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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Países ricos priorizam royalties a vacinação em massa e Brasil concorda

vacinação argentina
(Foto: Ronaldo SCHEMIDT/AFP)

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Fico alerta todas as vezes em que o Hermes e Renato em que se transformou a política ganha ares de deep web. Essa semana, tivemos o discurso do novo Lula, versão 2022, ainda sem nome de batismo. O de 20 anos atrás foi batizado de "Lulinha paz e amor". Tivemos um recuo tático do atual presidente, que permanece em campanha e que fez parte da campanha vitoriosa do Lulinha paz e amor há 20 anos. Foi depois de usar a internet para ajudar na campanha de Ciro Gomes. Durante aproximadamente 15 minutos, o presidente da República agiu nas mídias sociais como tal. Era tanta a mudança que temi ver um tuíte dizendo "Brasil acima de tudE, Deus acima de todEs". Obviamente era fogo de palha.

A boca fala do que está cheio o coração. Não demorou um dia para que o filho do presidente da República, deputado de milhões de votos pelo meu Estado, voltasse ao tema preferido de sua trupe. Fui até conferir se estão fazendo alguma especialização em proctologia, mas não. Estranho. É o único ambiente em que já havia visto tanta dedicação ao debate sobre o orifício anal. O deputado consegue encaixar o tema numa discussão sobre uso de máscaras. Espero que alguém já tenha explicado a ele a forma correta de uso, deve ter sido um tortura até agora. O pior é que esse fundo do poço teria um subsolo.

No século passado, fui cobrir uma ocorrência policial na avenida Paulista pela Jovem Pan. A chefia de reportagem ordenou que eu divulgasse um suicídio ao vivo. Recusei e disse que poderiam me demitir sem problemas, eu era arrimo de família, sem pais, dois avós e dois irmãos menores. Não sou nem fui heroína, isso é o mínimo que se espera de quem tem compromisso com o público e todos os meus colegas à época teriam feito o mesmo. Recebi desculpas depois até da chefia que havia feito o pedido e um agradecimento por ter mantido o sangue frio. É a emissora que ontem transmitiu a leitura de uma carta de suicídio ao vivo.

Não consegui referência histórica de um presidente da República que tenha lido uma carta de suicídio ao vivo para todo o país que governa. Além do mais quando esse espetáculo sádico de deep web serve para criar uma narrativa de defesa política. Amigos, nem para o nosso nível atual de chiqueiro moral isso cola. Fui atrás. Ontem houve uma reunião na OMC para criar uma espécie de genérico da vacina para baratear e acelerar a vacinação. Países que recolhem royalties são contra. E, pasmem, o Brasil também.

É a terceira vez que se tenta agilizar e baratear o acesso dos governos a vacinas. O Brasil é o único país em desenvolvimento e que não recolhe royalties de vacinas a ser contrário nas três votações. Em todas as oportunidades tivemos anúncios bombásticos da presidência. Depois das duas primeiras, eu temia o que viria em seguida. Oro diariamente para que esse pessoal não resolva sensualizar para atrair a ira dos comentaristas políticos nacionais. Já temos desgraça o suficiente na vida.

A proposição que tramita na Organização Mundial do Comércio foi organizada pela África do Sul e é semelhante a algo que já foi feito quando da descoberta do vírus HIV. Existe uma proposta para que, temporariamente, sejam suspensos todos os direitos de propriedade intelectual para vacinas ou qualquer tratamento que se venha a descobrir para o COVID-19. Doenças virais são combatidas com vacina, principalmente quando atingem níveis epidêmicos ou pandêmicos. Até hoje não fomos muito eficientes em desenvolver antivirais que impedissem a propagação. No caso das doenças bacterianas, as coisas se equilibram.

Os governos sabem que a pandemia só será contida com vacinas, por isso propõem a suspensão dos direitos de propriedade intelectual na primeira onda do combate. A diferença não é apenas o barateamento, é na rapidez da vacinação em massa. Você tem acompanhado a novela mexicana que é a negociação individual com cada laboratório. Isso deixaria de existir. As vacinas já descobertas poderiam ser reproduzidas livremente, com supervisão e transferência de tecnologia, sem os trâmites burocráticos. O governo do Brasil votou contra isso ontem, pela terceira vez.

A primeira vez em que o Brasil votou contra o "genérico de vacina de COVID" foi no dia 19 de outubro do ano passado. Coincidentemente, teve evento bombástico. Era o anúncio do um "estudo clínico" sobre COVID do Ministério da Ciência e tecnologia que teve este discurso de sua Excelência, o presidente da República. É aquele dia em que o ministro Pazzuelo estava internado com COVID, o presidente disse que é porque ele é meio gordo, defendeu hidroxicloroquina e disse que ninguém seria obrigado a se vacinar. Disse também que havia conversado com governos africanos sobre o uso do remédio para malária. Poderia ter conversado sobre não vetar vacinas mais rápidas e baratas para a gente, né?

O anúncio era a tal da montanha que pariu um rato. O Ministério testou dois mil remédios antivirais contra o COVID e disse que cinco deles apresentaram "resultados promissores". O promissor era in vitro... O remédio funcionar contra a célula numa lâmina de laboratório é bom, mas lembremos que a diferença entre remédio e veneno chama-se dose. No final, até hoje ninguém viu o resultado dos tais dos estudos. Quer dizer, um resultado a gente viu: cadê as notícias sobre a gente não ter vacina e pagar mais porque o nosso governo quis assim? Pois é.

A notícia que interessava ao público estava muito distante do espetáculo farsesco promovido naquele 19 de outubro no Palácio do Planalto. Foi o glorioso dia em que o nosso astronauta anunciou a tentativa de usar o Anitta, vermífugo infantil, contra COVID. Fiquei com tanta raiva que até devolvi dois travesseiros da NASA comprados só por causa dele. Descobri que o "NASA" refere-se a Nobre e Autêntico Suporte Anatômico. Mais uma desilusão. Tudo isso no mesmo dia em que estas mesmas autoridades federais votaram internacionalmente contra vacinas mais rápidas e mais baratas para a gente.

A outra reunião tentando votar suspensão de direitos de propriedade intelectual de vacinas foi no dia 10 de dezembro do ano passado. O pessoal da comunicação do governo teve ter agradecido ao universo por ser uma quinta-feira. Dia de live não precisa constranger ministro, bolar evento oficial, nada disso. Basta mobilizar o país com mais uma declaração abjeta que os críticos vão ficar só nisso. E, claro, ninguém daria atenção à segunda negativa brasileira a vacinas mais rápidas e baratas.

Naquele dia, muita gente no mundo político começou a cobrar um plano detalhado de vacinação do Governo Federal. O plano de combate ao COVID em si, só o Tribunal de Contas da União ainda cobra há mais de um ano. Alguém precisa avisar que faz parte da job description dessa galera que está no governo. Às vezes penso que não foram avisados, por isso trabalham só fazendo campanha e lacrando em rede social. Estávamos em 180 mil mortes. Mais uma vez, o Brasil votaria na OMS contra o plano de acelerar a vacinação em países como o nosso. O que fazer?

O presidente da República fez uma live dizendo que a pandemia vivia "um finalzinho de pandemia" no dia 10 de dezembro de 2020. Obviamente os críticos e, no caso específico, até apoiadores ficaram horrorizados com a inconsequência. Somos ótimos de iniciativa e patéticos de terminativa, então a estratégia foi ouvir todo mundo que sofre com a pandemia contrariando o presidente da República. Talvez o interesse do público estivesse em outro lugar: por que o governo brasileiro se opôs na OMC, mais uma vez, a vacinas mais rápidas e mais baratas?

E vimos o Vale a Pena Ver de Novo dessa história ontem, na Organização Mundial do Comércio. Economistas do mundo todo estão fazendo julgamentos pesadíssimos sobre os países que se colocam contra a renúncia temporária a direito de propriedade intelectual das vacinas. Não contra o Brasil, que eles sequer conseguem entender por que faz isso com o próprio povo. O julgamento é pesado sobre os países ricos, as grandes economias, que sacrificam vidas nos países pobres para beneficiar empresas em solo nacional. Na dinâmica internacional, o benefício é tênue, já que a economia não se recupera com a pandemia em andamento.

Se os países mais pobres não conseguem a vacina, a pandemia continua e o comércio internacional é afetado. Não há como fugir disso. Por isso, economistas internacionais condenam a postura de países de primeiro mundo que lutam com todas as garras pela proteção da propriedade intelectual de suas empresas às custas da vacinação em massa. A postura do presidente Jair Bolsonaro ninguém consegue entender. Ele próprio não conseguiu negociar nada nem próximo do suficiente para a vacinação dos brasileiros e negou três vezes a facilitação das vacinas. Haja live lacradora para se livrar isso.

Ontem, o presidente da República cometeu a indignidade de ler o que disse ser uma carta de suicídio e atribuiu ao "lockdown". Conseguiu ser apedrejado por gregos e troianos, mas não lhe foi feita a questão que interessa a nós, brasileiros. Se considera o distanciamento social tão grave, por que nega aceleração da compra da vacina, que evitaria a necessidade de "lockdown"? Por que fez isso 3 vezes? Negar três vezes não é, na tradição humana, atitude que leva pessoas a bons destinos. Talvez se pegasse a equipe que faz comunicação de impacto e botasse para comprar vacina, funcionaria melhor. Pelo menos sabemos que têm sido eficientes.

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