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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Liberdade de Expressão

Elon Musk virou o maior acionista do Twitter: as coisas vão mudar?

Elon Musk
(Foto: Alexander Becher/EFE/EPA)

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Não é de hoje que Elon Musk tem se metido no debate sobre liberdade de expressão nas redes sociais. Ele já chiou muito, reclamou, xingou bastante no Twitter, foi xingado, ganhou palestrinha moralista do time de bullying do Sleeping Giants e cansou, como todos nós. Mas o Ellon Musk não é igual a todo mundo, ele tem quase US$ 300 bilhões.

Quer saber, pegou um troco avaliado em US$ 2,9 bi e comprou quase 10% do Twitter. Tem 73,4 milhões de ações e é disparado o acionista majoritário. Desde o início do ano o Twitter estava em queda na bolsa de valores, acumulou 25% até sexta. Poucas horas após o anúncio da entrada de Elon Musk, recuperou quase toda a perda do ano.

Muito provavelmente você já viu por aí a história de que o bilionário perguntou aos seus seguidores no Twitter sobre liberdade de expressão e democracia. Falou em fazer uma nova plataforma. Depois, anuncia que comprou a empresa. Como toda história boa, é mentira. Mostra, no entanto, que o novo patrão do Twitter também sabe direitinho como manipular a imprensa para dizer o que ele quer.

Quando fez as postagens, em 25 e 26 de março, ele já havia comprado a fatia do Twitter há mais de 10 dias. A compra foi no dia 14, hoje foi só o anúncio público. A questão que fica é: Elon Musk vai mexer nas políticas de liberdade de expressão agora que é dono ou santo de casa não faz milagre?

A frase teatral "As consequências dessa pesquisa serão importantes. Por favor vote com cuidado." é uma jogada de gênio do marketing. Muita gente reclama do controle de discurso por Big Techs, geralmente confundido pela imprensa e até por autoridades mais desinformadas com garantia de liberdade de expressão ou luta contra desinformação e discurso de ódio. Essas pessoas, que ficam sem voz, já se sentem parte do projeto.

O Twitter é uma rede social minoritária, mas onde estão os formadores de opinião, principalmente políticos e jornalistas. Passa a ser estratégica a partir do momento em que boa parte da imprensa deixou de cobrir fatos para cobrir o Twitter em si. É um ponto nevrálgico para a defesa da liberdade de expressão.

Existe uma ampla corrente que se coloca contra a desinformação e o discurso de ódio. Em tese, ninguém é a favor disso. A questão é definir objetivamente o que são essas coisas. Importamos um modelo norte-americano de decisão sem importar as regras, então vai tudo no freestyle e na cara do freguês.

Há dois valores que colidem: a liberdade de expressão de um com o direito de existir do outro. É essa a linha fina entre qual tem mais peso. Em linhas gerais, o que se considera discurso que viola direitos humanos é aquele que claramente incita discriminação, hostilidade e violência contra uma pessoa específica ou contra um grupo definido por fatores como religião, raça, etnia, origem social e outros, a depender das realidades locais.

Se você usar uma suástica já é discurso de ódio ou só se você verbalizar o que a suástica já simboliza que seria? Depende da cultura, das leis locais, da realidade social e do peso desse símbolo. Vários países vão definir de forma diferente e o mais importante é ter clareza nessa definição. Nós, aqui no Brasil, não temos isso nem legalmente.

Experimente entrar com dois processos exatamente iguais sobre liberdade de expressão em varas diferentes. Você pode ter resultados opostos. E isso não é algo simples de apontar o defeito, é como acidente de avião, precisa ter uns mil defeitos em cadeia para um desastre daqueles. É o que temos.

Qual seria a solução para garantir direitos universais, como liberdade de expressão? O ministro aposentado do STF Francisco Rezek apontou uma ideia interessante do jurista Modesto Carvalhosa: nós poderíamos simplesmente seguir os tratados internacionais que já assinamos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas a gente já não segue? Sim e não.

Ao criar um rol de direitos constitucionais específicos, criamos um embaraço. Eles acabam, em alguns casos concretos, colidindo com direitos previstos nos tratados. Cria-se uma confusão. Os dois direitos são legítimos mas, no caso específico, qual deve se sobrepor? Isso atualmente é resolvido julgando caso a caso. Qual a possibilidade desse sistema dar certo? Pois é...

O que os inteligentinhos acham que é liberdade de expressão

Você já deve ter visto por aí que redes sociais não censuram porque elas não impedem ninguém de postar, só apagam ou derrubam a conta de quem viola regras da plataforma com desinformação e discurso de ódio. É mentira e eu te explico ponto a ponto.

A teoria seria de que "há liberdade de expressão mas o que eu não posso é garantir sua liberdade depois da expressão". Pergunte a diversos democratas defensores de Sleeping Giants e derrubada de post. Eles vão concordar 100%. Só depois que concordarem informe o autor da frase: Idi Amin Dada, ditador de Uganda, um dos déspotas mais brutais da história da humanidade.

Então a pessoa pode falar o que quiser, destruir a vida dos outros e não acontece nada com ela? Uma dica importante de cidadania digital é ligar o alerta toda vez em que o discurso sugerir que "ninguém está fazendo nada" com relação a uma coisa. Geralmente é mentira, tem alguém fazendo, mas querem provocar seu desespero para lucrar de algum jeito.

Se uma pessoa causa danos a outra com o que diz ou porque contrata um esquema organizado de disseminação atípica daquilo que foi dito, ela precisa ser punida. Temos aí duas questões: quem vai punir e qual a punição.

Somente as instituições de Estado podem punir cidadãos. Empresas não podem ter o condão de distribuir punições. O modelo de regulação de redes considerado hoje o mais funcional do mundo é o da Alemanha. Eles têm uma entidade que cuida desse universo e ela é a mediadora do discurso público, não a plataforma. Nós também criamos uma entidade, mas ainda não temos esse tipo de regra.

O outro ponto é qual a punição. Há punições previstas em lei para quando você prejudica os outros com o que fala, sendo mentira e até quando é verdade. São essas as punições legítimas, nenhuma outra.

Recentemente houve um caso de uma médica que desdenhou da morte de uma paciente no Instagram. Estava brava porque atender o infarto atrapalhou os planos de dormir que tinha e a mulher nem sobreviveu. Postou e foi demitida. É uma punição injusta? Não é nem injusto nem punição. A empresa não pode ter uma médica que não entende o próprio papel atendendo emergências, simples assim.

Teve gente já defendendo a cassação do diploma, uma campanha para que ninguém mais a contrate, todo tipo de justiçamento. Além de selvageria, é moralismo de quinta categoria. Talvez as consequências jurídicas, a demissão e a reação da família e amigos ensinem algo à jovem médica e no futuro tenhamos uma boa médica. É uma possibilidade que não teríamos se isso não tivesse gerado consequências.

Chegamos aqui a essa linha fina da liberdade de expressão: incentivar hostilidade contra uma pessoa específica é, no âmbito dos direitos universais, discurso de ódio. Quem ficou perseguindo a médica incorreu nisso? A atividade do Sleeping Giants, que pede demissão de pessoas escolhidas aleatoriamente, com base em alegações moralistas, é ou não é discurso de ódio? Não sabemos porque estamos brincando de guerrinha do bem contra o mal.

Quem veste a capa da virtude e das boas intenções ganha passe livre para praticar maldades e crueldades. Não é censura, não é bullying, não é assassinato de reputação, não é covardia, não é imoral, não é imundo, é tudo isso junto só que feito para "o bem". E, quando é feito para o bem, também não é nem desinformação nem discurso de ódio.

O que decide então se você está fazendo algo para o bem ou para o mal, já que todo tipo de vilania é liberada e a conduta é rigorosamente a mesma? A cara do freguês. Como diz o Danilo Gentilli, não é o que você fala ou faz, é quem. Bolsonarista armar esquema para perseguir os outros é gabinete do ódio. Sleeping Giants armar esquema para perseguir os outros é luta contra o discurso de ódio.

A questão do ódio é interessante porque foi completamente distorcida pelos grupos Woke, o povo do Identitarismo. Não são os que buscam pautas identitárias como igualdade de oportunidades reais, direitos civis, nada disso. É o pessoal que criou novas definições para machismo, fascismo, nazismo, racismo, homofobia, transfobia e até gordofobia.

Perseguir pessoas é discurso de ódio, não importa a motivação. Mas esses grupos fazem isso ativamente e dizem que as pessoas é que fizeram discurso de ódio. E o que elas fizeram? Foram racistas, misóginas, homofóbicas... Elas perseguiram ou incentivaram perseguição? Não. Mas os justiceiros sociais sim. Adivinha qual post será derrubado.

O mais bizarro é ter jornalista a favor disso. Importamos de forma acrítica essa aberração direto da cultura norte-americana. Alguém decide criar, do nada, uma nova regra sobre o que seria discurso de ódio e aplicar apenas em alguns casos, para algumas pessoas. A regra universal sobre discurso de ódio não vale mais e grupos bem intencionados podem fazer.

"No fundo, o Identitarismo é divisivo, excludente e odioso, basicamente dá às pessoas más uma razão, dá a elas um escudo para serem más e cruéis, blindadas em falsa virtude", disse Elon Musk. É o primeiro chefão de redes sociais que pensa assim. Todos os outros colhem os frutos do mercado do identitarismo.

É um produto de muito sucesso o free pass do identitarismo. O grupinho de meninas más da escolha, as Marias Joaquinas, finalmente podem esmigalhar todo mundo ao redor sem serem vistas como vilãs. Xingam, perseguem, humilham, inviabilizam a vida de alguém e sentem prazer. Mas é só porque estavam defendendo o universo de um fascista.

Todos os dias tem alguém matando o Hitler a tuitada. São grupos animadíssimos. Outros saem dando lição de moral por aí como se quem tem moral agisse desse jeito patético. É um conforto psicológico estar no grupo que acredita nisso. A pessoa não precisa mudar e não precisa domar a pulsão destrutiva que todos temos dentro de nós. Mesmo assim, é reconhecida como boa e virtuosa.

Pedir histericamente a demissão de alguém não é militância nem virtude. Mas as redes deram a uma matilha de pessoas imundas a ilusão de que não são a lama que vêem no espelho. Para isso, é preciso amordaçar meio mundo e chamar isso de liberdade de expressão.

O Identitarismo não domina as redes na África, Ásia e Oriente Médio porque não é da cultura deles. Além de defender pautas sobre as quais esses países não dialogam, a figura do ofendido profissional é ridícula fora do universo hollywoodiano. Mas também há outros movimentos de matilha e o mesmo debate sobre liberdade.

Governos do mundo todo enfrentam o desafio de racionalizar o universo digital em todos os âmbitos. Se não conseguiram ainda regulamentar direito nem imposto, avalie como estamos na liberdade de expressão, algo muito mais subjetivo e difícil de regrar. Poder não tem vácuo. Elon Musk entra na jogada e pode ser que faça as coisas do jeito dele. Ironia do destino, será a afirmação definitiva do poder das Big Techs, as empresas-Estado.

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