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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Brasil, um país mergulhado em leite condensado

(Foto: Gazeta do Povo)

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Avalie a sensação de alguém que juntou dinheiro a vida toda ao ver que pessoas da própria família torraram toda sua poupança em bobagem? Isso é a gente, povo brasileiro, todos os dias. Ainda bem que inventaram o computador e o jornalismo de dados para pelo menos a gente ficar com raiva das coisas certas. Pensar que a gente já ficou com raiva do Häagen-Daaz e da Nutella que o Michel Temer ia comprar para o Michelzinho no avião presidencial. Se bem que eu continuo com raiva de terem cogitado isso.

Essa semana eu já tinha tido a minha primeira desilusão com a história do Cadastro Positivo. Toda vez que alguém vem me falar de alguma coisa que precisa ser adjetivada como "positivo", já sei que eu vou me dar mal nessa história. Disseram que iria facilitar o crédito das pessoas, iria contar tudo aquilo que você fez de bom e não só o ruim. Daí o Congresso Nacional obriga todo mundo a compartilhar os dados com determinadas empresas particulares. E agora estamos diante do maior vazamento de dados da história, tudo vendido na deep web e usado por golpistas. Super positivo, né?

Mas confesso que nenhuma desilusão se compara à de saber que nosso país gasta R$ 15 milhões por ano com leite condensado para órgãos do Governo Federal. Leite condensado? Quem imaginava que o governo comprava leite condensado? Quer dizer, a gente compra leite condensado para o governo.

Impossível falar na iguaria sem lembrar das idílicas cenas do nosso presidente da República saboreando um saudável pão francês regado a leite condensado em suas lives eleitorais. Mas R$ 15 milhões num ano? É o que informa o jornal Metrópoles. Cheguei a pensar que é essa a razão pela qual Jair Bolsonaro mandou desligar o aquecedor da piscina do Planalto, que é solar. Agora se enche a piscina de leite condensado pago pelo contribuinte. Dinheiro bem gasto, um homem tão trabalhador merece seu descanso.

Tentei relembrar os inúmeros escândalos semelhantes, anteriores ao curioso caso da lagosta do Supremo Tribunal Federal. Em 2006, o ex-presidente Lula fez um gasto recorde com compras de supermercado para o Palácio, mas o total era de R$ 3,7 milhões no ano. Para se chegar à conta de R$ 77,3 milhões gastos em um ano de refeições da presidente Dilma Rousseff em 2014, foram unidas as contas do mercado, salários do pessoal de serviços, contas do avião presidencial e até as despesas com banho restaurador de prata nos utensílios domésticos. Comida mesmo custou R$ 16 milhões.

Está morando um batalhão do Exército com o presidente Jair Bolsonaro para gastar R$ 1,8 bilhão no mercado? É precisamente isso. O gasto une todos os órgãos federais e o que mais gasta é o Ministério da Defesa. Ah, bom, precisa mesmo alimentar as tropas, isso é um gasto nobre e necessário, ainda mais numa pandemia. A maior parte da conta de R$ 2.512.073, 59 em vinhos foi do Ministério da Defesa.

A diferença entre esse e outros escândalos é a qualidade dos dados. Até agora, o jornalismo conseguia fazer levantamentos em órgãos específicos e os casos de esbanjamento de dinheiro do contribuinte com luxo para altos funcionários públicos eram tratados como exceção. Viravam casos quase anedóticos, cancelava-se uma compra, mudava-se uma licitação. Pronto, problema resolvido. A partir do momento em que são colocados todos os dados juntos, vemos que o problema não é uma licitação, mas a forma de ver as compras públicas.

Até agora, a gente pensava que os figurões da República eram os que se achavam no direito de consumir luxo com dinheiro do povo. O leite condensado vai assumir o lugar da lagosta do STF no imaginário popular. Já tivemos a Nutella do Michelzinho, o canapé de caviar da Dilma, a adega do Lula, as viagens excessivas de FHC. Na época de Itamar Franco éramos felizes e não sabíamos. O escândalo era por coisa de menos e não coisa demais, sobretudo nada que a gente estivesse pagando.

No imaginário brasileiro, a conta do luxo com dinheiro público sempre fechou como uma continuidade infinita do Baile da Ilha Fiscal. Estava circunscrita àquelas figuras que, por estar em altíssimo nível, imaginam-se melhores que os demais. O jornalismo de dados nos apresenta a uma realidade ainda pior. Existe uma enorme confusão entre necessidade do serviço público e privilégio. Ela não foi corrigida nem durante uma pandemia, com o povo perdendo emprego e muita gente na penúria.

Um dos principais argumentos que ouvimos diariamente para justificar a privatização dos Correios é que a empresa custa anualmente 1/4 de bilhão de reais aos cofres públicos. O que a gente gasta com o supermercado do Governo Federal para o funcionamento de 7 anos dos Correios. Só que a gente nem sabia que esse gasto existia. São gastos executados por todos os tipos de funcionários, não apenas os eternos apaniguados políticos que imaginamos. As licitações são conduzidas por concursados e funcionários de confiança de todos os níveis. O conjunto da obra do Governo Federal foi gastar mais de R$ 2 milhões com chiclete no ano da pandemia.

Na hora em que a gente fica com raiva, tende a chutar o balde. Muita despesa que parece supérflua é necessária e vice-versa. Essas listas precisam ser analisadas com mais cuidado do que se faz no calor do momento. Há, no entanto, algumas distorções de prioridades que são gritantes. Todo o povo brasileiro teve de fazer imensos sacrifícios em 2020. Já não se mexeu nos salários do funcionalismo público, que passou a viver a pandemia numa condição financeira e psicológica mais segura. Não houve empatia suficiente para traçar uma diretriz de aliviar um pouco a carga do cidadão. Aliás, justamente o oposto, houve aumento de 20% nesses gastos.

A nossa vida normal é gastar, em um ano de pandemia: R$ 14 milhões com achocolatado, R$ 16,5 milhões com batata frita, R$ 8,8 milhões com bombons, R$ 1,7 milhão com chantilly, R$ 4 milhões com granulado de chocolate, R$ 13 milhões com frutas em calda, R$ 1,8 milhão com geléia de mocotó, R$ 45 milhões com embutidos, R$ 6,2 milhão com massa de pastel, R$ 1,6 milhão com mingau instantâneo, R$ 5 milhões com uva passa, R$ 2,2 milhões com sagu, R$ 13 milhões com sorvete, R$ 14 milhões com salgados diversos, R$ 14 milhões com temperos, R$ 31 milhões com refrigerantes, R$ 15 milhões com requeijão, R$ 45 milhões com queijo, R$ 3,6 milhões com queijo ralado, R$ 1,5 milhão com rapadura e R$ 6,5 milhões em pó para pudim apesar dos R$ 15 milhões gastos com leite condensado.

Seria cômico se não fosse trágico. Compra pública não pode ser feita por capricho ou porque o chefe quis. O critério da lista aparenta ser este. Há 5 princípios na administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, transparência e eficiência. É difícil ver os 5 andando juntos em todos os momentos e produzir uma conta de R$ 1,8 bi num ano de pandemia com ítens como chiclete, leite condensado, vinho e rapadura.

As listas estão correndo como rastilho de pólvora pela internet porque mostram um nível de desumanidade e degradação moral difícil até de aceitar que existe. Quase todos os que conseguiram se segurar financeiramente na pandemia tiveram a experiência de inteirar a compra de alguém no mercado. Vi várias vezes alguém pagar o iogurte que iria ficar de fora, o chocolate, o chiclete, o refrigerante. Vários mercados colocaram gôndolas para a gente fazer compras e doar a quem não tinha o que colocar na mesa. É desses produtos que saiu o dinheiro para comprar R$ 15 milhões em leite condensado.

Cada um sabe o que passou durante a pandemia. Que tenhamos forças para atravessar o que ainda nos aguarda. Não ajuda nada saber que muito desse sacrifício coletivo foi feito para pagar uma lista bizarra de ítens supérfluos. É o maior desafio da história da nossa geração e o Governo Federal não conseguiu ainda nem fazer o plano de enfrentamento da pandemia. Mas já recebeu de todos nós para comprar queijo, vinho e leite condensado à vontade. Não há justificativa.

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