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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Internet

Como as mídias sociais incentivam a hostilidade em relação ao papa (qualquer papa)

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O papa Leão XIV durante a celebração do Jubileu dos Coros, na Praça de São Pedro, em 23 de novembro. (Foto: Angelo Carconi/EFE/EPA)

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Pergunte a qualquer influenciador digital ou administrador de perfil nas mídias sociais qual é o seu pão de cada dia, e ele responderá “engajamento”. Se as pessoas não leem, não reagem, não comentam, não compartilham, aquele conteúdo falhou em sua missão. E ninguém precisa ser doutor em Psicologia: basta acompanhar o Instagram, o YouTube, o X ou o Facebook para saber que a melhor forma de criar engajamento é, como diria Roberto Jefferson, provocar os “instintos mais primitivos” das pessoas. Como se faz isso nas mídias sociais? Simples: despertando raiva e indignação. Mesmo que, para isso, seja preciso botar o próprio papa na berlinda. E as estratégias para isso variam bastante.

Tire uma foto ou frase de contexto

“Tiraram minhas palavras de contexto” é a desculpa padrão de muita gente que diz besteira e não quer assumir as consequências, mas isso não quer dizer que não exista quem realmente tire as coisas do contexto para deixar mal o papa, o Vaticano ou alguma outra autoridade eclesiástica. A publicação que me fez escrever essa coluna estava em uma página de Facebook que tem 115 mil seguidores e diz “trazer as notícias de uma perspectiva católica”. A publicação dizia apenas “o bispo Martin restringiu a Missa Tridentina e pediu que não se usem mais os altar rails (aquelas grades baixas que separam a nave do presbitério e são usadas pelas pessoas que comungam de joelhos). Ele acabou de se encontrar com o papa Leão!”. No caso, trata-se do bispo Michael Martin, de Charlotte (EUA), que tem se dedicado com afinco a perseguir a missa tridentina em sua diocese.

Mas aí você olha a foto, e qualquer um familiarizado com o cotidiano do Vaticano percebe que ela foi tirada ao fim da audiência geral das quartas-feiras. Quando termina a audiência, começa o chamado baciamano: algumas pessoas têm a chance de saudar o papa, dizer-lhe algumas palavras breves, mostrar-lhe algo ou levar-lhe algum presente (quando eu fui abençoado com essa oportunidade, levei uma foto da minha família e o meu livro de entrevistas sobre ciência e fé). O baciamano sempre é aberto pelos cardeais e bispos que estejam em Roma naquele dia e que peçam para estar lá. Você pode conferir olhando as fotos oficiais do Vaticano (Martin é o que vem depois do bispo de óculos escuros que está com o solidéu na mão).

Sites e influenciadores católicos buscam engajamento explorando a indignação dos leitores, mesmo que, para isso, seja preciso botar o próprio papa na berlinda

Como funciona o engajamento pela indignação? Você não apresenta contexto nenhum, diz que o papa se encontrou com uma figura odiada pela página e pelos seus seguidores, e pronto, está feito o estrago e é só esperar os comentários do tipo “que triste, Leão é Francisco 2.0”, “o papa Leão está lhe dando os parabéns”, “dois lobos disfarçados de ovelhas” e “o cínico em mim diz que ele (papa Leão) provavelmente parabenizou o bispo Martin por um trabalho bem feito e deu-lhe sua bênção para seguir em frente” (justiça seja feita, muita gente também comentou que não havia nada de mais na foto). Explicar que qualquer bispo católico pode participar do baciamano, basta pedir? Dizer que na mesmíssima audiência o papa também foi saudado por dom Fernando Rifan, da Administração Apostólica São João Maria Vianney, dedicada exclusivamente à missa tridentina (ele é o bispo de óculos escuros nesta página de fotos)? Não… pra quê jogar água fria na raiva de quem vê uma foto e automaticamente acredita que o papa endossa as opiniões de todo mundo que é fotografado com ele? Vamos omitir informações e deixar o engajamento correr solto.

Conte a história pela metade e crie dúvida nas pessoas

Essa mesma página, no mesmo dia, publicou a foto de um “espaço de escuta” instalado dentro da Basílica de São Pedro com a legenda “Vaticano abre ‘espaço de escuta’ na Basílica de São Pedro, apesar da presença de confessionários”, e na publicação foi mais além: “O Vaticano está substituindo os confessionários por ‘espaços de escuta’ na Basília de São Pedro?” A insinuação é evidente e feita para enfurecer qualquer um que saiba da importância do sacramento da confissão.

Aí você clica no link que acompanha a publicação e descobre que o tal espaço é um lugar de conversa franca e acolhedora, com uma pessoa que não será necessariamente um padre (pode ser uma freira, ou mesmo um leigo), para quem precisa desabafar e ser ouvido. O secretário da Fábrica de São Pedro, monsenhor Orazio Pepe, diz explicitamente que isso não substitui a confissão sacramental, e em nenhum momento a reportagem diz que qualquer confessionário tenha sido removido para dar lugar ao tal “espaço de escuta” – pela foto que eu vi, parece mesmo que não está no mesmo local onde os padres ouvem confissões.

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Mesmo assim, a reportagem, embora acerte ao ressaltar a importância da confissão, lamenta que “infelizmente, falta ao ‘espaço de escuta’ um elemento crucial: a capacidade de perdoar pecados” (mas é para isso que os confessionários continuam ali!). E termina com uma indireta maldosa: “Continuam incertos os motivos do Vaticano para implementar um ‘espaço de escuta’ quando há dúzias de confessionários na Basílica de São Pedro, onde o Sacramento da Reconciliação é oferecido em muitos idiomas”. Pois é, continua havendo dúzias de confessionários e nenhum foi removido. Qual o problema, então? E se aquela for a oportunidade de um turista não católico ter uma experiência de acolhimento? E atire a primeira pedra quem nunca entrou em uma fila de confissão e teve de esperar a pessoa da frente passar meia hora tendo direção espiritual no confessionário ou tirando dúvidas de doutrina… enfim, minha única crítica é estética mesmo, as cabines destoam terrivelmente do resto da basílica. De resto, é muita gritaria por nada – quer dizer, por engajamento…

Agarre e promova qualquer loucura “católica” que encontrar pela frente

A página de onde tirei essas duas publicações parece-me associada a um site grande norte-americano, o LifeSite News (não citei o nome da página anterior para não fazer propaganda, mas neste caso me parece inevitável, porque é um empreendimento grande e vale o alerta). Eles já foram muito bons, especialmente nas questões ligadas à defesa da vida, mas durante a pandemia parece que piraram bonito, inclusive espalhando fake news sobre vacinas e sua relação com o uso de linhagens celulares oriundas de fetos abortados – um assunto que pesquisei muito à época –, e desde então foram se radicalizando.

Neste fim de semana, o site chegou ao ponto de publicar um vídeo em que o CEO e fundador do LifeSite, John Henry Westen, entrevista um autor que faz uma salada com aparições aprovadas pela Igreja e outras supostas revelações para dizer que a Igreja teria dois antipapas seguidos. A descrição do vídeo no YouTube diz que “documentos vaticanos ocultos por muito tempo e testemunhos de videntes se encaixam com o caos litúrgico e ambiguidade doutrinal atuais”. Os perfis do LifeSite divulgam a entrevista com uma foto de Bento XVI e a legenda “profecia afirma que Bento XVI foi o último papa – com dois antipapas seguidos”, ou seja, está afirmando (porque nem insinuação isso é) que Francisco e Leão XIV seriam antipapas! Isso é, na “menos pior” das hipóteses, criar desconfiança na cabeça dos fiéis, e tudo que o papa faça será examinado por essa lente; na pior das hipóteses, é levar os católicos para o caminho do cisma aberto.

Pegue o tempo que você passaria compartilhando esses “escândalos” de internet, fabricados apenas para gerar cliques, e reze pelo papa, pelos padres e pelos bispos

E aproveito para lembrar que não, Nossa Senhora não disse em La Salette que “Roma perderá a fé e se tornará a sede do Anticristo”. Essa frase não está na mensagem aprovada pela Igreja; foi um acréscimo posterior da vidente Mélanie, feito quase 30 anos depois que ela e Maximin enviaram seus relatos do segredo ao papa Pio IX. A versão de 1879, essa que fala da apostasia da Igreja, foi condenada pelo Santo Ofício – quatro vezes! Vocês podem conferir os detalhes da história no site O Catequista.

Faixa bônus: misture competências

Muitos anos atrás, o então bispo de Blumenau (SC), dom Angélico Bernardino, resolveu transferir de paróquia um sacerdote franciscano muito querido. A população se revoltou, houve abaixo-assinado (tudo isso desencorajado pelo pobre do frade, que fique claro), e um jornal se interessou pelo caso. O repórter entrevistou o bispo, e depois foi atrás do arcebispo de Florianópolis, que obviamente não tinha nada a ver com o caso. Acontece que a diocese de Blumenau era parte da província eclesiástica de Florianópolis, e por isso o repórter deve ter achado que o arcebispo da capital catarinense teria alguma autoridade sobre o bispo de Blumenau – não tinha, e o arcebispo disse exatamente isso ao jornalista.

Um repórter de jornal secular que precisa cobrir uma história dessas pode não saber exatamente quem faz o quê ou manda em quem dentro da Igreja, mas um influenciador católico sabe. Como a minha bolha católica é mais conservadora, volta e meia a CNBB é escolhida como o Cristo da vez, e ocasionalmente a conferência paga o pato por coisas sobre as quais ela tem influência zero. Por exemplo, quando algum padre mais midiático diz ou faz alguma bobagem, acaba saindo um “e a CNBB, não vai fazer nada?” ou sua versão mais assertiva: “e a CNBB não faz nada a respeito”. Acontece pouco, mas acontece. E, com pessoas que já são propensas a olhar a conferência episcopal com desconfiança, basta isso para começar a ladainha.

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A CNBB é uma conferência episcopal cujo poder é muito mais limitado do que as pessoas imaginam, pois dentro das dioceses os bispos, e só eles, detêm o papel de governar. A conferência atua em questões específicas, quando recebe essa competência diretamente do Vaticano – por exemplo, ela traduz os livros litúrgicos usados no Brasil porque não faria sentido cada diocese fazer sua própria tradução, mas não pode obrigar todas as dioceses a ter meninas coroinhas ou a proibir comunhão na boca, porque isso é decisão do bispo. E disciplinar padres certamente não é uma das competências da CNBB; isso é assunto para o bispo da diocese onde aquele padre está incardinado. Incitar animosidade contra a conferência episcopal porque ela não está agindo a respeito de algo sobre o qual ela nem pode fazer nada é malandragem.

Se uma publicação crítica mexe com seus brios, pare e respire

Indignar-se com o mal é natural – na verdade, é bom. O problema é a exploração desse sentimento, graças à parceria entre os algoritmos de mídias sociais, desenhados para estimular essa reação, e os influenciadores que usam esse impulso para estimular a raiva contra algo ou alguém pelo qual já nutrem antipatia. Vencer essa lógica dá trabalho, mas não é impossível. Exige autocontrole para não sairmos compartilhando tudo que vemos, no primeiro instante em que vemos; exige sagacidade e tempo para ir atrás de todas as nuances que possam estar envolvidas na tal “denúncia”; e, para os que estiverem dispostos ao meritório trabalho de limpar a barra de quem é injustamente acusado, exige sangue frio para lidar com a enxurrada de críticas dos que compram a rasgação de vestes alheia.

Não digo com isso que não existam padres maus, bispos maus, papas que erram. Nem que os males reais causados por autoridades da Igreja devam ser escondidos. O problema é que o ecossistema das mídias sociais não privilegia a denúncia séria, ponderada, que investiga a fundo, que busca os vários lados etc.; ele incentiva a reação rápida e descontrolada, que potencializa a hostilidade contra aqueles a quem devemos respeito e amor filial. Pegue o tempo que você passaria compartilhando esses “escândalos” de internet, fabricados apenas para gerar cliques, e reze pelo papa, pelos padres e pelos bispos – inclusive pelos que dizem e fazem bobagens, para que caiam em si. E, por fim, lembre-se dos filhos de Noé, no episódio em que o patriarca encheu a cara, e se pergunte qual deles vale a pena imitar.

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