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Se gambiarra e hipocrisia fossem categorias olímpicas, o Brasil seria hors concours. É trágico que esse espetáculo custe vidas humanas e destrua famílias, como ocorreu com a de João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos de idade, espancado até a morte na frente da esposa pelos seguranças do mercado onde fazia compras. Ironia do destino, a tragédia se impôs a um homem negro, na véspera do Dia da Consciência Negra em que o Carrefour lançou a campanha #TodesMerecemRespeito, anunciada na coluna de Mônica Bergamo na Folha de São Paulo.
Na apoteose da superficialidade em que vivemos, uma hashtag tem mais valor que vidas humanas. Pessoas ou empresas que usam a novilíngua criada para identificar o grupo que monopoliza a virtude serão vistas como virtuosas, independentemente do que façam. É preciso ressignificar a militância de universo simbólico no mundo real. Chegamos ao ponto em que ela se tornou escudo que protege a barbárie.
Linguagem é importante. Violência jamais começa com um tiro de canhão, começa com palavras. Há palavras que perdem o sentido com o tempo porque a sociedade evolui. Outras são mudadas como símbolo, propositalmente, para que a sociedade perceba um vício oculto que precisa deixar. Mas as ações simbólicas só têm sentido quando trazem benefícios para seres humanos no mundo real. Ações simbólicas bem intencionadas mas sem conexão com a realidade não são apenas inócuas, podem causar tragédia. Causaram.
Por uma conjunção de fatores, inclusive a evolução da tecnologia e um maior desejo de participação social, muitas pessoas passaram a confundir militância com patrulha de linguagem. Temos uma explosão de novas palavras que funcionam praticamente como novos idiomas, identificamos precisamente a qual grupo político uma pessoa pertence por essas palavras. Como elas vêm em tonelada, isso gera a reação do grupo oposto.
Inicia-se um processo em que qualquer ideia, demanda ou sofrimento de um grupo é imediatamente invalidado pelo outro. Deixa-se de reconhecer a dignidade do outro e passa a haver uma união em torno da negação sistemática de tudo o que o adversário prega ou significa. É o processo de deixar de reconhecer a dignidade como inerente à condição humana e inegociável, o que alguns chamam de desumanização ou objetificação.
Trabalhar somente no universo simbólico e do marketing é mais fácil do que fazer mudanças estruturais ou tocar em feridas da nossa realidade e reconhecer os problemas que temos e como precisamos mudar. O Carrefour investiu muito em Relações Públicas para dizer que valoriza a inclusão e a diversidade. Acaba de fazer um evento gigantesco com influencers e cantores negros. Iria lançar hoje a hashtag #TodesMerecemRespeito.
O que aconteceria se a quantia que a empresa investiu em marketing para dizer que #TodesMerecemRespeito tivesse sido investida em garantir que os seguranças das lojas não matassem cliente na pancada em frente à esposa? Pode ser que uma vida tivesse sido poupada, mas aí não tem como receber elogios dos justiceiros sociais de teclado.
Muita gente reclama da eterna lacração dos movimentos identitários, eu inclusive. Mas isso não invalida a existência de preconceito na nossa sociedade. A noção de que todos somos iguais é recente: mulheres e negros começaram a ter direito ao voto há menos de 100 anos, por exemplo. Algo que hoje ninguém questiona era o normal, simplesmente dizer que mulheres e negros não votam por serem quem são. Impossível que essa estrutura não tenha efeitos. Mudar leis é fácil, mudar culturas é muito demorado e estamos passando por isso.
É natural que, quando um negro reclama de racismo, a pessoa branca queira mostrar que é uma exceção. Quando uma mulher reclama de machismo, o homem quer mostrar que é uma exceção. Nem sempre é uma acusação, ouvir faz bem. Tente ouvir de coração aberto e comparar como é o seu dia e como é o dia de alguém diferente de você. Tenho certeza de que vão encontrar surpresas e soluções para a vida de ambos.
A lacração constante produziu o que eu costumo chamar de "lacração do B" ou mitagem. Tem que negar até o último momento o que o outro fala, às custas da moral, da dignidade, dos escrúpulos, do que seja. Por mais que eu ache exageradas e até equivocadas algumas manifestações identitárias, isso não me dá o direito de ser desonesta intelectualmente. As polícias de todo o Brasil fazem um esforço danado para que os novos policiais deixem de automaticamente suspeitar mais de negros do que de brancos, mesmo que seja inconsciente. Isso acontece, compromete o trabalho, traz experiências amargas para inocentes e deixa criminosos livres.
Temos, no Brasil, até grupos neonazistas. Alguns desses passaram pelo dissabor de, ao tentar uma união com grupos neonazistas europeus, receberem de volta mensagens ofensivas em que eram chamados de macacos. Há sim um grupo que odeia negros, te conta por que e os mataria por isso. Obviamente, é muito diferente de outro grupo, que não tem um ódio mobilizado mas repete até inconscientemente padrões de discriminação. O triste é que, para a pessoa negra, o resultado das ações de um e de outro grupo pode ser igual. É necessário curar essa chaga.
Em casos como esse, de um vídeo mostrando uma cena bárbara, há ampla mobilização da sociedade. Afinal, só acontece aquilo que foi filmado. Brotam pelas redes sociais os especialistas em segurança. O morto nem foi enterrado e a vida dele está sendo revirada do avesso para fazer alguma ponderação sobre a ação dos seguranças. É indefensável. Não existe pena de morte a soco no mundo civilizado. Tenho orgulho de ter recebido a Medalha Justiça e Disciplina da Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo, sei o estrago que adeptos do justiçamento podem fazer numa tropa.
Diante dos que negam o racismo no Brasil, tão palpável que tem até lei com as punições, muitas pessoas assumem que declarar-se antirracista automaticamente é um passaporte para o panteão das virtudes morais. Pessoas que se importam com o sofrimento e a dignidades das outras têm dificuldades de conviver com o cinismo. Entre os levantadores de hashtags lacradoras, há diversas pessoas que, na vida real, agem contra quem dizem defender. Quantos racistas têm um símbolo de Black Lives Matter no perfil? Tenho até medo de descobrir.
Pouco importa se eu e você acreditamos que ali houve ou não racismo. Não é sobre a minha família e a sua, que estão sextando e partindo para o final de semana. É sobre a família de uma pessoa que vai ser enterrada, sobre uma mulher que foi ao mercado com o marido e voltou sem ele, eternamente marcada pela cena bárbara do espancamento.
Meu pai também se chamava João Alberto, também tinha o apelido Beto e, como todos nós, não era perfeito. Eu lembro como doeu perdê-lo de infarto aos 47 anos de idade, não consigo imaginar a dor de perder alguém abatido a socos. Meu coração está com essas pessoas, orando para que encontrem paz e conforto. Os debates acalorados nas redes sociais em torno da moral do morto e da natureza do crime falam apenas sobre o caráter dos debatedores. Se temos energia para colocar nessa história, que seja em garantir que ela não se repita.