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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Contra o radicalismo, todo apoio a Nicolás Maduro

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Hoje, o site do Partido dos Trabalhadores me transportou de volta ao início dos anos 90, uma era geológica antes do Lulinha paz e amor, quando o PT no poder era uma ilusão distante. Naqueles tempos, Lula desdenhava até do socialismo, nem ele era totalmente puro. "O socialismo que nós queremos não é aquele implementado pelas elites intelectuais, mas aquele defendido pela classe trabalhadora brasileira", dizia às massas, sob aplausos, há 30 longínquos anos. Esse clima está de volta. Confesso que dei uma fuçada no site em busca da palavra "ianque". Não achei, felizmente.

Nas eleições municipais, o povo deu o recado do pragmatismo. Escolheu propostas mais moderadas e sinalizou que há espaço para a construção de uma candidatura nacional de centro em 2022. No entanto, o radicalismo populista continua sendo a tônica da política nacional, à esquerda e à direita. Como reconhecer um radical? Não é pelo discurso, é pelo que ele tolera. Democratas vêem a dignidade como inerente à condição humana e inegociável. Radicais vêem como legítimo sacrificar a dignidade humana em prol dos objetivos de seu grupo.

Há quem estranhe a união ocasional de radicais de esquerda e de direita porque logicamente não faz nenhum sentido. Ocorre que não falamos de lógica porque o eleitor não é racional. Os piores inimigos dos radicais de esquerda não são os de direita e vice-versa, ambos se complementam e um grupo depende do outro para sobreviver politicamente. São feridos de morte apenas por liberais, moderados e conservadores, na versão tradicional das doutrinas, não na versão tupiniquim do liberal de Taubaté, centrão e conversador. Essas doutrinas condenam o esmagamento de indivíduos em nome de um "bem maior", que é o coração do radicalismo político, à esquerda e à direita.

Reportagem do Brasil de Fato no site do Partido dos Trabalhadores

Ainda não consegui processar internamente se o estranhamento é maior com o apoio à ditadura messiânica da Venezuela ou com a importação para o século XXI da "luta contra o imperialismo". Embora as figuras centrais do PT e estrelas da esquerda gourmet como Guilherme Boulos façam um discurso distante do radicalismo, são convenientemente tolerantes com o radicalismo dos apoiadores. Você não ouvirá Lula nem Gleisi Hoffmann falando como se estivessem nos anos 80 nem pregando revolução e massacrar quem pensa diferente. Mas este comportamento será largamente tolerado no grupo, que é movido por isso, não pela moderação.

O mesmo vai se passar no pólo oposto, à direita. Os mais radicais, que incentivam e falam barbaridades, podem até ser subestimados ou tratados como desequilibrados pelos moderados que aderem ao projeto. Soberba é bicho que come o dono. A força motriz de um movimento que tolera que seus membros aviltem a dignidade humana dos adversários é o radicalismo. Nesse contexto, moderados que calam enquadram-se em duas categorias: fila do abate ou radical envergonhado.

O PT emitiu uma nota de apoio ao regime de Maduro, dizendo que as eleições legislativas na Venezuela foram democráticas. Até aí, nenhuma novidade. A relação estreita do partido com o chavismo é velha conhecida do brasileiro. Preocupa o conceito de democracia. Apenas 31% dos eleitores votaram. A oposição havia pedido um boicote como forma de protesto. Observadores internacionais acompanharam a votação, a minoria. O que ocorreu com a maioria? Não sabem.

Natural que observadores internacionais saiam falando que as eleições foram corretas e democráticas quando não há nenhum incidente gritante, como bomba, impedir de entrar para votar, bloqueios de estrada ou sumiço de urnas. Pesquise o que dizem observadores brasileiros e internacionais em diversas "eleições" organizadas por ditadores no mundo todo. Como o observador não conhece o lugar, fica poucos dias e não tem a possibilidade de entender o que leva alguém a votar ou não, percebe apenas elementos muito evidentes de coerção.

Os observadores do Conselho de Direitos Humanos da ONU que estiveram na Venezuela por mais tempo e com liberdade de ação para investigar 223 casos de presos políticos saíram com uma opinião bem diferente sobre Nicolás Maduro. Em vez de chamar o regime de democrático, o mandatário foi acusado de crimes contra a humanidade. A missão terminou o trabalho em setembro e apontou que, “longe de serem atos isolados, esses crimes foram coordenados e cometidos de acordo com as políticas estaduais, com o conhecimento ou apoio direto de comandantes e altos funcionários do governo”. Isso é justificável? Para o PT, é, já que Maduro luta contra a direita venezuelana. É a mesma mentalidade dos direitistas brasileiros que andam à caça de comunista até em barraquinha de cachorro-quente.

A íntegra da nota do PT

Saudamos as eleições legislativas da Venezuela realizadas neste domingo, que constituem mais uma grande manifestação da vontade popular no processo de transformação política, social e econômica daquele país ao longo das duas últimas décadas.
As eleições foram realizadas pelo governo constitucional, apesar da grave crise provocada pelo bloqueio comercial, financeiro e diplomático à Venezuela, e das ameaças militares, por parte do governo dos Estados Unidos e de vassalos como Jair Bolsonaro.
As eleições são a resposta democrática a esta política de bloqueio, que visa a atingir o governo constitucional do país, mas tem como grande vítima o povo venezuelano, gravemente prejudicado no acesso a alimentos, medicamentos e outros direitos.
O PT é solidário ao governo constitucional e ao povo da Venezuela. Compreendemos que a realização das eleições é a resposta democrática aos golpistas que conspiram, dentro e fora do país, contra o governo constitucional e o processo de transformação iniciado pelo ex-presidente Hugo Chavez.
Todo apoio ao povo venezuelano na luta contra o imperialismo, contra o bloqueio e as ameaças militares, em defesa da soberania da Venezuela e da América Latina.

Gleisi Hoffmann, Presidenta Nacional do Partido dos Trabalhadores
Romênio Pereira, Secretário de Relações Internacionais

O radicalismo gourmet

Na apoteose da superficialidade, criou-se a possibilidade do surgimento do radicalismo gourmet. A pessoa continua radical nas atitudes e na alma, mas muda todos os sinais externos, começa a se vestir diferente, a fazer discursos que parecem moderados, a sorrir para os outros. Meu amigo Marcio Américo, talentoso escritor e comediante, chama a prática de "Método Flordelis". Você recorre a sinais externos de que pertence a qualquer grupo e, por dentro, continua sendo o que você quiser.

Se eleição e política fossem racionais, a maioria dos nossos poderosos não passava da porta de partido político nenhum. As pessoas olhariam as biografias, a capacidade de realização, os esqueletos no armário e decidiriam. Não é assim que as decisões eleitorais são tomadas. A depender do quanto nos identificamos com um candidato ou temos repulsa por outro, tendemos a ignorar ou maximizar dados da realidade. É na zona da subjetividade que o radicalismo se traveste de moderação ou nova política, sempre ao gosto do freguês.

O radical sempre tentará dizer que é moderado e radical mesmo é aquele contra quem ele luta. Para o PT, quem é antidemocrático? Jair Bolsonaro. Em 17 de junho deste ano, o centro de uma resolução do Partido dos Trabalhadores pedindo o impeachment do presidente da República era o desprezo cotidiano e contumaz pelas instituições democráticas. Aliás, desprezo que já era manifesto quando o atual presidente apoiou a eleição de Lula e se declarou admirador de Hugo Chávez. O líder do PT chegou a solidarizar-se na tribuna com um discurso de Jair Bolsonaro que pregava o fuzilamento de Fernando Henrique Cardoso e dois de seus ministros. Naquela época, no entanto, era diferente porque ele estava do lado certo da história.

"Forjado na luta pela democracia e contra a ditadura e nas batalhas sindicais e populares por melhorias concretas para a vida do povo, ninguém mais do que o PT tem compromisso com a defesa da democracia. Democracia não apenas entendida como direitos e garantias individuais, participação social ou como método de escolha de governantes, mas essencialmente como a que assegura o exercício do direito do povo a uma vida digna, com emprego decente, salários justos, renda e políticas públicas que garantam acesso a educação, saúde, cultura, bem-estar", diz a resolução do PT contra o governo de Jair Bolsonaro. ]

Se for para levar isso a sério, de onde tiraram a nota apoiando Nicolás Maduro? A nota fala exatamente o oposto, que se trata de uma democracia lutando contra o imperialismo e é percebida assim unicamente pelo método de escolha dos governantes, em que menos de 1/3 dos eleitores participam. Cadê o "exercício do direito do povo a uma vida digna, com emprego decente, salários justos, renda e políticas públicas que garantam acesso a educação, saúde, cultura, bem estar"? Também não precisa. Agora é Nicolás Maduro quem está do lado certo da história.

Tendemos a confundir radicalismo com estridência ou discurso exagerado. Chamamos de radicais pessoas de quem não gostamos ou com cujas ideias não concordamos de maneira nenhuma. Essas pessoas podem ser ou não radicais, já que é impossível saber por esses parâmetros. Radicais são aqueles que defendem a relativização da dignidade humana em nome do grupo de que fazem parte ou das ideias em que acreditam. Chamar de democrata alguém que reconhecidamente tortura adversários políticos e é acusado formalmente de crimes contra a humanidade não tem outro nome, é radicalismo. O PT que se vire com isso.

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