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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Santa Marina e “São Marino”

Calúnia contra os santos, com participação de padre e paróquia

Santa Marina (de vermelho) e o pai são admitidos no mosteiro, em ilustração de Richard de Montbaston para uma edição francesa do século 14 da "Legenda Aurea". (Foto: Reprodução/Domínio público)

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Desconfiômetro totalmente desligado ou cooperação consciente e ativa? Essa é a pergunta que eu me faço diante do escandaloso, sumamente escandaloso caso do documentário que tenta retratar Santa Marina como transexual – o curta-metragem foi rodado em uma paróquia da cidade de São Paulo e teve o padre Júlio Lancellotti como narrador. Depois que o caso estourou, com a divulgação do trailer do documentário, a Arquidiocese de São Paulo, por meio do seu Vicariato da Comunicação, agiu com presteza e lançou nota repudiando o conteúdo de São Marino, afirmando que a biografia da santa publicada em seu site, que a produção do vídeo diz ter sido usada como fonte para o roteiro, não permite a interpretação adotada pelo documentário.

Resumindo bem resumidamente: Marina era uma jovem que vivia com o pai, viúvo, onde hoje é o Líbano, no século 5.º. Ao saber da intenção do pai de arrumar-lhe um marido e depois passar o resto dos seus dias em um mosteiro, ela recusou os planos de casamento e propôs disfarçar-se de homem para que ambos ingressassem na vida religiosa; o disfarce funcionou e ela foi aceita com o nome de “Marino”. Mesmo depois da morte do pai, Marina se manteve fiel à promessa de jamais revelar sua verdadeira identidade, e os demais monges atribuíam a ausência de traços mais masculinos à vida ascética e de muitas penitências que “Marino” levava. Tal fidelidade a levou até mesmo a suportar a acusação falsa de ter estuprado e engravidado a filha do proprietário de uma hospedaria, algo que ela poderia muito facilmente ter desmentido; em vez disso, aceitou a expulsão do mosteiro e o encargo de cuidar da criança. Anos depois, “Marino” pôde voltar ao mosteiro, executando sempre tarefas mais humilhantes. Só após sua morte é que os demais monges, ao preparar o corpo para o sepultamento, descobriram a verdade – e a grande injustiça que havia sido cometida contra Marina.

Teria o padre Lancellotti pensado que não haveria problema nenhum em emprestar sua voz e seu prestígio para narrar o curta? Ou ele estava ciente do potencial explosivo e mesmo assim cooperou com plena consciência, concedendo um endosso sacerdotal à calúnia contra Santa Marina?

E é isso. Nada de transexualidade, de disforia de gênero, nem nada: temos uma filha que, para não perder a companhia do pai, aceitou um disfarce que manteve até o fim de uma vida de oração e virtude. “Para nós, ele é ele. E não ela”, disse Leide Jacob, que dirigiu o filme, à coluna de Monica Bergamo, na Folha de S.Paulo. Mas pouco importa o que pensam Leide e os demais envolvidos no filme; importa é a verdade sobre a vida de Santa Marina. E isso nos leva à participação, nisso tudo, do padre Júlio Lancellotti – que foi procurado pela coluna, mas respondeu dizendo apenas que “a nota da Arquidiocese já é o final da questão”.

Já tive meus episódios de desconfiômetro desligado e que me renderam alguns problemas, mas aqui a distância entre o que o documentário propõe e a real biografia da santa é não só diametral, é gigantesca. Será que o padre Lancellotti realmente pensou, em algum momento, que não haveria problema nenhum em emprestar sua voz e seu prestígio para narrar o curta? Ou que seria uma interpretação possível entre outras a respeito da vida da santa, por mais que o documentário trate a suposta transexualidade como fato, e não como hipótese? Sinceramente, para imaginar que São Marino seja algo inofensivo ou apenas levemente “polêmico” (para usar a palavra da moda), é preciso estar com o desconfiômetro mais que desligado: tem de estar totalmente quebrado, naquele estado que a gíria militar americana chama de “fubar” (“f***ed up beyond all repair”).

A outra hipótese, infelizmente, é bem pior: a de que o padre Lancellotti estava ciente de que o potencial explosivo disso era enorme, e mesmo assim cooperou com plena consciência, participando ativamente, concedendo, com a sua imagem e voz, um endosso sacerdotal ao que é uma verdadeira calúnia contra a memória de uma santa da Igreja à qual ele pertence. Triste? Tristíssimo, ainda mais porque, se for realmente assim, o padre está abraçando uma estratégia antiga do movimento LGBT, o de pintar santos como homossexuais ou pessoas em conflito com sua identidade de gênero. O Shakespeare’s Globe, em Londres, está exibindo uma peça do dramaturgo transgênero Charlie Josephine em que Santa Joana D’Arc é retratada como “não binária” e diz frases como “não sou uma garota” – o leitor deve se lembrar que ela se vestiu de soldado para liderar os franceses durante a Guerra dos Cem Anos. Ainda hoje tentam pintar os santos Sérgio e Baco, soldados romanos martirizados no século 4.º, como amantes; mais recentemente, São John Newman vem passando pelo mesmo processo, por causa de sua profunda amizade com outro sacerdote.

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Os santos são bons alvos para essa estratégia porque isso vai além de simplesmente pegar uma figura importante, de talento, e descrevê-la como homossexual ou transexual; há uma “camada narrativa” adicional nesse caso, pois a Igreja, ainda por cima, estaria escondendo a verdadeira identidade ou comportamento daqueles que ela aponta como exemplo para os cristãos, agindo assim de maneira completamente hipócrita, já que condena o comportamento homossexual. Mais que “ressignificar” um santo, trata-se de atacar a Igreja. É disso que o padre Lancellotti participou, independentemente da sua intenção.

E agora? Nem o padre Lancellotti, nem o Vicariato da Comunicação deram mais detalhes a respeito de como o caso está sendo tratado internamente – se dom Odilo Scherer conversou ou conversará com o sacerdote, por exemplo. Minha expectativa é que a Arquidiocese de São Paulo (e todas as outras, por que não?) reforce suas orientações para algo assim não voltar a ocorrer. No caso paulistano, já existe uma regra a respeito do uso de igrejas para todo tipo de filmagens, de cenas de novela a reportagens jornalísticas. Segundo o Vicariato da Comunicação, a arquidiocese solicita todas as informações (inclusive o roteiro, em caso de filmes ou documentários) para avaliação antes de autorizar o uso da igreja, mas havia uma brecha que a produção de São Marino provavelmente aproveitou: como a Paróquia Coração Eucarístico de Jesus e Santa Marina está sob a administração dos padres palotinos, e não de padres diocesanos, a consulta à arquidiocese não era obrigatória – o pároco pode ter sido autorizado pela sua congregação, ou seguido em frente por conta própria sem falar com ninguém (a paróquia também não quis falar com a reportagem da Gazeta do Povo). Talvez isso tenha de ser revisto no futuro, e talvez seja o caso de adotar algum protocolo para os sacerdotes também, não apenas para os templos.

O padre Lancellotti certamente não se lembra, mas no fim dos anos 90 eu era estudante de Jornalismo na USP quando visitei a Casa Vida, um projeto seu que acolhia crianças com Aids, e escrevi uma reportagem para nossa publicação universitária, o Jornal do Câmpus. Seu amor pelos pobres é genuíno, e continuo achando que ele precederá muitos de nós no Reino dos Céus. Mas bem que ele podia nos poupar desse tipo de coisa que só serve para agredir e desmoralizar a Igreja.

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