independentes. Não são. Podem ter regras de funcionamento diferentes, não são um espelho da Sputnik ou Ruptly. E essa turma ainda precisa comer muito arroz com feijão para chegar no nível da nossa EBC.
Temos duas opções. A primeira é virar adulto e entender que as diferentes naturezas das coisas. A outra é viver desesperado por aprovação alheia e fazer condenações morais o dia todo nas redes. A conversa não é a diferença entre uma agência estatal e mídia privada mais, é sobre "ser isento", algo que só existe em cabeça de otário. No caso específico, a conversa é se o poder econômico pode tirar do ar a voz do poder político e em que circunstâncias.
Vimos até meses atrás um movimento em que a China impôs regras ao Linkedin e Yahoo a ponto de fazer as duas empresas desistirem de operar no país. Agora temos o oposto. Há uma guerra em curso e empresas globais, sem que seja exigido pelos governos de seus países de origem, resolvem impor sanções numa guerra. São as mesmas empresas também usadas como armas de desinformação na mesma guerra.
Não arrisco dizer quem está certo ou errado nessa, só observo e aguardo os resultados. Esses poderes tão impressionantes que surgem no nosso tempo seriam capazes de conter uma ameaça nuclear? Não sei. Qual é o limite exato da interferência desses novos poderes na vida do poder estabelecido da forma tradicional, como o de Putin? Vamos acompanhar dia após dia com apenas uma certeza: nesses tempos, a coisa mais difícil é ter certezas.