Ouça este conteúdo
Quando meu filho completou 6 anos, já sabia que não existiam Papai Noel nem Coelhinho da Páscoa. Tornou-se para ele um problema a conversa com os primos e coleguinhas da mesma idade que ainda acreditavam. Estamos exatamente nessa fase do debate sobre redes sociais, aquela em que muitos descobriram que o avô se veste de bom velhinho na noite de Natal mas não sabem como explicar isso aos primos.
Muitos comemoraram as punições do Twitter a Jair Bolsonaro, Allan dos Santos e Olavo de Carvalho como se fosse mudança de rumo. A plataforma não permitiria mais desinformação sobre coronavírus. Eu já tive a infelicidade de namorar homem que não presta, então não acredito mais nessas coisas. Hoje está lá Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, livre leve e solto no Twitter pregando sua cura milagrosa contra o COVID. Sabe quando o homem pisa na bola pela milésima vez mas garante de novo que vai mudar? Então, foi isso.
Vamos fazer um exercício de empatia e dar ao Twitter o benefício da dúvida. Como ele sabe que o Carvativir é falso? As publicações feitas pelo nosso Ministério da Saúde, Presidente da República e mais meia dúzia de apoiadores punidos pela plataforma já são falsas segundo consenso internacional. A do Nicolás Maduro ainda não é. Afinal, ninguém além da Venezuela testou o tal do Carvativir, então ele diz que funciona e deve funcionar, certo?
É que nem a garrafada de ervas do presidente de Madagascar. Vai que, né? De repente, um chá de boldo, aquele senhorzinho do meme da pinga com limão sem misturar - tem de ser o limão em uma mão e a pinga na outra -, tudo isso é ciência pura. Nicolás Maduro não disse os nomes dos pesquisadores envolvidos no tratamento mas já adiantou que pretende exportar para Cuba, Bolívia, Antígua e Barbuda. Nicarágua, São Vicente e Granadinas, Equador, Dominica e Santa Lúcia.
O anúncio de Maduro parece bem sério. Todo remédio adjetivado como milagroso só pode ser sério. Repare na seriedade, são as “gotitas milagrosas de José Gregorio Hernández”. Quem vem a ser ele? Um médico venezuelano que será beatificado este ano pelo Papa Francisco e viveu entre 1864 e 1919. Não sou da área, mas me parece que o tratamento cumpre todos os requisitos para liberação pela Organização Mundial de Saúde. Por isso, o Twitter mantém essa valiosa dica no ar.
Nos últimos 5 anos, tenho sido xingada com persistência e afinco por muitos que foram enganados por políticos sobre o papel das redes sociais. A versão dos espertalhões era a de que finalmente o cidadão comum teria sua própria voz e ficaria livre da "ditadura dos jornas". Como realmente muitas pessoas têm reclamações sobre a imprensa, pareceu fazer sentido. Felizmente, vários estão descobrindo que, muitas vezes, trocar de mulher é só trocar de problema. Tomara aprendam um dia a não confiar cegamente em político falastrão.
Empresas são feitas para dar lucro aos seus acionistas, não para garantir a liberdade de expressão de ninguém. Políticos têm relações comerciais com as plataformas de redes sociais, impulsionam conteúdos e recebem remuneração quando "bombam" conteúdos. Se eles dizem que essas empresas são finalmente a forma de "dar voz ao cidadão comum", pode ser verdade ou pode ser interesse. Temos de observar os fatos.
Tirar das plataformas os propagadores de notícias falsas e discursos de ódio realmente funciona. Cai vertiginosamente o compartilhamento e o interesse por esses conteúdos. Por outro lado, sobe a busca pelo grupo específico ou pelos perfis banidos. Há dois pontos em questão aqui. O primeiro é se empresas privadas com evidentes problemas éticos devem tomar decisões que deveriam estar a cargo da Justiça e da cidadania. O outro é das ações complementares ao banimento.
Há quem argumente que a plataforma é uma empresa privada e, como tal, pode decidir o que é postado lá ou não. Ninguém se mete no que faz uma empresa, certo? Mais ou menos. Empresas de todos os setores seguem regras, assumem responsabilidades pelas suas decisões, reparam danos se os causarem e mudam comportamentos danosos. Quem decide, por exemplo, que trabalhadores usam equipamentos de proteção em determinadas funções? Não é a empresa. A razão é que a proteção da vida humana escapa ao escopo de decisões particulares, é dever de todos e a forma de proteção é decidida coletivamente pelas instituições da sociedade.
O Twitter e as demais redes sociais decidiram fazer um espetáculo midiático de bom-mocismo banindo Trump. Estudiosos da área fizeram um trabalho minucioso de arquivamento com validade jurídica de cada tweet do ex-presidente dos Estados Unidos. As redes sociais favorecem o pólo ideológico que mais lhes der lucro em cada país naquele momento. Elas não são um espaço apenas onde cada um posta o que quiser, mas ativamente distribuem este conteúdo para usuários específicos seguindo regras que elas próprias criam, os tais "algoritmos". Curioso que, diante do naufrágio de Trump, os últimos anos simplesmente sumam do mundo.
Aqui no Brasil, o Twitter dá uma no cravo e outra na ferradura. Deixa os progressistas felicíssimos com o banimento de aliados de Jair Bolsonaro. Dessa forma, eles fecham os olhos para o poder que o Palácio do Planalto e os filhos do presidente continuam a exercer na plataforma. Semana passada, Tércio Arnaud Thomaz, assessor da Presidência investigado por organizar o tal do "gabinete do ódio", abriu sua conta no Twitter e já chegou verificado com selo azul. O comediante Joselito Müller foi banido definitivamente do Twitter por fazer uma piada da qual Carlos Bolsonaro não gostou. Dá para confiar?
Existe uma questão ainda mais perversa, a das instruções dadas para que você, cidadão comum, denuncie alguma perseguição ou fake news. Todas essas instruções apenas fazem com que este post ganhe mais visibilidade ou esse perfil seja sugerido para a sua rede de contatos. A empresa leva o usuário a acreditar que denunciar a postagem e marcar amigos para que denunciem fará com que aquele tipo de comportamento passe a ser identificado e contido. Na verdade, é o oposto. As pessoas são manipuladas e acabam indicando os tipos de postagem que geram mais engajamento.
Temos a mente analógica, pensamos em conteúdo e liberdade de expressão, em falar o que sentimos e trocar ideias. Redes sociais nos obrigam a pensar com uma mente digital. Estar na rede social não é o direito de se expressar, mas a possibilidade de que a sua expressão seja distribuída para todos os contatos das pessoas que te seguem. Se você segue alguém só para contrapor as bobagens que esta pessoa fala, saiba que a rede social vai sugerir a todos os seus contatos que sigam o perfil e vai passar a mostrar postagens para essas pessoas.
Qual outro ramo da economia tem empresas que podem agir assim com os usuários? Desconheço. Não é possível em sociedades democráticas manipular as pessoas com regras que as levem a obter os resultados opostos do que desejam sem pagar o preço. Por que os usuários não são avisados que o fato de seguir alguém para, por exemplo, ver os absurdos que a pessoa fala, faz com que esse perfil seja indicado para todos os seus contatos?
Foram necessários muitos erros, muito sofrimento, bastante estudo, trabalho e parcerias para que em 5 anos eu finalmente conseguisse entender o funcionamento das redes sociais. E era uma questão de sobrevivência profissional e, algumas vezes, sobrevivência em si. Hoje, principalmente após a pandemia, muita gente depende das redes para diversas áreas de suas vidas. Muita gente está se virando abrindo lojinhas, vendendo o que pode com a ajuda das redes sociais. E se elas forem alvo de um desafeto e seguirem as instruções dessas redes sem saber que só vão potencializar o ataque? Há consequências reais para pessoas reais.
Hoje tem um monte de gente indo à postagem de Nicolás Maduro para tentar desmentir o remédio milagroso do coronavírus. Diversos deles avisam que já denunciaram ao Twitter. Muitos marcam inúmeros amigos para que ajudem a desmentir e também façam a denúncia. Qual foi o resultado prático? Viralizou e continua lá. Árvore se conhece pelos frutos. Depois dessa, nem o melhor xaveco do mundo vai convencer alguém de que o Twitter tem qualquer compromisso com combate a fake news. Quer dizer, o golpe sempre está aí e nunca falta quem caia.