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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Teologia

Cardeal Fernández se precipita em julgamento sobre título de “corredentora” para Maria

maria corredentora
Detalhe da "Imaculada Conceição do El Escorial", de Bartolomé Esteban Murillo. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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O leitor da coluna sabe que não tenho nenhuma simpatia pelo cardeal Victor Fernández, que desde julho de 2023 é o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, confirmado provisoriamente no cargo por Leão XIV após sua eleição – o termo técnico é donec aliter provideatur, “até que outras providências sejam tomadas”. E, enquanto outras providências não são tomadas, ele vai fazendo seus estragos, dos quais o mais recente é a nota doutrinal Mater Populi fidelis, “sobre alguns títulos marianos referidos à cooperação de Maria na obra da Salvação”. Para ser generoso, é um documento que parte de uma série de premissas verdadeiras para chegar a conclusões complicadas, ou que pelo menos desconsideram um longo trabalho de refinamento teológico. Para entendermos o motivo, vamos direto ao ponto.

O título de “corredentora”

Nos pontos 4 a 15 da nota, o cardeal Fernández faz uma recapitulação histórica bem abrangente sobre a evolução teológica da compreensão do papel de Nossa Senhora na história da redenção. Até aí, maravilha. É quando o texto vai tratar do título de “corredentora” que o caldo entorna. Esse título nunca foi formalizado em uma declaração dogmática – os quatro dogmas marianos, em ordem cronológica de definição, são a maternidade divina, a virgindade perpétua, a Imaculada Conceição e a Assunção –, mas tem havido quem a solicitasse ao Vaticano. O cardeal Fernández cita brevemente santos, papas e teólogos favoráveis ou opostos a esse título, para então cravar: “levando em consideração a necessidade de explicar o papel subordinado de Maria a Cristo na obra da Redenção, é sempre inoportuno o uso do título de Corredentora para definir a cooperação de Maria”.

Sempre inoportuno” é uma avaliação pesada demais, ainda mais quando tantos santos e papas usaram essa expressão – além daqueles citados na própria nota, a internet já está fervilhando de outras referências. Sim, temos ninguém menos que Joseph Ratzinger, um dos maiores teólogos do século 20, se opondo; para ele, chamar Maria de “corredentora” era usar um “vocábulo equívoco”, como disse a Peter Seewald no livro-entrevista Deus e o Mundo. Mas, como lembrou a vaticanista Delia Gallagher no X, Ratzinger passou 30 anos no Vaticano, como cardeal-prefeito do mesmo dicastério hoje ocupado por Fernández e como papa, e nunca viu a necessidade de publicar uma nota formalizando sua opinião. “Dada a atenção que ele dava à correção doutrinal, deveríamos nos perguntar o porquê [de nunca ter havido um documento seu a esse respeito]”, afirma a jornalista, que ainda ironizou, dizendo que “nunca Ratzinger foi tão citado pelo atual Dicastério para a Doutrina da Fé”.

Os católicos sabem que Maria não é deusa, nem semideusa; que foi Cristo quem morreu pelos nossos pecados; que ela é canal, e não a origem da graça. Se alguém exagera o papel de Nossa Senhora, é uma exceção

Qual é o problema, afinal? Não é verdade que “a obra da redenção foi perfeita e não necessita de acréscimo algum”? Que “o Redentor é um só e este título não se duplica”? Que “Cristo ‘é o único Redentor’”? Que “nem a Igreja, nem Maria podem substituir, ou aperfeiçoar, a obra redentora do Filho de Deus encarnado”? Que há um “papel subordinado de Maria a Cristo na obra da Redenção”? Sim, é tudo verdade. Mas a nota ignora que existe gradação nas coisas. Como lembrou um amigo na internet, Jesus disse “a ninguém chameis de pai sobre a terra, porque um só é vosso Pai, aquele que está nos céus” (Mateus 23,9), mas nem por isso deixamos de chamar nosso pai de “pai”, os padres de “padre” (que significa “pai”), e o papa de “Santo Padre”. Estamos desobedecendo o mandato de Cristo, ou apenas reconhecendo que existem gradações e níveis de participação na paternidade divina?

O mesmo, aliás, vale para outro título, o de “medianeira de todas as graças”, a respeito do qual a nota afirma que “requer-se uma especial prudência” no seu uso porque ele “tem limites que não facilitam a correta compreensão do lugar único de Maria”. O título também foi motivo de solicitação de declaração dogmática, negado pelo papa Bento XV mais de 100 anos atrás – o mesmo papa, no entanto, instituiu uma festa mariana com esse nome. É claro que “o papel do Verbo encarnado é exclusivo e único” e que “não podemos falar de outra mediação na graça que não seja a do Filho de Deus encarnado”, mas minha impressão é que o cardeal Fernández fez terra arrasada de séculos de boa teologia a respeito de causas primeiras, secundárias, instrumentais e por aí vai para criar uns espantalhos e poder desaconselhar o uso de certas expressões.

Quem acompanhou a repercussão da nota doutrinal pela grande imprensa ficou com a impressão de que, para os jornalistas, os católicos são um bando de ignorantes, que consideram Nossa Senhora uma deusa, ou a fonte última da graça, e que por isso precisam de um puxão de orelha do Vaticano. É mentira da grossa: nós sabemos que ela não é deusa, nem semideusa, que não está em pé de igualdade com Jesus; sabemos que foi Cristo, e não a Virgem, que morreu pelos nossos pecados; sabemos que tudo o que ela faz é por subordinação a Jesus; ela é canal, e não a origem da graça. Se alguém exagera o papel de Nossa Senhora, é uma exceção muito excepcional (perdoem a redundância) à regra.

A Igreja errou, ou mudou a doutrina sobre Maria, então? Nem de longe!

Eu não tenho opinião formada sobre uma eventual declaração dogmática dos títulos de “corredentora” ou “medianeira de todas as graças”, mas tirá-los do jogo da forma como o cardeal Fernández está fazendo – ainda que de uma forma meio mitigada, já que não existe nenhuma condenação formal ao seu uso – é muita precipitação. A nota podia dizer que pessoas diferentes têm usado os títulos com sentidos diferentes, que ainda é preciso estudar melhor o assunto (não é o que sempre dizem sobre diaconato feminino?), aprofundar a teologia da colaboração de Maria na obra salvífica, evitar exageros que podem ocorrer (inclusive o de forçar o título goela abaixo de quem não o considera adequado), e eu estaria de acordo. Mas isso de “sempre inoportuno”, aí não dá.

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Vamos deixar claro, também, para não exagerar do outro lado. A Igreja não mudou uma vírgula de sua doutrina sobre Nossa Senhora. Nenhum dos dogmas marianos foi revogado, nem a Igreja, nem o papa, nem o cardeal Fernández estão “rebaixando” Maria. O problema da nota não é esse. O problema da nota é o fato de ela bloquear um debate teológico que poderia ser bem frutífero com esse veredito de “sempre inoportuno”. A Igreja se debateu por séculos em torno de temas como a Imaculada Conceição, com pesos-pesados da teologia em lados diferentes da disputa, e podia fazer o mesmo em relação ao “corredentora”, bastando apenas pedir mais cautela dos fiéis no uso do termo enquanto se chega a uma definição mais correta, em vez de botar uma pedra em cima do assunto por causa de eventuais exageros pontuais.

O pior motivo para se livrar do “corredentora”

Na apresentação que antecede a nota, o cardeal Fernández diz que o trabalho ali contido “implica uma profunda fidelidade à identidade católica e, ao mesmo tempo, um particular esforço ecumênico” – o destaque é meu. Isso me deixou com uma pulga atrás da orelha. Curiosamente, a apresentação da nota doutrinal não ocorreu na Sala de Imprensa do Vaticano, onde os jornalistas poderiam fazer perguntas. Desta vez, escolheram a Cúria Geral da ordem jesuíta, pertinho do Vaticano, em um evento sem espaço para perguntas, mas aberto ao público – e tivemos até bate-boca, com um leigo interrompendo Fernández duas vezes para reclamar do texto. Se houvesse chance de perguntas, alguém deveria questionar se o empenho por afastar o título de “corredentora” não teria sido motivado por algum desejo de não melindrar protestantes que já criticam os católicos por colocar Maria num pedestal.

Convenhamos: negar um título a Maria (ainda mais um título usado, como a própria nota diz, por tantos santos e papas) em nome do “esforço ecumênico” seria deplorável. Os protestantes sérios, que têm honestidade intelectual, conhecem o que a Igreja e os católicos creem a respeito de Nossa Senhora – podem até não concordar, mas saber, eles sabem. Só os ignorantes e os mal-intencionados caçadores de cliques é que espalham bobagens do tipo “os católicos adoram Maria”. Diluir a identidade católica por causa desse povo, ou mesmo para reduzir resistências em um diálogo ecumênico sério, seria um erro gravíssimo – se for pra ser assim, vamos limar também o “Mãe de Deus”, que deve ser ainda mais complicado. Mas, como ninguém teve a chance de perguntar nada (ao menos por enquanto), não saberemos que peso teve uma eventual preocupação em não ofender sensibilidades de outros cristãos – se é que isso teve algum peso.

A Igreja se debateu por séculos em torno de temas como a Imaculada Conceição, com pesos-pesados da teologia em lados diferentes da disputa, e podia fazer o mesmo em relação ao “corredentora”

A autocrítica que nem o cardeal Fernández deve ter visto

No trecho sobre o título de corredentora, o cardeal Fernández escreveu que “quando uma expressão requer muitas e constantes explicações, para evitar que se desvie de um significado correto, não presta um bom serviço à fé do Povo de Deus e torna-se inconveniente”. Muita gente, no Brasil e no exterior, percebeu a profunda ironia que existe nesse trechinho.

“Muitas e constantes explicações” foi justamente o que se exigiu, por exemplo, de Amoris laetitia, a exortação pós-sinodal publicada em 2016 e da qual Fernández foi o principal ghost writer; quatro cardeais enviaram dubia ao papa Francisco sobre a questão da comunhão aos divorciados em nova união civil, dois deles já morreram, o papa já morreu e nenhuma das perguntas foi devidamente respondida. Com Fiducia supplicans, texto publicado já com Fernández à frente do Dicastério para a Doutrina da Fé, foi ainda pior, porque o próprio Vaticano já teve de sair publicando um comunicado quase que imediatamente. E nenhum desses dois documentos prestou “um bom serviço à fé do Povo de Deus”.

Conclusão: se o papa Leão XIV resolver que todos os prefeitos de dicastérios herdados de Francisco ficarão até completar seus mandatos de cinco anos para só depois serem substituídos, vamos apertar os cintos porque ainda teremos uns três anos de polêmicas pela frente...

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