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Toda vez que você ouvir a palavra microagressão como justificativa para eliminar palavras e justificar comportamentos, você está diante de um picareta. Esse conceito científico da psiquiatria foi virado completamente do avesso pelo identitarismo. O resultado é uma prisão mental eficiente para as minorias pelo vitimismo. É por isso que os maiores expoentes da luta identitária são representantes de grupos que eles próprios chamam de opressores.
O mais irônico dessa história das microagressões é esculhambar completamente o trabalho do primeiro psiquiatra negro de destaque intelectual nos Estados Unidos. Nascido em 1927, Chester Pierce fazia parte do movimento pelos direitos civis de Martin Luther King. Ele cunhou o termo "microagressões" em 1970, mas jamais sugeriu que ele servisse para patrulhar vocabulário alheio cancelando pessoas. Aliás, isso é o oposto do que ele propunha e realizou.
Microagressões, segundo Chester Pierce, são expressões e formas de tratamento corriqueiras com minorias, mas que deixam claro que o outro é inferior. Ocorre que o psiquiatra não tinha o nível intelectual do Dollynho que têm nossos bravos guerreiros da justiça social de teclado. Para ele, o dano partia de representações estigmatizadas na mídia, principalmente na televisão, que passavam a ser reproduzidas como naturais pela população.
A principal diferença entre um intelectual do porte de Chester Pierce e o nosso parque de areia antialérgica é a consequência das ações. Nossos bravos guerreiros de sofá usam a teoria de microagressões para patrulhar todo mundo e sinalizar virtude. O psiquiatra usou para revolucionar a programação infantil da primeira geração que teve a TV como Babá: foi consultor do sensacional Vila Sésamo.
Você já tinha ouvido falar dele? Mas já ouviu falar de Judith Butler, Foucault, Marcuse, Deleuze. Nada é mais a cara do identitarismo do que isso. O pai da matéria é negro, mas a classe média alta branca e urbana rouba o protagonismo dele em nome da defesa das minorias. É o que se vê diariamente no Twitter, usar as minorias para ter o status de revolucionário sem fazer revolução. E, principalmente, sem deixar que essa minoria ganhe poder e tome seu lugar.
Faço questão de contar quem foi Chester Pierce e por que chega a ser perverso dizer que devemos patrulhar o mundo para evitar microagressões ou que alvos de microagressões tornam-se mais traumatizados e reativos. É um tipo de mensagem negacionista que tem sido difundida pelo identitarismo e esculhamba a saúde mental de quem embarca.
Chester Pierce nasceu na cidade de Glen Cove, Nova Iorque. Eram 8 mil habitantes e só 10% negros em plena era da segregação racial. Ele foi o primeiro negro da história dos Estados Unidos a tornar-se presidente de sua high school, uma posição de representação dos alunos que se consegue por voto nas escolas norte-americanas. Não é à toa que adulto era comparado a um trator em todas suas áreas de atuação.
Ele se formou em Harvard em 1948 e conseguiu o diploma de médico pela Harvard Medical School em 1952, primeiro ano dos protestos contra a segregação racial nas escolas dos Estados Unidos. Era do time de futebol americano da universidade e foi o primeiro negro a jogar num time de brancos no esporte universitário. A partida foi contra a universidade de Virginia, em 1947, para um público de 22 mil pessoas. Rosa Parks foi presa por não ceder seu lugar a um branco no ônibus em 1955.
Chester Pierce tornou-se comandante da Marinha e consultor de instituições como a Força Aérea dos Estados Unidos, NASA, Peace Corps, Surgeon General (órgão de saúde dos EUA composto só por militares), além de diversos projetos relacionados a juventude e direitos humanos. Sem falar, claro, no Vila Sésamo, um marco da boa televisão infantil até hoje. Era membro da Academia Internacional de Ciências e da Academia Norte-Americana de Artes e Ciências. Fez palestras em mais de 100 universidades diferentes pelo mundo.
Durante 25 anos, foi professor no MIT, atuando no Massachussets General Hospital, novamente o primeiro negro. Também criou departamentos novos de psiquiatria na universidade de Harvard, onde é um dos poucos intelectuais a ter seu retrato pendurado na parede. É o primeiro a estudar a questão do racismo sob o enfoque da saúde mental. Presidiu e foi membro do conselho de diversas associações de psiquiatria e neurologia. Fundou em 2001 a "Diáspora Africana" de psiquiatras ao redor do mundo para discutir temas raciais. Escreveu mais de 180 livros.
A biografia de Chester Pierce parece até mentira de tão fantástica. Dezenas de trabalhos empíricos e teóricos já foram feitos sobre microagressões. Neste resumo, você vai saber quem são os principais nomes, nenhum deles seguido pelas nossas estrelas acadêmicas e midiáticas do identitarismo. Sabe por quê? Os cientistas dizem que a dor das microagressões é superada com resiliência e empatia mútua, o oposto da lacração e cancelamento. Chester Pierce considerava opressão a infantilização de minorias e até subestimar crianças intelectualmente.
A prática de higienização do vocabulário humilhando publicamente quem usa palavras que provocam microagressões jamais foi proposta por ninguém que estuda o tema, só pelo parque de areia antialérgica e pelos pós-modernistas europeus e norte-americanos. Nos Estados Unidos, chama-se "call out culture", a cultura de que você precisa apontar imediatamente se vê um ataque a uma minoria, no caso uma palavra que você não gosta.
É por meio da massificação cultural do negacionismo sobre microagressões que chegamos à distopia dos "safe spaces", já presentes em muitos lugares. É a tentativa de criar um ambiente onde a pessoa não sofra microagressões porque o acúmulo delas leva a traumas e reações cada vez mais violentas. Patrulhar o ambiente piora a saúde mental inclusive das minorias, é o que mostram estudos científicos. O mais perverso é convencer pessoas que sofrem microagressão de que estão condenadas à posição de vítima.
Chester Pierce cunhou com Gail Allen o termo "childism", que é tratar a criança como eterna vítima e, ao mesmo tempo, esperar que ela seja o que os adultos mandam. É um conceito que foi estendido para minorias, para o machismo e racismo, por exemplo. Você infantiliza o grupo, diz que ele é intrinsecamente bom e seus deslizes são todos justificáveis pelas microagressões. Vejam só se não é exatamente o que prega o identitarismo, jogada de mestre. Mestre do mal.
Outro dia vi a gazeta dos revolucionários de sofá comentar BBB para infantilizar pessoas com vitiligo. Uma moça levou um fora e um chifre do rapaz com quem estava e fez um escarcéu. No mesmo minuto apareceram os bravos guerreiros da justiça social alegando que ela faz isso por acúmulo de microagressões. Não tem mensagem mais perversa a ser passada a quem tem vitiligo: não tem jeito e você nunca aprenderá a reagir.
Muita gente sofre microagressões ou pelo grupo ao qual pertence ou por alguma característica física ou pessoal. Quem passa por isso sabe o quanto dói, mas precisa saber também que não está só e tem como resolver sem precisar consertar o mundo antes. A teoria das microagressões de Chester Pierce serviu exatamente para isso: mapear quais são exatamente as microagressões, quais os danos psicológicos que causam, como ensinar a pessoa afetada a dar a volta por cima e como planejar a comunicação para reverter o quadro em que essas microagressões são normais.
Hoje, a psicologia cognitivo-comportamental já tem ótimas soluções para garantir a saúde mental de quem sofre microagressões. Não é preciso esperar eliminar todos os babacas do mundo para estancar essa dor. Também não é preciso depender do reconhecimento ou da defesa pública de outras pessoas. Todo ser humano é completo, ninguém precisa ficar amarrado no papel de saco de pancada ou vítima. Ocorre que isso é bem útil para o status e marketing dos identitaristas.
Ao mentir sobre a teoria das microagressões e convencer grupos enormes que o cérebro funciona ao contrário do que diz a ciência, o identitarismo garante que minorias não exerçam poder. Os mesmos grupos sociais que sempre dominaram os cenários econômico e cultural são as cabeças do identitarismo. Quem está fora da patota ou é minoria só pode ter espaço se for reconhecido por essas almas superiores.
Minorias são levadas a acreditar numa forma de atuação que coleciona inimigos e não cria pontes, apontar o dedo e xingar todo mundo de racista, machista, gordofóbico, homofóbico e o que mais vier, outro dia vi até "ageísta". É uma forma coerente para ser dominada por quem espalha o vitimismo, que é o negacionismo sobre microagressões. Não é libertadora nem ajuda a conquistar poder real.
Além disso, cria-se um ambiente em que minorias são vistas como infantilizadas, anjos, intrinsecamente boas. Então não podem errar, perdem o direito da experiência humana completa. São pessoas que vão viver se policiando e justificando cada erro, como se tivessem a obrigação da perfeição. Pior: serão cobradas por isso. Lembra o caso da Karol Conka? Como é negra, não tem o direito de ser má, precisa dizer que estava mal psicologicamente e já superou. Ela não cometeu crime nenhum, mas precisa ser boazinha senão não é aceita. Quem está fora das redes da patrulha identitarista sabe que seres humanos são bons e ruins ao mesmo tempo.
Chester Pierce poderia ter dito que microagressões e preconceitos são superáveis naturalmente e se citar como exemplo. Mas não era carente nem de intelecto simplório. Resolveu mapear as dificuldades extras que teve pelo caminho e criar soluções consistentes e cientificamente testadas. Fez história na produção cultural infantil com foco na diversidade. O identitarismo resolveu jogar tudo no lixo para vender o status de revolucionário à elite metropolitana de ar condicionado.
O psiquiatra que fez parte do movimento de Martin Luther King, viveu na pele a segregação racial e encontrou formas de superar deixou um legado impressionante. Criou parâmetros e modelos de como construir uma cultura de diversidade em que realmente as pessoas tenham oportunidades iguais. Dane-se. O identitarismo decidiu que temos de medir a diversidade por resultados iguais. Criar oportunidade dá trabalho demais e acabaria com o status de mecenas de minoria, tão valorizado pela elite urbana.