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“Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi”.
“Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi”.| Foto: Wikimedia Commons

Nunca antes na história desse país tivemos um retrocesso tão grande no combate à corrupção. E isso quem diz não sou eu, que há muito já desisti de ver um mínimo de vergonha na cara crescendo nessa fértil pátria de chuteiras. O pessoal da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE - ficou tão impressionado com nossa capacidade de passar pano que resolveu estudar melhor. Pela primeira vez na história, criaram um grupo específico para monitorar o desmonte de políticas anticorrupção em um país.

Imaginem se o Brasil tivesse sido capaz de criar instituições completamente independentes dos Três Poderes. Que os membros dessas instituições fossem selecionados a dedo, pagos regiamente e tivessem plena estabilidade vitalícia. Mais que isso, cada um seria completamente independente e autônomo para investigar. Não sobraria pedra sobre pedra no playground da corrupção. Ué, espera um pouco... Isso daí é o Ministério Público, né? Como nossos bravos guerreiros deixaram isso acontecer? Talvez o novo auxílio-saúde resolva.

Plano de Saúde é um luxo absoluto no Brasil, menos de 1 a cada 10 brasileiros tinha antes da pandemia. Eram 20 milhões de usuários, número que começou a cair vertiginosamente porque as pessoas não tinham como arcar com as mensalidades. Atualmente, 90% dos planos são contratações das empresas para empregados e muita gente perdeu o emprego. O setor criou centenas de startups com serviços alternativos e planos lowcost, com menos ofertas de cobertura. Esses fizeram muito sucesso e mais que dobraram o número de usuários, chegando a quase 50 mil.

Devido à pandemia, os planos de saúde foram proibidos de aumentar as mensalidades em 2020. Agora, em 2021, estão repassando os dois aumentos consecutivos. A Agência Nacional de Saúde Suplementar, ANS, permite a manobra porque a pandemia já acabou. Espera um momento, parece que não!!! Tudo indica que é o pior que estamos atravessando... Bom, deve haver uma razão nobilíssima para deixar mais gente sem condições de pagar plano de saúde, né? Sou de humanas, não tenho capacidade para compreender.

O Ministério Público da União tem um plano de saúde chamado Plan-Assiste. Se você já tentou contratar um plano, vai discordar quanto à nomenclatura. Não é um plano, é uma mãe. O Plan-Assiste cobre até exame de COVID e faz no Sírio Libanês. Quanto sairia a mensalidade de uma maravilha dessas? No caso de maiores de 60 anos, R$ 632,56 para servidores do Ministério Público e seus dependentes, já com o reajuste de 2021. Como a conta fecha? Não sei, sou de humanas.

No ano passado, o Plan-Assiste, que só existe para o Ministério Público da União, fechou no vermelho. Então, este ano, instituíram diferentes faixas de cobrança por idade. O plano também cobre odontologia. Aliás, quase todos os planos de empresa têm uma parte odontológica. Pagam o básico mas, se você precisar de algo mais complexo, como tratamento de canal, implante e cirurgias, é do bolso. Parte estética nem pensar. O Plan-Assiste cobre clareamento dental. Mas também não é essa esculhambação toda. Clareamento é só de dente desvitalizado, até o segundo pré-molar e comprovada a necessidade estética.

Eu falei das mensalidades mais caras, as dos maiores de 60 anos. Mas vamos à tabela completa do plano de saúde Plan-Assiste, do Ministério Público da União. Ele se destina a funcionários de carreiras jurídicas cujo salário inicial é de R$ 30 mil mais benefícios. Mandei a uns 10 corretores que conheço e já bati boca com metade deles. Vou colocar aqui as tabelas, que são públicas porque o plano é público, o Ministério Público é público e, enfim, nós somos o públio.

Desafio você a ligar em qualquer plano de saúde do Brasil e achar preços semelhantes ao Plan-Assiste, exclusivo do Ministério Público, para a mesma cobertura. Se você achar, eu não só mudo de plano de saúde como me compromento a imitar a Carla Diaz no BBB. Ajoelho diante do corretor e convido para ser meu parceiro no jogo do plano de saúde e na vida. Nem eu nem você teremos o plano maravilhoso do MPU, mas conseguimos algo: vamos pagar por ele!!! Isso mesmo!!! Acaba de ser aprovado um auxílio para o pessoal com salário inicial de R$ 30 mil pagar por isso. Justíssimo, né?

Depois de muito debate no ano passado, a criação das faixas de contribuição por idade e o reajuste este ano, uma portaria do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, definiu há alguns dias que servidores do Ministério Público podem pedir reembolso das mensalidades do Plan-Assiste. Mas também não é bagunça! Calma aí! É só até o limite de 10% dos vencimentos do servidor, ou seja, no máximo R$ 3,5 mil. Isso significa que a conta sobra para quem? Isso mesmo, nós. O valor permitido para reembolso equivale a 70% do salário médio de uma família brasileira.

O jornal Metrópoles foi o primeiro a divulgar a portaria e obviamente há uma série de justificativas técnicas para ela. Só não veio ainda a justificativa moral. Se o Ministério Público existe para defender os interesses da cidadania, estamos diante de uma distopia. Estamos no meio de uma pandemia gerida a favor do vírus. O Ministério Público até hoje não cobrou o Governo Federal que apresente um plano de combate à pandemia. O cidadão comum não tem leitos de UTI, perde a capacidade de pagar um plano de saúde. O que justifica o MPU, criado para defender os interesses do cidadão, vir com essa história justo agora?

A Procuradoria-Geral da República alega que é obrigada pela Lei Complementar 75/1993 a fornecer assistência de saúde a promotores e procuradores. É verdade.
Art. 227. Os membros do Ministério Público da União farão jus, ainda, às seguintes vantagens:
VII - assistência médico-hospitalar, extensiva aos inativos, pensionistas e dependentes, assim entendida como o conjunto de atividades relacionadas com a prevenção, conservação ou recuperação da saúde, abrangendo serviços profissionais médicos, paramédicos, farmacêuticos e odontológicos, bem como o fornecimento e a aplicação dos meios e dos cuidados essenciais à saúde;

Mas, vejam que coisa, além do direito à assistência médico-hospitalar, o Ministério Público tem o dever de zelar pela nossa. Está na mesma lei, mais de 150 artigos antes:
Art. 5º São funções institucionais do Ministério Público da União:
V - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos da União e dos serviços de relevância pública quanto:
 a) aos direitos assegurados na Constituição Federal relativos às ações e aos serviços de
saúde e à educação;
Para sair do impasse, proponho um auxílio-auxílio ao Ministério Público. Se todas as despesas forem ressarcidas sem sair do salário, finalmente poderão trabalhar sem precisar se preocupar com auxílio.

Conheço muitas pessoas honradas no Ministério Público e na magistratura. É pura sorte do Brasil que tenham passado no concurso. O modelo do concurso público não é feito para selecionar quem tem vocação para o serviço público, quando ocorre é por sorte. Os modelos das carreiras jurídicas, julgados surreais em todos os demais países do globo terrestre, tiveram boa intenção. (Desculpem-me, delegados da Polícia Civil, não é com vocês.) Independentes, com salários régios, estabilidade e um conjunto invejável de benefícios, estariam todos livres para defender o cidadão qualquer que fosse o governo ou conjuntura.

Sob o ponto de vista racional, tem lógica. Mas seres humanos não são racionais. O grupo e a comodidade são muito mais fortes para a alma humana do que a razão. É inconcebível que tenhamos toda uma estrutura para proteção de direitos do cidadão e estejamos no buraco em que estamos. Pagamos o tal do plano de saúde das estrelas a sei lá quantos servidores do Ministério Público da União, ok. E a nossa saúde na pandemia, que é obrigação deles? Tornar-se incapaz de perceber o impacto de pedir ainda mais facilidade para um plano de saúde que é uma mãe mostra como a comodidade distorce a alma humana. Erramos miseravelmente ao desenhar essas carreiras. É muito triste que não haja um movimento nacional de promotores e procuradores bradando que não aceitam tal benefício até que todos os brasileiros tenham.

Se a Procuradoria-Geral da República diz que precisa pagar o Plan-Assiste pela obrigação de dar assistência de saúde a promotores e procuradores, então o SUS não faz isso? Fiquei pensando aqui e talvez isso queira dizer que o SUS, pago por nós, não conta como assistência de saúde. Isso estraga tudo quanto é argumentação. Melhor dar o auxílio-auxílio de uma vez. Comprou um doritos? Auxílio-doritos. Um carro? Auxílio-BMW. Um terno em Miami? Auxílio-terno-de-outlet. Só o auxílio-sapatênis eu sou contra. Não conseguir decidir entre social e esporte é algo que me incomoda. Por isso o Brasil não deveria pagar.

Até agora, só o Tribunal de Contas da União exigiu do Governo Federal que apresentasse um plano de combate à pandemia. E não é nem bem o dever dele. É o do Ministério Público da União, que deve estar preparando uma peça desde dezembro de 2019. É também do Congresso Nacional, que só não pediu ainda porque precisa urgentemente botar o Danilo Gentili na cadeia. Não há situação mais sintomática da ideia de que uns são mais iguais que os outros. Quando essa noção está incrustada nas instituições de Estado, temos um problema grave e urgente.

Para mim, sair da hipocrisia já está bom demais. Não é admissível que tenhamos chegado ao ponto em que chegamos de caos na saúde durante a pandemia. Avião não cai sozinho, depende da soma do talento de vários artistas. Já estaria de bom tamanho admitir de vez quais são as regras. Se o andar de cima tudo pode e não precisa nem cumprir as próprias obrigações se for criar encrenca com o amiguinho, tudo bem, assuma. Pensando bem, seria melhor esfregar de vez na cara da sociedade a sensação de superioridade, a falta de empatia e a capacidade de dormir em paz depois de tudo isso. Quem sabe, a gente deixa de ser tão iludido com gente eloquente e passa a dar mais valor ao cidadão comum.

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