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A expressão "novo cangaço" não é minha. Foi utilizada pelo tenente-coronel Cristian Dimitri Andrade, comandante do 9o Batalhão da Polícia Militar em Criciúma, para descrever o espetáculo dantesco que se desenrolou pelas ruas da cidade na última madrugada. Já a expressão "armamentismo Peter Pan" é minha e serve para descrever o pessoal do parque de areia antialérgica que brinca com o pânico das pessoas ao tratar a vida como se fosse uma partida de videogame.
Um especialista em Segurança Pública não cravaria a expressão "novo cangaço" para qualquer coisa, trata-se de um tipo específico de ação que vem crescendo recentemente. O que se passa agora em Santa Catarina já é um pesadelo no interior de São Paulo, mas ganhou contornos mais perversos em Criciúma. Segundo as investigações da polícia paulista, este tipo de ação é destinada a financiar atividades de grupos criminosos, como o PCC.
O método chamado de "novo cangaço" consiste em sitiar pequenas e médias cidades para roubar bancos, inviabilizando a ação policial pelo risco inflingido à população civil. No dia 31 de julho, ocorreu em Botucatu, com 40 bandidos armados que aterrorizaram a cidade. Em 2 de maio, ocorreu em Ourinhos, também com 40 bandidos armados em 10 carros. Semana passada, dia 24 de novembro, foi em Araraquara, interior de São Paulo. Fico apenas nos mais recentes.
Todos os casos têm em comum os roubos a banco e explosões, seja das agências bancárias, caixas eletrônicos, delegacias e bases da polícia. Também se repetem os armamentos pesados, bandidos mascarados e muito preparados para a ação, interdição de ruas e, às vezes até da entrada e saída da cidade. A novidade em Criciúma é o uso de cidadãos e garis como escudos humanos para liberar passagem.
Por uma série de razões, o Brasil acaba sendo rigoroso com o pequeno bandido e leniente com a criminalidade organizada, que chega a ser retratada até com certo charme na nossa produção cultural. Poder não admite vácuo. Diante da ausência sistemática do Estado onde deveria estar presente, foi possível que o poder paralelo se instalasse na forma de organizações criminosas ligadas ao tráfico de drogas e ao trabalho de milícia policial.
Você encontrará entre cidadãos de bem pessoas que ficam muito indignadas enquanto ativamente colaboram com um ou com outro. Há o que despreza a criminalidade e a violência, mas compra de traficantes. Há o que despreza "os maconheiros hipócritas", mas é leniente com milícia. E há ainda quem xingue os dois e seja leniente com a presença do poder paralelo no carnaval.
Seria simples tratar o fenômeno como uma falha de caráter ou deslize moral, já que individualmente seria possível evoluir. Ocorre que criamos no Brasil um sistema que tolera tacitamente a hipocrisia e condena quem aponta o problema da existência de poderes paralelos. Na democracia, todo poder emana do povo e em nome dele é exercido. O poder paralelo emana da mistura de miséria com violência e é exercido em nome de muita coisa, jamais do povo.
Essas estruturas gigantescas são caras, precisam de dinheiro para funcionar e competir umas com as outras. As opções de financiamento até agora eram tráfico de drogas, de armas e de pessoas e serviços como gatonet, entrega de gás, proteção de pessoas, ameaça a inimigos, cobrança de taxa das famílias de presos. São todas de altíssimo risco e retorno difícil, pois é necessário fazer muitas operações simultâneas com pequenos valores para juntar grandes quantias. Risco por risco, estamos diante de uma nova atividade desses grupos, a de roubar de uma vez dos bancos sitiando cidades. Agora, chegamos a um passo além, escudos humanos.
Pouco importa se você é contra ou a favor de armar a população, somente pessoas com a complexidade de raciocínio do Dollynho colocam essa questão como possível solução para esse fenômeno. Há uma discussão liberal e teórica sobre o Estado ter ou não o monopólio da violência, com posicionamentos muito respeitáveis de ambos os lados. Isso é muito diferente de sugerir que a dona Josefa, 63 anos, aposentada do BESC em Criciúma, tenha uma arma pessoal para se defender das bazucas do novo cangaço.
A discussão sobre ter ou não uma arma está no campo dos direitos individuais e do monopólio estatal da violência. Colocá-la como solução de Segurança Pública pode ser oportunismo ou insegurança e fantasia a respeito da própria capacidade de reação. Já conheci pessoas que nem atiram e gostam de ter armas em casa, colecionadores. Conheço muita gente que pratica tiro como esporte, alguns têm armas próprias e outros não se sentem bem tendo arma em casa. Também há um fator de individualidade na questão, que é complexa. Pode haver gente gritando contra armas e que tem arma em casa e outros que acreditem no direito de ter armas mas que não fariam essa escolha.
A sequência de vídeos mais impressionante que vi foi coletada pelo perfil Fla Resenha News, que se dedica a notícias sobre o Flamengo. Ela mostra claramente como os bandidos utilizaram pessoas que estavam nas ruas ou garis como escudos para garantir a fuga. Ameaçavam com armas de grosso calibre, faziam tirar a roupa e punham para andar, abrindo caminho, com as mãos na cabeça.
Nas operações no interior de São Paulo, a ação policial já era muito difícil pelo risco à população civil. O objetivo de uma ação policial é, em primeiro lugar, preservar vidas inocentes e garantir a segurança das pessoas. Brigar com bandido vem depois, não antes, como supõem alguns. A polícia paulista chegou a resistir e, embora não tenha conseguido impedir, prejudicou a ação de grupos que colocavam fogo nas entradas das cidades, faziam reféns e provocavam explosões. Como agir quando cidadãos comuns são forçados a se despir e usados como escudos humanos por bandidos? É um cenário trágico e gravíssimo.
Foram chamados policiais de diversas cidades, inclusive o Choque e o BOPE de Florianópolis. Conseguiram impedir assassinatos, mas não o terror nem o sucesso da operação. Um comboio de 10 carros lotados de dinheiro deixou a cidade na madrugada, levando os bandidos. Estamos diante de um alerta para as aventuras de políticos que usam impeachment como se fosse aspirina infantil. O cangaço urbano toma conta de Santa Catarina depois de um abalo importante na cadeia de comando da polícia, o entra e sai de governadores.
Governadores são os chefes das polícias civil e militar. Quando essa liderança é abalada, por mais que os comandantes e delegados gerais sejam firmes, há reflexos na tropa. Durante o período eleitoral, foram abertos dois processos de impeachment contra o governador Carlos Moisés. São pedidos com justificativas muito questionáveis, o primeiro deles julgado totalmente inepto. Na realidade, o problema foi político, como em todo processo do tipo. Bombeiro militar eleito pelo bolsonarismo, o governador era visto como traidor por ter convidado Sergio Moro para a Secretaria de Segurança do Estado assim que saiu do governo.
O grupo que arquitetou o plano é o departamento artístico do PSL, aquele que é mais ativo nas redes sociais do que trabalhando. Assumiu a vice-governadora Daniela Reinehr que, desde o primeiro momento se mostrou publicamente muito frágil como líder. Confrontada com declarações nazistas do próprio pai, não foi capaz de se posicionar com firmeza. Acabou refém do mesmo grupo político que causou o impeachmet e não conseguia exercer autoridade nem sobre a própria conta de Twitter. Se postava algo que causava chiliques nos deputados mais estridentes, apagava, ainda que fosse de utilidade pública.
A vice-governadora, durante o tempo em que esteve como governadora, realizou dois atos simbólicos que pesam bastante na estrutura de poder. Primeiro demitiu, sem consulta prévia, o chefe de gabinete de Carlos Moisés. No serviço público, em situações como essa, é um recado enorme de que não reconhece a liderança ou a legitimidade do outro e de seu grupo. Se fez isso, por exemplo, quando Delcídio Amaral foi preso, após votação do Senado permitindo a prisão. É uma medida extrema. A outra atitude foi cancelar o aumento dos procuradores, determinado pela Justiça do Estado, e que gerou todo o imbroglio do impeachment.
Durante um mês no governo provisório durante o impeachment, foram exonerados 60 integrantes do primeiro escalão. Qual o impacto desse furacão sobre a cadeia de comando das polícias e a eficiência do trabalho no dia a dia? Boa reflexão para os 33 deputados estaduais que não hesitaram em substituir o comando e aproveitar os holofotes para resolver um tema que poderia ser apurado de outra forma.
Após o impeachment de Dilma Rousseff, o primeiro feito na era das redes sociais, o mundo parlamentar compreendeu os dividendos que tira de um evento como esses. Santa Catarina não é o único Estado com processos do tipo em andamento, há por todo o Brasil. Muitos falam de superfaturamento ou ilícito no enfrentamento da pandemia. Quem faz discursos apaixonados contra os governadores acaba produzindo um belíssimo material de marketing, demonstração cabal da postura contra a corrupção. Só não contam que, com a loucura que foi o início da pandemia, a não ser em ações muito evidentes é impossível apurar tão rápido o que está dentro das regras ou não.
Provavelmente houve casos de superfaturamento e de gente que se aproveitou da situação. A maioria da gritaria, no entanto, é sobre casos em que não há comprovação contundente. Muitos produtos tiveram enorme alta de preços, foi necessário fazer essas compras e o próprio Ministério da Saúde recomendou salvar vidas primeiro e debater burocracia depois. Lembremos que, àquela altura, Luiz Otávio Duarte foi esculhambado na imprensa por recomendar o certo, ficou com pecha de leniente com a corrupção. Foi a senha para os aventureiros.
É direito desses parlamentares todos brincar de impeachment para bombar redes sociais, só não é dever. Somos um país que ama direitos e corre dos deveres mais que o diabo da cruz. É preciso que tanto os políticos quanto a imprensa e os eleitores repensem as consequências de ações midiáticas que abalam cadeias de comando, principalmente na Segurança Pública, uma chaga brasileira. Tirando os 5 deputados que foram contra fazer um impeachment para investigar uma questão que já estava na Justiça, os demais têm seu quinhão de responsabilidade.
Durante o governo provisório, Daniela Reinehr tirou dinheiro da Polícia Militar do Estado. Transferiu R$ 140 milhões do orçamento para cobrir o rombo da previdência. Juntas, essas ações causaram abalo nas forças policiais, que pode ou não ter sido determinante para o ataque do novo cangaço em Criciúma. Uma coisa é certa: a instabilidade não dificultou a vida dos bandidos no Estado. Em todos os lugares onde há processos parecidos, movidos principalmente a holofotes, esse risco se repete.
Tratar a política como espetáculo e dividir o mundo entre mocinhos e vilões pode ser eletrizante, mas é um luxo caríssimo. Estamos pagando a conta. Em todo momento grave surgirão oportunistas. Levar a sério quem pretende usar este episódio para levantar um debate inflamado sobre armas é um erro. Essa atitude legitima os políticos que estão fazendo o mesmo, vivendo de debates inflamados que ignoram a realidade e as consequências na vida do cidadão.
Pessoas são complexas, todos temos virtudes e defeitos, todos nós acertamos e erramos. Em Criciúma, por exemplo, após a fuga dos bandidos, a polícia acabou prendendo 4 pessoas com R$ 810 mil. Não eram da quadrilha. Eram, até então, cidadãos comuns, moradores do centro da cidade que, num primeiro momento, também se apavoraram com o tiroteio. Depois, no entanto, saíram para recolher na rua o dinheiro que os bandidos deixaram para trás. Não foram os únicos. A polícia teve que tirar das ruas um monte de gente que fazia o mesmo.
"Para todo problema complexo há uma solução simples, elegante e completamente errada", disse H. L. Mencken. Estamos diante de uma novidade dantesca da criminalidade, a prática do novo cangaço, que só pode ser enfrentada por instituições fortes. E vivemos isso na era da apoteose da superficialidade, em que há líderes de todas as áreas priorizando as redes sociais em detrimento das consequências reais de seus atos. Seria sensacional se fosse possível resolver tudo isso na base da bala, bravata, gritaria ou discurso de valentia. Desconfio que já teríamos resolvido. É hora de chamar os adultos na sala.