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As pessoas não são o que pregam, são o que toleram. Martin Luther King dizia que, "no final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos". Essa angústia em um caso de assédio sexual foi descrita com sensibilidade humana e qualidade literária únicas pelo jornalista João Batista Jr. na Revista Piauí. Ele ouviu 43 pessoas para reconstruir o calvário que a humorista Dani Calabresa vivia enquanto fazia a gente dar risada.
Estamos diante de mais um caso em que pessoas provam ser muito mais que estereótipos, são únicas. Para a militância de universo simbólico, o jornalista João Batista Jr. talvez não tenha "lugar de fala" na questão do assédio sexual. Branco, olho azul e ex-Veja o desqualificariam imediatamente. Mas foi ele quem encontrou os meios e as palavras para contar a história de uma mulher pisoteada e injustiçada até pelo pessoal do "mexeu com uma, mexeu com todas". Estereótipos são injustos por subestimar pessoas e também por providenciar fantasias de paladinos da justiça a canalhas.
Ele conduz o relato mostrando que o rastro de destruição deixado por um assediador sexual vai muito além do avanço sexual em si. A mulher que insiste em defender a própria dignidade será prejudicada profissionalmente, perderá o investimento financeiro e pessoal na profissão que ama, terá abalos significativos na vida pessoal e conhecerá a porção mais mesquinha da alma humana. Todos que convivem com os dois saberão se a história é ou não verídica, mas isso pouco importa para o posicionamento que vão adotar.
Vivemos a era da apoteose da superficialidade, em que fazer o discurso politicamente correto e policiar o discurso alheio é suficiente para ser percebido como pessoa de caráter por um grupo significativo. Essas práticas têm um custo muito menor do que fazer a coisa certa em momentos de crise. A decisão, como vimos no relato, é quase sempre matemática. Poucos tomarão a atitude correta porque, na ponta do lápis, sabem que não vai dar certo. Embora não faça nenhum sentido lógico, taxar uma mulher como Dani Calabresa de "louca" e dizer que "está se aproveitando da situação" são argumentos aceitos a depender de quem ela acusa e para quem a acusação foi feita.
O cidadão comum fica com o estômago revirado ao ler a história. Mas há muita gente que se dispõe a ouvir o relato de viva voz, ver as provas e assegurar à pessoa atacada que tomará providências apenas como forma de ganhar tempo para blindar o assediador. Enquanto a denunciante confia no senso de justiça dos que a ouviram, presenciaram eventos e conhecem seu caráter, a reputação dela é enxovalhada pelas costas. Difícil avaliar se são piores o deboche, gracejos e piadas ou o silêncio conivente.
A maior aberração é o caso em que uma mulher faz questão de dizer ao jornalista que, em casos de assédio, sempre acredita nas vítimas. O questionamento dele era sobre o papel dela ao articular um abaixo-assinado em defesa do abusador. Fazer um discurso politicamente correto não é passaporte para beatificação. As vítimas dessa visão distorcida não param de aparecer. Lembremos da tragédia ocorrida recentemente no Carrefour na véspera do Dia da Consciência Negra, em que a empresa pretendia lançar a hashtag #TodesMerecemRespeito.
O universo simbólico tem impacto na vida real, mas militar apenas nessa instância, sem avaliar os efeitos na realidade, faz com que se prejudique quem se pretende ajudar. Artistas que parecem empenhadíssimos em lutas feministas nas redes sociais calaram covardemente diante de um caso real. Seria este o único ou Dani Calabresa seria uma das primeiras que se aventurou a defender a própria dignidade a qualquer preço? Depois de horas de cobranças, os anônimos Sleeping Giants resolveram fazer uma não-manifestação sobre o tema. Mais uma vez, são muito menos rigorosos com casos reais do que com declarações:
Eu não tive respeito que pregam quando os anônimos exigiram que eu me posicionasse pessoalmente a favor da atitude de uma empresa que me culpabilizou por denunciar assédio sexual. A atitude exigida de mim implicaria também atacar a Gazeta do Povo, empresa que me ouviu, apoiou e jamais minimizou ou fez piada com a situação. Luto porque tenho voz e posso falar por inúmeras pessoas tratoradas sem dó por um sistema em que aparências contam mais que atitudes.
Conheço muitos homens que estão descobrindo agora essa realidade que nós, mulheres, vivemos. É natural. Há um código não escrito entre os que praticam este tipo de perversão, o de não praticar na frente de outros homens que se posicionariam publicamente contra mesmo colocando o networking a perder. São poucos, mas são fortes. Se você faz parte desse grupo, todo apoio é bem vindo. Ignore quem disser que você não tem "lugar de fala".
Há pessoas que sofrem e precisam de ajuda sendo tratoradas por um processo de militância puramente simbólica, uma união em torno de teses não comprovadas de sinalização de virtude. Nos deslumbramos com essa possibilidade de conseguir redenção sem passar pelo doloroso processo de reconhecer erros e mudar de comportamento. Só que isso deixa vítimas pelo caminho, pessoas reais com sofrimentos reais.
Esses dias escrevi sobre um assunto espinhoso, a transexualidade. Qualquer pergunta se transforma imediatamente em um cancelamento por transfobia. Foi assim que adultos se calaram e deixaram a adolescente Keira Bell passar por um tratamento experimental desleixado, sem preocupações científicas e irreversível. Ela, no entanto, teve a força de lutar para que tantas outras adolescentes não fossem condenadas pela mesma espiral do silêncio. Obteve vitória.
A Suprema Corte do Reino Unido ficou chocada com a falta de provas científicas e, sobretudo, com a falta de interesse pela investigação científica do tratamento com bloqueadores de puberdade e cirurgias de reversão sexual. Algo tratado pela fina flor da lacratividade como panacéia é, na verdade, uma mina de dinheiro para uns poucos que não se importam com o drama humano de adolescentes e as consequências que carregarão por uma vida.
Para Dani Calabresa, não teve "mexeu com uma, mexeu com todas". Ela foi alvo de quem propunha guerras contra a misoginia no universo simbólico, um novo tipo de humor que rompesse as amarras do preconceito. Pouco importava se, na vida real, o preço disso fosse dobrar a aposta no pisoteamento de mulheres. Sobrou gente lacradora para difamar a humorista e ficar ao lado de quem ela denunciou.
Confesso que sou fã de Dani Calabresa desde o "Furo MTV" com Bento Ribeiro. É um baita de um exemplo do brilhantismo das mulheres com as quais a gente convive no nosso dia a dia, nossas irmãs, primas, amigas. Seria um problema ela não ser lacradora e colocar o humor como arte maior, como realmente é? Sinceramente não sei.
Perdemos todos nós ao ver tanta provocação inteligente e alegria sequestradas do público para atender aos interesses de quem pretendeu dobrar uma mulher que tem dignidade. Várias pessoas que lacram diariamente nas redes sociais não se importaram com isso. Houve uma avalanche de Pôncio Pilatos. Danilo Gentilli, que é sempre o misógino da vez, foi firme desde o início, como sou testemunha de que é firme com inúmeros casos reais.
Já temos redes sociais há tempo suficiente para saber que ninguém é tão bem sucedido quanto aparenta no Linkedin, tão feliz quanto aparenta no Instagram e tão combativo quanto parece no Twitter. O grande problema é que, enquanto essas artimanhas tiverem efeito na vida real, elas farão vítimas reais. O silêncio dos lacradores foi mais que eloquente no caso Dani Calabresa. Que a coragem dela, uma gigante diante da infâmia e da injustiça, não tenha sido em vão.