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Em 28 de julho de 1794, Maximilien de Robespierre, um dos maiores entusiastas do uso da guilhotina por um mundo melhor, foi guilhotinado. Não existe política do "lado do bem" contra o "lado do mal". Nessa lógica só é possível a antipolítica, que será transformada em terror pelas características próprias da alma humana.
O poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente, dizia o Lord Acton. A gente ouve isso e já lembra de corrupção porque a contagem de corrupto por metro quadrado é um escândalo no Brasil. Mas aqui se fala de alma corrompida, de falta de limites, de abusar ou não mais merecer exercer poder. Esse foi o problema de Robespierre, chamado publicamente de "o incorruptível".
Ontem, a drag Rita Von Hunty, que teve uma ascensão fenomenal nos ambientes mais sofisticados da esquerda intelectual, foi cancelada nas redes sociais. Motivo: disse que não vai votar no Lula no primeiro turno, vai votar no PSTU. A esquerda gourmet veio abaixo revoltadíssima. Como eu, provavelmente aprenderam mais sobre figurino do que sobre política com a influencer.
Lula e a esquerda defendida por Rita Von Hunty são profundamente distantes. Mas, para saber isso, você tem de ler aqueles livros chatérrimos de 500 páginas e ter pai sindicalista, católico e conservador que nem eu. Ele vai tomar lição de tudo e te botar na linha para ler. O público de Rita Von Hunty vê YouTube, frequenta cursos carésimos da Casa do Saber, vai a saraus da Editora Boitempo. Claro que moda é muito mais importante que ler um mundo de coisa de política nesses ambientes.
Cá entre nós, eu aprendi muito sobre moda com a drag, adoro o estilo clássico e amo o deboche dessa representação na educação política. Mas a esquerda de que fala é a que não aceita concessões ou negociações, como a social-democracia de Lula. É outro papo completamente diferente.
A esquerda representada por Lula - aqui falo de teoria política, não dos fatos que você inevitavelmente vai lembrar - é aquela que aceita exercer o poder fazendo alianças e reformas. A esquerda de que Rita Von Hunty fala em seus vídeos é cristalina para quem se deu o trabalho de ouvir, é aquela revolucionária, que considera os acordos indignos.
Para você entender esse pensamento, volto a 2018, quando levei aos estúdios da Gazeta do Povo a legítima representante dessa corrente de esquerda. Vera Lucia, do PSTU, foi expulsa do PT em 1991 considerada radical demais: era favorável ao impeachment de Collor antes da hora. Ela prega uma revolução socialista armada e a imediata expropriação de bens de todos os corruptos:
Quando alguém admite publicamente que esperava um voto útil em primeiro turno de Rita Von Hunty em Lula não faz nada além de passar atestado de ignorância. E sobrou ignorante na rede. É natural que ela achasse indigno fazer concessões, esperasse um discurso ideológico bem mais contundente e fosse preferir opções mais alinhadas ao seu pensamento político. Luloafetivos não têm pensamento político, têm adoração.
Agora, toda a esquerda gourmet está feliz dizendo que a drag só é contra voto útil em Lula porque estava em Portugal. Todo mundo que é contra voto útil em Lula está com a vida ganha. E começa aí a difamação, o "você nunca me enganou", o "esperava mais de você". O processo de cancelamento não é exatamente o conteúdo dito sobre a pessoa, é o efeito manada.
Lula tem em sua barca o identitarismo, que é um grupo extremamente radical e autoritário, com o agravante de já dominar a comunicação, a publicidade e ter muito dinheiro. Agora, ainda desorganizado, esse grupo começa a colocar as garras de fora. Diante do primeiro questionamento, tenta dar uma punição exemplar. Dissidentes perdem tudo, são transformados em leprosos. Imagine essa máquina consolidada no poder.
No momento, o importante para o grupo é um comportamento autoritário justificado com a manutenção da democracia. A única forma de garantir a democracia é dar um cheque em branco a Lula e derrotar Bolsonaro. Portanto, quem contrariar, é fascista, raciocinam os luloafetivos. Não estão em busca de democracia, estão diminuindo a base em vez de aumentar. A trilha é a do radicalismo político.
Condenei o cancelamento de Rita Von Hunty porque condeno a presença da antipolítica na arena política. Ela nos leva a autocracias e eu sou democrata. Vários amigos vieram relatar ter sido cancelados pela drag e é verdade. Continuarei sendo contra todos os cancelamentos. Fui contra o cancelamento de quem ajudou o Escola sem Partido a pedir minha cabeça em 2019, continuarei coerente. Não importa se o fulano merece ou não ser cancelado, importa o que você e o Brasil merecem.
Somos um país sebastianista. Valores democráticos, patrióticos e sentido de nação não fazem muito sucesso entre a gente quando a coisa esquenta. Racionalmente, se a gente for conversar, será praticamente consenso que educação, valores e moralidade nos tirarão do buraco. Chegou a hora do voto, esqueça. Fulano de tal vai nos salvar. Parece maldição.
O mais grave é que vivemos reclamando dos políticos e daí, na hora do aperto, coletivamente acreditamos que o menos pior deles vai nos salvar do pior. Não vai. Ninguém vai nos salvar porque não precisa. Os políticos nos tratam como nós permitimos. E nós sistematicamente permitimos que cidadãos sejam pisoteados pela política em nome de ter razão.
Já perdemos as contas da honra de quanta gente foi enxovalhada, quantos foram perseguidos, ameaçados. O prejuízo pessoal que tanta gente precisou pagar por perseguição política no Brasil democrático é incalculável. Mas ele não existe porque os políticos são monstros nem por causa dos monstros que existem. Esse prejuízo existe por causa dos sonsos.
O sonso é o que vê a injustiça acontecer, pode evitar mas finge que não vê ou até justifica. Não tem coragem de fazer mas sente prazer com aquilo. Da minha parte, prefiro os canalhas. Você sabe a que vêm e têm pelo menos a honra de pagar o preço público da execração. Nem todo canalha é covarde, mas todo covarde é canalha. E eles precisam ser tratados da maneira que são.
A política existe para que a gente possa construir um modelo de país que é nosso, de todos. Eu acredito inclusive que a alternância de poder é saudável, quero obviamente estar do lado que vence mas sei que a vitória eterna do meu lado fará com que ele apodreça. Talvez eu viva para ver um país ser construído para as próximas gerações, pensando em gente que possa sonhar, viver e ter dignidade.
Seja como for, vai depender desse pessoal que está hoje se digladiando para decidir quem está certo, qual político é o pior ou o menos pior e o que a gente não aguenta mais. Em algum momento teremos de perceber que a prioridade é o Brasil unido, não dividido. Nenhum cidadão pode ser sacrificado no circo da política, os políticos que briguem entre eles sem trucidar a nação.
Ainda não sei o que nos falta para perceber que todo Robespierre será guilhotinado. Todo jacobinismo acabará em terror e implosão. Toda ideia que depende de um ser humano com vergonha das características humanas está fadada a dar errado. "Ou aprendemos a viver juntos como irmãos ou iremos perecer juntos como idiotas", dizia Martin Luther King. A escolha continua na mesa.