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Avalie se a Hebe ressuscitasse e, diante do reconhecimento nacional sobre alguém ser uma gracinha, disparasse com orgulho: "Eu avisei que ele era uma gracinha". Deixo consignado que eu seria da galera que passaria pano e diria que ela avisou mesmo, esse é o dever do fandom. Pessoas sensatas, no entanto, não engoliriam. A Hebe era incapaz de passar por alguém sem dizer que era uma gracinha. Podia ser até cachorro ou planta, entrou na mira de Hebe Camargo, automaticamente estava promovido a ser uma gracinha. Obviamente, se alguém mais fizesse a afirmação, ela teria avisado.
O que equivaleria a Hebe Camargo, diante de alguém chancelado como "uma gracinha", avisando: "eu disse que ele é uma gracinha"? A esquerda brasileira dizendo: "eu avisei que ele era fascista". Desde que a política virou o parque de areia antialérgica bancando valente em rede social, partimos para a esculhambação. É um fenômeno que toma o debate público a partir de 2010 e parece estabelecido. O pessoal viu fascismo até em barraquinha de cachorro quente e agora quer se limpar da banalização do termo. Ah, pode ir querendo.
Banalização de termo, aliás, é uma especialidade da era da gourmetização da política nacional. O pessoal também encontra até em pastelaria de bairro comunismo, socialismo fabiano e globalismo. Fascismo e genocídio então, não resta a menor dúvida de que a pastelaria também vende. Basta ressignificar a massa, o recheio e todo o contexto histórico do patriarcado que vocês finalmente verão direitinho tudo isso. Eu oro todos os dias para que a ala gourmet da política continue procurando suas paranóias mas encontre vergonha na cara.
Pensei em lançar, como cidadã, o programa "Minha louça, minha vida". Não o fiz ainda esperando decisões de correligionários que pretendem substituir a palavra louça por enxada ou laje, alegando misandria da minha parte. Qualquer que seja a escolha, no entanto, combaterá uma epidemia colateral que sofremos, a de tentar botar emoção na vida de quem não lava nem a própria cueca. A maior emoção real da vida dessa pessoa é o quê? Brigar com papai por mais mesada? Revoltar-se porque não deu algo a que julga ter direito? Muito chato. Mas emoção envolve risco e p pessoal anda de sapatênis hoje em dia para não arriscar nem ter de escolher entre esporte e social.
Que tal imaginar-se um guerreiro contra o fascismo, o comunismo, os piores ismos do mundo, mas não ter de arcar com o ônus disso? Seus problemas se acabaram!!! Agora, com a nova militância do parque de areia antialérgica das redes sociais, você pode dar os nomes mais pesados a coisas simples e fingir ser um herói!!! Marina Silva não gostou de ser esculachada? Fascista! Alckmin falou uma coisa morna? Fascista!!! E daí você se autointitula antifascista que realmente combate o fascismo sem precisar correr riscos!!! (Na minha mão é mais barato, apurem-se!)
Virou moda ultimamente colocar um marco temporal pessoal para o início de qualquer história. Explico. A esquerda afirma que "todo mundo sabia a que veio Bolsonaro". Mas isso serve exclusivamente para chamar de fascista os eleitores do presidente na última eleição. Não serve para chamar do mesmo termo quem aceitou o apoio declarado dele em eleições anteriores, como Ciro e Lula. Também não serve para descrever os líderes do PT passando pano para sucessivos pedidos de fuzilamento de FHC e fechamento do Congresso.
Qual a diferença entre uma postura e outra? Alegam que a outra faz tempo, que não pode ser equiparada. Que, naquela época, era diferente. Mas, em 2018 não era diferente do pós-pandemia por quê? Maldosos diriam que é porque não favorece a narrativa da esquerda sobre a própria santidade e monopólio da virtude. Claro que não é isso. Meu podcast "Histórias que não posso contar", com documentos históricos da política brasileira pós 1988 bateu recorde de acessos ontem. A nossa memória curta nos leva a permitir publicamente que militantes incompetentes queiram apagar a história de antes de 2013, quando Dilma resolveu romper com Lula. Fossem competentes como a esquerda com base social era, já teriam uma belíssima justificativa para isso e sua relação com a luta de classes.
É um bom truque poder escolher a partir de qual momento não é aceitável fazer parte de um grupo, principalmente se você esteve no grupo antes. Só marcar sempre depois da sua saída o episódio ou esquecer. Por exemplo, Dilma Rousseff nunca indicou Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. A esquerda sempre avisou que esse pessoal todo era fascista. Fato é que a esquerda brasileira pós-gourmetização tem o hábito de xingar de fascista quem discorda um milímetro, ou seja, todo mundo. Vamos a uma lista dos recordistas, com destaque especial para Marina Silva, chamada de fascista por não concordar com a campanha sórdida do PT contra ela em 2014. Se tudo é fascismo, nada é.
O conselheiro do Instituto Teotônio Vilela, Jorge Lopes Cançado, dedicou parte do seu último final de semana a reviver esses momentos idílicos da política nacional em sua conta de twitter. Isso já havia sido feito por inúmeros perfis nas eleições de 2018, em que o povo chamava tanta coisa de fascista que até os fascistas reais estavam começando a ficar ofendidos. Grosso modo, simplificando até quase a imbecilidade, fascismo é uma imposição totalitária de governos centrados nos conceitos de nação e raça, renegando o indivíduo. Quando até a Rede Globo e a Folha de São Paulo viram fascista, acho que desviamos um pouco.
RANKING DOS MAIS XINGADOS DE FASCISTAS PELA ESQUERDA:
1. PSDB
O campeoníssimo de acusações de fascismo pela gloriosa esquerda brasileira, medido por quantidade e persistência das acusações no tempo, segundo o instituto Madeleine Lacsko, é o PSDB. Considero até uma ofensa contra os bolsonaristas. Vamos a algumas peças sensacionais produzidas nesse sentido:
2. Geraldo Alckmin
Tendo a pensar que o pessoal perdeu o medo mesmo de fascismo quando colaram a pecha no ex-governador de São Paulo. Há que se escolher. Ou o apelido é picolé de chuchu ou é fascista, não dá para conviver com as duas coisas ao mesmo tempo. No entanto, é esse daí o fascismo sobre o qual a esquerda alertava, em mais uma belíssima galeria de fotos: Alckmin é mais fascista que Bolsonaro.
3. Marina Silva
Como todos os que se afastam do PT e não aceitam esculacho público da esquerda que passa pano para petista, Marina Silva obviamente foi chamada de fascista de extrema-direita. E, obviamente, como toda mulher que não compra o pacote completo da esquerda, perde o direito de ser defendida por feministas. Não é machismo dizer que "Marina é recalcada porque Lula escolheu Dilma". Nesse clima dos romances Júlia e Sabrina, não importa quem Lula escolha, se não for a escolhida, já vira extrema-direita.
3. José Serra
Pelo menos chegamos a alguém cujo apelido jocoso era Nosferatu. Porque, sinceramente, a esquerda focar as acusações de fascismo em Marina Silva e Geraldo Alckmin esculhambou completamente o significado dessa palavra aqui no Brasil. Os motivos pelos quais José Serra é fascista são os mais óbvios: ele não é a favor de 100% de tudo aquilo que o PT é. Este é o novo significado da palavra fascista no dicionário do parque de areia antialérgica da militância gourmet de twitter. Aliás, o vídeo mostra o pessoal xingando Serra de fascista. Em Lisboa, claro, que não tem essa pobraiada toda de Terceiro Mundo.
4. Rachel Sheherazade
Minha colega jornalista já aceita como ser humano por parte dos progressistas após aderir ao #EleNão e ser massacrada pelos bolsonaristas nas redes. Em parte da esquerda-raiz, no entanto, ela continua sendo tratada como um ser quase tão humano quanto os monopolistas da virtude. Como a xingavam de fascista e nazista a torto e a direito, ainda comemoram quando é atacada e as defesas são tão discretas que às vezes nem existem. Ah, e fique claro: nada contra ela é machismo ou misoginia se vier da esquerda.
5. Boris Casoy
Sim, até o Boris Casoy. Eu decidi ficar só em 5 porque desconfio que, se bobear, capaz dessa galera da militância gourmet ter chamado até o próprio Lula de fascista em algum momento. Pensando bem, a Hebe era mais comedida em chancelar as pessoas como "uma gracinha". Assim como no caso de Rachel Sheherazade, é comum que jornalistas queridos no meio utilizem seu capital afetivo para xingar desafeto de fascista. No caso de Boris Casoy, foi Paulo Henrique Amorim. Só que a história foi parar no Judiciário e teve pedido público de desculpas. A militância de esquerda não ouviu, está chamando o jornalista de fascista até hoje.
FAIXA BÔNUS DOS NOVOS FASCISTAS, SEGUNDO A ESQUERDA DO PARQUE DE AREIA ANTIALÉRGICA:
Quanto a mim, tenho a honra de jamais ter sido chamada de "fascista", já que adotaram a corruptela carinhosa "fascistinha" para lidar comigo. O fato de ser considerada "madame da direita" pela parte da esquerda que fantasia sobre a minha pessoa garante o privilégio. Agradeço ao querido Guilherme Boulos que, com o veemente combate contra a estigmatização de mulheres e a misoginia, conseguiu que sua militância tivesse tal delicadeza. Parabéns, PSOL!!! Vocês sempre se superam.
Diante deste cenário, estou centrando todas as minhas forças na difusão do conto "Pedro e o Lobo", de Prokofiev. Resumindo para quem tem preguiça, toda hora o Pedro gritava que estava diante do Lobo. Só que ele estava diante da Marina Silva, o Bóris Casoy, a Rachel Sheherazade, o Geraldo Alckimin e eu. Provavelmente diante de você, da sua mãe, da sua tia Lourdes que ama grupo de whatsapp e da irmã Rebeca da Assembleia de Deus, que é contra o aborto. Um dia, ninguém mais ficou com medo quando ele gritava que era o lobo. Nossa, que coisa!
A política brasileira se acostumou a ver a esquerda chamar de fascista o que não era nem próximo de fascismo. Virou um xingamento equivalente a bobo, chato ou feio e usado rigorosamente nas mesmas situações. Não gosta de alguém? Fascista. Não aceitou 100% seu ídolo político? Fascista. Não xingou de fascista a pessoa que você está xingando de fascista? Fascista. E quais as atividades tão danosas de fascistas como a irmã Rebeca da Assembleia de Deus? Exalta-se um pouco na campanha contra o aborto. Dizem as fofoqueiras da igreja que exagera no lanche pós-culto. Realmente não parece algo de que a gente deve ter tanto medo assim.
A escolha da esquerda por cravar a marca temporal da dignidade política no último governo Dilma ou no processo de impeachment faz todo o sentido. Mostrada de forma completa, a história mostra que somos todos humanos, não anjos contra demônios. Meu falecido avô, quando quebrava banco para protestar contra a ditadura Vargas, xingava todo mundo de fascista. De lá para cá, a esquerda brasileira nunca mais achou outro xingamento tão bom. Agora tentam emplacar "genocida". Ainda terei dinheiro para isso, sou mais da ala que chama de ladrão, assassino e covarde mesmo. Periferia, sabe?
Nunca se "avisou" sobre fascistas, como reivindica agora nas redes sociais o parque de areia antialérgica da militância de esquerda. Sempre se chamou de fascista todo mundo que se afastou do PT ou que criticou o PT, é isso o que o brasileiro passou a entender do uso dessa palavra pela esquerda do país. E, sejamos francos, é isso o que a própria esquerda sempre disse. A tática linguística foi pegar uma palavra estigmatizante e abjeta para os que não aceitam 100% do pacote de crenças na tentativa de eliminar críticas e questionamentos. Deu super certo, né?
Alguém precisa avisar que ainda não é obrigado casar com o erro no Brasil. O PT pode dizer algo como: "erramos ao dizer que a Marina Silva era a extrema-direita fascista, não deveríamos ter feito o assassinato de reputação sob a batuta de João Santana e obrigado por apoiar o Haddad na última eleição". Politicamente, seria mais efetivo e agregador do que insistir na mentira de que avisaram algo ou foram mais limpos no jogo político. Mas isso só vale para democracias. Se o tabuleiro é o populismo, esqueça tudo o que eu disse. Pensou em não elogiar o líder supremo, é fascista, comunista e o raio que o parta.