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Aderir à lacração pode absolver você de tudo. Na era da alimentação saudável, muita gente duvidou que empreendimentos como o McDonald's sobrevivessem. Houve uma época em que tiveram de colocar até maçã e salada no cardápio, praticamente um sacrilégio. No último mês, uma das maiores crises da gigante do fast food voltou à cena: a briga com o chef Jamie Oliver. Há 11 anos, ele fez o histórico programa da "pink slime", que acabou mudando a receita dos hambúrgueres.
E por que essa história voltaria à tona? Fake News. Sério. Espalharam um boato sobre o fim do processo envolvendo o McDonald's e Jamie Oliver, só que ninguém processou ninguém. Teve um monte de reportagem na imprensa internacional e também na do Brasil só para explicar que nunca houve processo nenhum, as publicações eram prints montados. Pode ser tudo Fake News, mas pelo menos era sobre a comida do restaurante.
Agora o McDonald's não sai da boca do povo. Por quê? O debate sobre o banheiro misto, que ninguém sabe direito se é feito entre os clientes da lanchonete, mas entre o pessoal do marketing com certeza é o tema do dia. Eu sabia que o tal do Mc1000, a milésima unidade em um casarão na avenida Paulista, já tinha o banheiro misto. Mas a realidade não importa, importa o viral. Parabéns, Bauru! Mostrando a força do interior.
Eu sinceramente não tenho a menor ideia da politica de fusão dos banheiros da cadeia de fast food. Poderia ter ido conferir? Poderia. Mas minha médica lê esses textos e proibiu terminantemente qualquer contato meu com o McDonald's. Não preciso arrumar mais problemas. Além disso, fatos pouco importam diante do que mais chama atenção nas redes sociais. O banheiro do Méqui de Bauru será eternamente o primeiro unissex da história do Brasil.
É um caso em que vemos claramente discussões passando dos debates de rede social e whatsapp para o dia a dia. A questão dos banheiros unissex em escola acirra eleições no Reino Unido e nos Estados Unidos. O debate de redes sociais acaba desaguando aqui também. A mulher que se depara com o ambiente misto tem o impacto de medo porque o relaciona a esse discurso. Nas redes, o vídeo é usado para debochar dela, esculhambar, xingar, fazer um palanque moral. Tempestade perfeita para a viralização, como podemos observar nas postagens.
A discussão virou o seguinte: os banheiros seriam exatamente como os dos aviões, individuais e unissex. As pessoas estariam bravas com os bonequinhos ou não lembrariam que na própria casa homens e mulheres usam o mesmo banheiro, que é individual. Ocorre que não é isso. É um banheiro como o tradicional público, com várias cabines, só que sem a divisão por sexo nem os mictórios abertos masculinos. Os bonequinhos servem para quê? Não sei, se todo mundo entra... Não importa, era preciso esculachar quem não gostou.
A discussão sobre banheiro unissex na internet tem a ver com a pauta identitária. A minha tem a ver com higiene. Problema de mulher não é trans no nosso banheiro, é homem mesmo. Tem a brecha deixada para criminosos sexuais fingirem que são trans e entrarem nos banheiros onde há meninas e mulheres. Já ocorreu. Suponha que seja possível evitar isso. Que mulher quer usar banheiro depois que homem usa? Ah, mas e em casa? Em casa é uma das coisas que mais dá briga.
Sobre os riscos de criminalidade, explica-se que a solução da rede de fast-food é diferente dos banheiros tradicionais coletivos. Não há aquela porta que fecha o banheiro todo, é um vão aberto que dá para as pias. As únicas portas são aquelas das cabines dos sanitários. Como a área do lavatório fica exposta ao restaurante, qualquer movimentação ali é percebida fora dela. Compreendi sobre a segurança, tenho dúvidas sobre a privacidade.
Antes que a senhora indignada de Bauru postasse seu vídeo, dois vereadores da cidade já haviam feito seu próprio registro no McDonald's. Um deles contou à imprensa que foi alertado sobre a situação por outros eleitores. No vídeo que gravaram, os parlamentares falam de ideologia de gênero. Mas a queixa do munícipe era bem mais concreta.
“Principalmente mulheres reclamam bastante porque o homem urina em pé, e a mulher precisa sentar na mesma tampa que pode conter respingos. Fomos até o local, tiramos a foto e fizemos o vídeo para mostrar o descaso”, disse o vereador de Bauru. A cidade do interior paulista tem uma prefeita. Ela multou o McDonalds porque o código sanitário determina banheiros separados.
A gigante do fast food já disse que está em contato com as autoridades para deixar as instalações dentro do que a lei local determina. Eu fico vendo esse marketing e pensando em "follow the money". Lembra daqueles cases de economias gigantescas tirando uma azeitona de cada refeição do avião, reduzindo a espessura da batata ou alargando o buraco da pasta de dente? Quanto economiza reduzindo as instalações dos banheiros de duas para uma em todas as lojas e deixando as pias à vista?
O McDonald's não fala disso, informa apenas que pretende ter em suas lojas um ambiente de inclusão e respeito. É com essa intenção que "adotou cabines individuais e de uso independente para que todas as pessoas se sintam bem-vindas e possam utilizá-las com conforto e privacidade". Não sei se é conforto e privacidade ter homem circulando onde tem as pias e a área privada ser só a cabine sem pia. Mas também duvido que tenham perguntado às mulheres.
Muita gente pode estar escandalizada com a inovação. Eu fico é com nojo mesmo. De homem no meu banheiro, aturo meu filho aos trancos e barrancos. Porque filho a gente é obrigada. Pelo menos até fazer 18 anos. Descobri que isso de banheiro aberto e misto não tem nada de novo, é uma volta às origens. Um fio interessantíssimo do Podcast Geopizza fala sobre as latrinas públicas da Roma Antiga. Eram unissex, veja só!
Abertas, no meio da rua, as latrinas romanas eram conectadas a uma vasta rede de esgoto. Embaixo dos bancos com sanitários coletivos passava água corrente que levava os dejetos. Os cidadãos e cidadãs marcaram encontros e saraus nas latrinas públicas. Até banquetes eram servidos lá. Vejam que ideia boa. De repente, não precisa mais nem de porta, já deixa tudo em um único espaço aberto. Bizarro? Era mais evoluído que o Brasil, eles tinham acesso a esgoto. Mas a gente fica hipnotizado com lacrador defendendo o McDonald's.
Segundo o IBGE, eu sou parte da elite brasileira. Meu pai costumava dizer que esse indicador social engloba a faixa do "pobre metido à besta", a classe média que precisa trabalhar para pagar conta mas tem umas contas mais sofisticadas. Tenho nível superior, trabalho há 25 anos, tenho boas oportunidades, uma carreira internacional, prêmios. Sabe o que eu não tenho? Esgoto. Pois é. Eu estava escrevendo sobre o banheiro do McDonald's e lembrei que não tenho esgoto.
A minha região ainda tem fossas. A gente precisa pagar um caminhão para vir aqui limpar a fossa. Aconselharam que escolhesse uma casa na parte alta da ladeira justamente por isso. O bairro de cima do meu ganhou esgoto este ano. A prefeitura daqui fez uma festa que parecia estar mandando o pessoal numa viagem espacial. Esgoto. Saneamento básico.
Sabe quantos brasileiros não têm acesso à rede de esgoto? 100 milhões, segundo dados oficiais. Quase metade do Brasil não tem acesso a esgoto. Nós começamos a nos preocupar com saneamento em finais do século XIX e início do século XX. Falamos de banheiros como se fossem uma instituição, mas eles são algo novo. Muitos de nós têm pais e avós que usavam as famosas "casinhas", banheiros de madeira fora de casa, principalmente na zona rural.
A evolução dos banheiros chega a ser algo até anedótico. Há inúmeros personagens de filmes norte-americanos com ideias revolucionárias para latrinas. Os japoneses têm recursos impressionantes que a gente vê pela internet e nunca sabe se aquilo é verdade ou não. É uma indústria que avança primeiro para preservar a saúde e depois para trazer conforto e também luxo. Pelo visto, encontramos uma forma de avançar os banheiros para atender a lacração. Resta saber se quem usa aprova.