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Paulo Henrique Machado, o Paulinho, morreu ontem no Hospital das Clínicas em São Paulo depois de 51 anos internado. Deixa uma história que deveria virar filme. Nasceu em 1969 e a mãe morreu dois dias após o parto. Com um ano e meio Paulinho foi infectado com poliomielite, era a reta final do surto vivido no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970.
Pólio não tem cura até hoje, mas tem vacina, tornada obrigatória no calendário nacional do Ministério da Saúde para que nenhuma mudança política ou econômica impeça o governo de comprar as doses e organizar a vacinação. O prédio onde Paulinho ficou internado foi construído exclusivamente para abrigar as crianças vítimas de pólio, já que a maioria não pode ser cuidada em casa.
Dos 5789 internados, a maioria teve a versão leve, que não compromete a respiração, só as pernas. Dos que tiveram o tipo mais grave, que paralisa até o pescoço e requer traqueostomia ou até o "pulmão de aço", só dois sobreviveram, Eliana e Paulinho. A equipe do Hospital das Clínicas adotou os dois e esse arranjo passou a funcionar como se fosse uma família paralela.
Se você pensou que Paulinho tem uma história triste, prepare-se para uma boa notícia: ele é a lembrança de que a vida é um dom precioso. "Vale muito a pena viver!" era a frase que usava nos perfis nas redes sociais. Do leito do HC, formou-se no que amava, conheceu seus ídolos da arte e do esporte e até concorreu a deputado estadual.
Paulinho e Eliana se tratavam como irmãos, eram os dois únicos e últimos casos de paciente de pólio internados no Brasil. O Hospital das Clínicas acabou encontrando formas de fazer com que eles pudessem sair de vez em quando e assim Paulinho realizou vários sonhos, como o de encontrar Tatá Werneck na Comic Con de 2018. Também conheceu pessoalmente seu grande ídolo dos esportes, Ayrton Senna, Will Smith, Fernanda Montenegro e diversos famosos.
Os avanços da tecnologia nos últimos 50 anos beneficiaram tanto Paulinho quanto Eliana. Ela conseguiu uma forma de viver em casa, finalmente fora do hospital. Pintora reconhecida internacionalmente, Eliana Zagui escreveu o livro "pulmão de aço" contando a trajetória da criança apartada do mundo por um vírus traiçoeiro.
Eliana conheceu pela internet o cabeleireiro Lucas Negrini, que passou a ser seu melhor amigo e assessor. Ele alugou uma casa na cidade de Sumaré, interior de São Paulo e o hospital fez a estrutura para que ela pudesse passar 20 dias a cada 3 meses em ambiente doméstico. Após a adaptação e muitos obstáculos por conta do respirador que ela precisa usar constantemente, mudou-se e foi acolhida pelo amigo. O sonho dela era levar Paulinho junto, mas ele jamais teve condições físicas para ficar tanto tempo longe do hospital.
Paulinho estudou no hospital, alfabetizou-se, concluiu a escola e fez inúmeros cursos na área em que foi apaixonado, a tecnologia. Era apaixonado por heróis e animação, não perdia uma Comic Con Experience. Passou a destacar-se no universo gamer e desde 2018 tinha canal na rede social Twitch, hoje conhecidíssima entre os gamers e nova tendência entre famosos.
Amava esportes, sempre teve Ayrton Senna como ídolo e reclamava da falta de heróis na seleção brasileira. À imprensa, disse várias vezes que a seleção preferida de todos os tempos, para ele, era a de 1982. Recentemente, havia realizado o sonho de conhecer o mar. À senadora Mara Gabrilli, afirmou que sonhava conhecer a Times Square, em Nova Iorque, desejo que infelizmente nunca pôde se realizar.
Pense em alguém que teve a vida revirada do avesso pela pandemia. Foi Paulinho. Um dos centros de referência no atendimento aos doentes é a casa dele há 50 anos. Teve de ficar isolado e sem receber visitas, comunicando-se com as pessoas virtualmente. Até então, mesmo sozinho num leito hospitalar desde um ano e meio de idade, sempre arrumava um jeito de estar rodeado de gente.
Quando ouvimos histórias como essa, é quase automático pensar que não podemos reclamar das nossas dificuldades, já que pessoas com dificuldades objetivas muito maiores fazem coisas tão maravilhosas e de bom humor. Ocorre que a vida não é campeonato de desgraça. Convido a tentar um novo olhar: o quanto a nossa sociedade perdeu em talento e criatividade com a dificuldade que a pólio impôs ao Paulinho. E justo ele, que amava tanto a vida, esteve a uma vacina de distância de viver com total liberdade.
Vacinas como a Sabin, contra a pólio, funcionam 100% quando um determinado percentual da população está vacinado. Isso acontece com várias outras vacinas. O programa de imunizações do Ministério da Saúde do Brasil, há algumas décadas é exemplo mundial. Devido a esse tsunami chamado COVID, estamos vivendo como se outras doenças não existissem. Quebrar a corrente da vacinação é abrir a porta para a volta de doenças como a que condenou o Paulinho a um leito hospitalar.
Em vários Estados, a meta mínima de vacinação não tem sido atingida. A solução é prorrogar as campanhas de multivacinação, como ocorre, por exemplo, aqui em São Paulo. O governo do Estado acaba de prorrogar a campanha até o dia 30 porque mal ultrapassamos os 50% da meta de crianças que precisam ser vacinadas. A campanha de multivacinação é para atualizar as carteirinhas das crianças de 5 a 14 anos.
Pode ser que a criança esteja com todas as vacinas em dia ou não. As autoridades de saúde compreendem perfeitamente que todas as famílias viveram um ano completamente atípico e muitos nem lembraram de vacinar. A orientação é levar a criança ao posto de Saúde e verificar. Se faltar alguma vacina, ela será aplicada na hora. Aqui em São Paulo, das mais de 700 mil crianças levadas aos postos de saúde até agora, quase metade tinha alguma vacina que foi perdida no calendário.
O Calendário de Vacinação tem 14 vacinas que imunizam contra 20 doenças. Algumas são dadas em dose única e outras em mais doses, então é normal que os pais se confundam ao olhar a carteirinha. Este ano, um pesadelo da minha infância dos anos 80 pode ser eliminado da vida dos nossos filhos: meningite. A vacina que custava R$ 500 a dose na rede particular entrou no calendário do SUS este ano.
Já havia uma vacina contra a meningite meningogócica do tipo C no SUS, mas a partir desde ano o Brasil aplica a Meningo ACWY, que protege contra 4 tipos diferentes de meningococos, bactérias que provocam infecção na meninge, membrana que recobre o cérebro. Também estão no calendário vacinas contra tuberculose, rotavírus, pólio, difteria, tétano, coqueluche, sarampo, cachumba, rubéola, HPV, febre amarela, varicela, hepatite A e hepatite B.
Fiz questão de escrever a história do Paulinho porque ele é inspirador e nós merecemos conhecer uma alma como a dele. Do fundo do meu coração, eu queria que ele tivesse vivido com mais possibilidades de voar. Não podemos fazer isso, mas podemos ajudar a escrever histórias diferentes. O final de semana está chegando e eu convido você a se unir numa corrente do bem. Se tiver filhos entre 5 e 14 anos, passe num posto de saúde com a carteirinha de vacinação, nem que seja só por desencargo de consciência. Tendo filhos ou não, dê essa ideia a uma pessoa que tem e peça para passar adiante. Que seja nossa homenagem ao Paulinho. Quem vem?