Uma das pesquisadoras que participa do documentário Coded Bias defende uma tese bem assustadora. Para ela, a única diferença entre a vigilância do Partido Comunista Chinês e das Big Techs é a sinceridade. Enquanto o governo da China diz abertamente que censura as redes sociais e criou até um sistema de pontuação, as empresas fazem o mesmo em conjunto com outros governos mas fingem ser democráticas.
Empresas conseguem se aliar a práticas governamentais autoritárias com a ajuda de um mercado em franco crescimento, o da autoajuda fantasiada de militância ou ESG (governança ambiental, social e corporativa). As Big Techs amam fazer o discurso da diversidade e patrocinar iniciativas contra o ódio e o autoritarismo. Isso alivia a culpa e a alma de muita gente, que passa a fechar os olhos para as ações preconceituosas e autoritárias das mesmas empresas.
Ontem, o Partido Comunista Chinês proibiu qualquer elogio à vitória histórica da cineasta Chloé Zhao, nascida em Pequim. É a primeira asiática e segunda mulher a vencer o Oscar de melhor direção. Não pensem que os chineses ignoram o Oscar, eles seguem cinema. Havia plataformas de streaming passando ao vivo as cerimônias anteriores. Mas a filha da terra ousou criticar o Partido Comunista, uma única vez e de leve. Foi deletada da história.
Em março, ela ganhou o Globo de Ouro e foi celebradíssima pelos tablóides da mídia oficial chinesa, chamada de "o orgulho da terra". Como ficou conhecida, os internautas acabaram ressuscitando uma entrevista que ela deu em 2013. Falou à revista Filmmaker, dos Estados Unidos, que a China de sua infância era um lugar cheio de mentiras. Ousou dizer a verdade e virou mais uma mentira do governo chinês.
Após descobrir uma única declaração contrária, o governo chinês apagou a história da cineasta que meses atrás era celebrada como "o orgulho da terra". O filme premiado de Chloé Zhao não tem data para chegar aos cinemas, a imprensa nacional não falou do Oscar, as menções a ela ou ao filme foram banidas das redes sociais e nem a transmissão do Oscar por streaming foi permitida este ano no país. É assustador, mas pelo menos a China assume o que faz. Imagine que pode ocorrer o mesmo com a gente sem ninguém perceber.
O documentário Coded Bias mostra na prática como funciona essa questão dos bloqueios das redes sociais na China. Existe já um sistema de pontos, como o da série de ficção Black Mirror. Um dos critérios para ganhar pontos é falar bem do governo, um dos critérios para perder é falar mal ou ter parentes e amigos que falem mal. Os pontos definem que empregos você pode ter, empréstimos e onde pode morar. A falta deles pode proibir viagens de avião, trem e metrô. Milhões de pessoas já são proibidas anualmente de fazer essas compras.
Ouvindo assim parece assustador. Mas só parece porque sabemos exatamente o que ocorre, já que o Partido Comunista Chinês não tem pudor nenhum em revelar qual é sua política de cancelamento de pessoas. A influencer chinesa entrevistada no documentário Coded Bias acha até bom que tenham feito o sistema de pontos. Para ela, era muita perda de tempo ficar conhecendo gente até saber se a pessoa presta ou não. Agora, ela olha os pontos e conclui imediatamente.
É assustador saber que pessoas preferem que o Partido Comunista Chinês decida quem é ou não bom. Infelizmente, liberdade não é um conceito caro a todos sobretudo quando tem custo em responsabilidade e tomada de atitude. Suponhamos que não seja dito claramente que alguém será cancelado por algum interesse, como é na China. Quantos vão entrar na onda e quantos vão se levantar pela liberdade e dignidade? Muitos gostarão de se livrar do ônus de se posicionar e as redes sociais propiciam grupos que fazem isso.
Ontem, o Twitter providenciou que o governo da Índia, democraticamente eleito, pudesse tomar uma atitude semelhante à da ditadura do Partido Comunista Chinês. Nahendra Modi fez inicialmente uma boa gestão midiática da pandemia, mas esqueceu que o coronavírus não está nem aí para isso. Está agora diante de uma tragédia e uma crise humanitária inédita no país. Governadores estão pedindo para que as famílias cremem seus mortos em casa. Faltam vagas nos hospitais e oxigênio para os doentes. Os Estados Unidos estão doando vacinas já que, mesmo produzindo, a Índia não conseguiu dar conta da vacinação.
Diante de um cenário de caos e mortes evitáveis, inevitável que pessoas façam críticas se vivem em uma democracia. Caso vivessem na China, pensariam duas vezes, já que pode não valer a pena perder classificação social e as postagens seriam bloqueadas mesmo. Na Índia, o governo pediu para bloquear tweets específicos com críticas e foi prontamente atendido. É a mesma coisa que a China faz, mas com desculpas bonitinhas, sem assumir que se trata de autoritarismo.
Quem tem Big Techs não precisa do Partido Comunista Chinês. Aliás, se você está preocupado em parecer bonzinho, melhor ficar com as Big Techs mesmo, que dão a chicotada e convencem que é carinho. O jornal indiano Medianama foi o primeiro a noticiar a derrubada dos posts e a mentira contada para justificar o bloqueio. Segundo o governo, eram posts que prejudicam o combate à pandemia. Eram posts críticos ao governo. Não é a primeira vez que isso acontece.
O próprio Twitter confirmou quais foram as postagens suprimidas e disse que foi a pedido do governo indiano. O jornal perguntou ao Twitter sobre os posts suprimidos e a resposta foi a seguinte: "Quando recebemos uma solicitação legal válida, nós a analisamos de acordo com as Regras do Twitter e com a legislação local. Se o conteúdo violar as regras do Twitter, o conteúdo será removido do serviço. Se for determinado que é ilegal em uma jurisdição específica, mas não uma violação das Regras do Twitter, podemos reter o acesso ao conteúdo apenas na Índia. Em todos os casos, notificamos o titular da conta diretamente para que eles saibam que recebemos um mandado relacionado à conta. Notificamos o (s) usuário (s) enviando uma mensagem para o endereço de e-mail associado à (s) conta (s), se disponível. Leia mais sobre nossas Perguntas frequentes sobre solicitações legais. As solicitações legais que recebemos são detalhadas no Relatório de Transparência do Twitter semestral, e as solicitações de retenção de conteúdo são publicadas no Lumen".
Apenas após a cobrança do jornal os usuários foram avisados da suspensão. Então a imprensa indiana soube que não se tratava apenas dos 3 casos identificados, eram mais de 50 postagens de críticos e adversários, suspensas em território indiano. O mais curioso é que o Twitter diz que não houve violação de suas regras, mas de leis locais. No entanto, não diz qual lei foi infringida e não há julgamento sobre o tema.
O Medianama perguntou ao governo de Nahendra Modi qual o motivo da solicitação de retirada das postagens. A alegação é de que houve “uso indevido de mídia social” e essas postagens foram removidas para “evitar obstruções na luta contra a pandemia e escalada da ordem pública”. Antes do período de maior desastre humanitário na Índia, houve uma revolta popular prevendo que a desgraça era inevitável diante da má gestão da crise. Na época, 500 contas foram suspensas a pedido do governo.
O Partido Comunista Chinês jamais escondeu a importância que dá ao controle das mídias sociais para controlar a população. Nahendra Modi chegou ao poder usando bastante as mídias sociais. Pode parecer ridículo que, diante da catástrofe que vive, o governo da Índia pense em censurar tweet. Se não fosse importante, não faria. Quem tem mais controle das liberdades hoje, a China ou quem controla fingindo ser democrata?
O primeiro sumiço de Tweet a ser percebido foi da ministra do Estado de Bengal Moloy Ghatak: "A Índia nunca perdoará o Primeiro Ministro @narendramodi por subestimar a situação do corona no país e deixar tantas pessoas morrerem devido à má administração. Em um momento em que a Índia atravessa uma crise de saúde, a PM optou por exportar milhões de vacinas para outras nações #ModiHataoDeshBachao".
Sumiram também Tweets puramente informativos, como o do membro do parlamento Revanth Reddy falando do número de mortos e colapso nos hospitais. O ator Vineet Kumar Singh teve tweets removidos porque relatou a dificuldade de encontrar remédios em Varanasi e criticou a realização de comícios eleitorais no meio do caos humanitário. Não há desinformação nem mau uso de mídias sociais, o que há é crítica aos comícios eleitorais que disseminam o vírus feitos sistematicamente pelo primeiro-ministro que pretende se reeleger.
No meio de um processo eleitoral, soa muito pouco democrático que uma empresa decida quais políticos podem ou não se comunicar diretamente com o público. Na prática, é isso o que ocorreu. O Partido Comunista Chinês faz igualzinho, mas tem de arcar com o ônus. As políticas de controle da liberdade e do pensamento são criticadas em todo o mundo livre e, vez ou outra, geram sanções ao país. As Big Techs não arcam com o ônus do que fazem. Gente esperta sempre disse que o livre mercado é mais eficiente que o comunismo. Está aí a prova.
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