Ouça este conteúdo
A novela do cancelamento da escritora J. K. Rowling já dura mais de ano. Tenho amigos sensatos e bem informados que já têm como verdade que a mãe de Harry Potter seja de alguma maneira contra a transexualidade, as pessoas trans ou algo assim. Assassinato de reputação funciona, principalmente quando os agressores fingem agir em nome de uma boa causa. E aqui falamos de alguém com fama planetária e fortuna econômica.
Antes de me aprofundar no assunto, volto ao princípio, o que realmente ocorreu em junho de 2020, quando essa história começou. É importante sobretudo para dialogar com jovens. Não sabia disso até outro dia, quando conversei com uma amiga bem mais jovem que eu. Ela contou que, no seu círculo social, não cancelar a J. K. Rowling já é suficiente para estar a um passo do fascismo. Isso tem consequências na vida profissional e acadêmica das pessoas.
A criadora da Harry Potter fez uma postagem ano passado indignada com a substituição da palavra mulher pelo termo "pessoas que menstruam". Foi o suficiente para um linchamento virtual que dura mais de ano e esta semana tentaram passar a violência física. Ela resiste, muitas outras também. É por isso que o rumo da distopia começa a ser revertido.
Alega-se que usar a expressão "pessoas que menstruam" é algo necessário para não ferir os sentimentos de homens trans. Da mesma forma, substituir a palavra "mãe" por pessoa que deu à luz seria algo imprescindível. Quando o apelo vem seguido de linchamento, acaba silenciando muita gente. Nem perguntar pode. Mas eu pergunto: alguém consultou as pessoas trans se elas realmente demandam isso?
Vejo algumas lideranças incendiárias que se autointitularam donas de todas as trans do universo - algumas nem trans são - defendendo a substituição de palavras como se fosse fato científico ou axioma. Há algum fato científico nisso? Há sim. A geração que foi educada com a triagem das palavras que ofendem tem muito mais problemas psicológicos do que a anterior, como demonstrou levantamento feito pelo psicólogo Jonathan Haidt.
No mundo real já se comprovou que a aparente boa intenção de evitar palavras que ofendem gera um ambiente persecutório que aumenta distúrbios sociais e psicológicos. Então por que continuar com isso? Poder vicia. O apagamento de palavras como mulher e mãe era uma agenda importante para dar visibilidade a um movimento específico no Reino Unido: Stonewall. Este mês, eles decidiram rever a política oficialmente.
É um movimento que já começou no ano passado depois de vários baques. Stonewall não é uma loucura panfletária, é um movimento histórico que impulsionou vários avanços civilizatórios e rendeu-se à patrulha identitárias nos últimos anos. Surge quando a sociedade tinha práticas iliberais. Pessoas homossexuais e trans eram espoliadas de seus direitos civis, econômicos e profissionais pela sua condição, mesmo pagando impostos. É indigno.
Recentemente, o movimento mudou a direção e passou a promover a combinação explosiva que vemos na patrulha identitária. Em vez de promover direitos, cria um index de palavras proibidas para inferir malignidade em um adversário e tentar tirar dele tudo o que tem. Já que a galera ama Paulo Freire, cito: "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor". Soa até profético ao ver um movimento fazer exatamente o que combatia.
Depois da resistência pública de J. K. Rowling e do escândalo envolvendo a participação de Stonewall nas cirurgias de redesignação sexual de menores de idade no Reino Unido, iniciou-se um freio de arrumação. Desde 2019, os próprios membros de Stonewall reclamavam da forma como o movimento conduzia a defesa do que dizia ser a pauta trans. Gays e lésbicas reclamavam de cerceamento. Mas foi nessa semana que a coisa saiu completamente de controle.
Quando vemos linchamentos virtuais, custa a atinar as consequências reais daquilo. Há quem ainda goste de se enganar pensando que é só um bando de malucos falando bobagens na internet. Pessoas atacadas em enxame sofrem consequências profissionais, financeiras, acadêmicas, familiares e psicológicas. O problema mesmo é quando essa violência passa para o mundo real. Note que eu disse quando porque não é "se vai passar" é "quando vai passar". No caso J. K. Rowling foi esta semana.
Nós vemos muito claramente esse movimento em grupos que não são os nossos. Mas onde a gente está é difícil admitir que também acontece. Ocorre em qualquer grupo. A imensa maioria das pessoas entra em um grupo de militância por identificar-se com a causa. Mas há pessoas que querem apenas uma desculpa para ser violentas e farão qualquer discurso para isso. Traduzo na íntegra a história contada pela própria J. K. Rowling.
Na sexta-feira passada, o endereço da minha família foi postado no Twitter por três atores ativistas que tiraram fotos de si mesmos em frente à nossa casa, posicionando-se cuidadosamente para garantir que nosso endereço fosse visível.
Quero agradecer imensamente a todos que relataram a imagem para @TwitterSupport . Sua bondade e decência fizeram toda a diferença para mim e minha família. Eu também gostaria de agradecer @PoliceScotland pelo seu apoio e assistência nesta questão.
Imploro às pessoas que retuitaram a imagem com o endereço ainda visível, mesmo que o tenham feito em condenação às ações dessas pessoas, que a excluam.
Nos últimos anos, observei chocada mulheres como Allison Bailey, Raquel Sanchez, Marion Miller, Rosie Duffield, Joanna Cherry, Julie Bindel, Rosa Freedman, Kathleen Stock e muitas, muitas outras, incluindo mulheres que não são figuras públicas mas que me contataram para relatar suas experiências, fserem sujeitadas a campanhas de intimidação que vão desde ser perseguidas nas redes sociais, com pressão contra seus empregadores, até doxing e ameaças diretas de violência, incluindo estupro.
Nenhuma dessas mulheres está protegida como eu. Elas e suas famílias foram colocadas em um estado de medo e angústia por nenhuma outra razão além do fato de se recusarem a aceitar acriticamente que o conceito sociopolítico de identidade de gênero deveria substituir o de sexo biológico.
Eu tenho que assumir que @IAmGeorgiaFrost , @hollywstars e @Richard_Energy_ pensaram que fazer doxxing comigo me intimidaria a não falar pelos direitos das mulheres com base no sexo biológico. Eles deveriam ter refletido sobre o fato de que já recebi tantas ameaças de morte que poderia embrulhar a casa com elas - e não parei de falar. Talvez - e estou apenas lançando a ideia - a melhor maneira de provar que seu movimento não é uma ameaça para as mulheres é parar de perseguir, assediar e ameaçar.
Quanto mais a tecnologia avança mais precisaremos entender da alma humana e ter discernimento e sabedoria para seguir nossos princípios e valores. Estamos na era da economia da atenção e poucas coisas chamam mais a atenção do que a beligerância, a crueldade e o medo. Com a hipercomunicação nos sentimos mais poderosos e mais próximos do poder. Vemos na prática como a voz do povo mexe com as autoridades.
É tentador admitir desvios éticos, morais e violações de dignidade em nome das causas que nos são caras. Se todo o grupo de pessoas que respeitamos topar ver aquele episódio ou aquela pessoa como dano colateral, por que não? Porque legitimamos esse modo de agir e em breve ele será o dos nossos adversários. Vitórias temporárias são tão inebriantes quanto passageiras. Ao combater o mal com o mal, é o mal que prevalece. Precisamos todos os dias combater o mal com o bem.