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Marcio Antonio Campos

Marcio Antonio Campos

Vaticano, CNBB e Igreja Católica em geral. Coluna atualizada às terças-feiras

Encontro Mundial dos Movimentos Populares

Como o MST participou de evento com o papa Leão XIV em Roma

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Leão XIV cumprimenta participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares; evento teve presença do MST e do MTST. (Foto: Maurizio Brambatti/EFE/EPA)

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Na última quinta-feira, na Sala Paulo VI, no Vaticano, o papa Leão XIV participou do V Encontro Mundial de Movimentos Populares (EMMP) e recebeu membros de mais de uma centena de movimentos de todo o mundo, incluindo o Brasil – representado pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e o Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira (Cenarab). O papa ainda cumprimentou integrantes dos movimentos e ganhou presentes – Ayala Ferreira, da direção nacional do Setor de Direitos Humanos do MST, entregou ao pontífice uma imagem de Ossanha, orixá das religiões de matriz africana, confeccionada com miçangas do candomblé por Wilton Gurgel, do Cenarab.

Em seu discurso, o papa Leão XIV lembrou a escolha de seu nome pontifício, inspirado em Leão XIII, o papa que deu o pontapé inicial na Doutrina Social da Igreja, e afirmou que a luta por terra, casa e trabalho é justa, e que não se trata de “promover ideologia, mas viver verdadeiramente o Evangelho”. O papa menciona casos concretos – agricultores que perdem tudo devido à desertificação, a epidemia do uso de drogas (e Leão não pensa duas vezes antes de chamar os traficantes de criminosos), a exploração indecente de minerais raros, e a “cultura do descarte” –, mas não endossa nenhum método específico de nenhum movimento; ele faz principalmente um discurso de princípios, com fortes raízes na Doutrina Social da Igreja e referências a Santo Agostinho e a seus predecessores Bento XVI e Francisco. Vale a pena ler.

MST integra entidade que organiza evento

Ainda que o Encontro Mundial dos Movimentos Populares tenha surgido por iniciativa do papa Francisco, em 2014 (as edições seguintes ocorreram em 2015, 2016 e 2021; o da semana passada foi o V Encontro), que sempre tenha contado com a participação do papa, e que ocorra dentro das dependências do Vaticano, ele não é, tecnicamente falando, um “evento oficial do Vaticano”. Segundo o próprio site do MST, ele é promovido pelo Comitê Organizador dos Movimentos Populares, coordenado pelo padre Mattia Ferrari, com apoio do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (que, este sim, faz parte da estrutura do Vaticano, e não respondeu ao contato da coluna por e-mail) e do Vicariato de Roma. O cardeal canadense Michael Czerny, prefeito do dicastério, esteve presente no encontro dos movimentos com o papa e na coletiva de imprensa que apresentou o evento, realizada na Sala de Imprensa da Santa Sé em meados de outubro.

Ainda que o Encontro Mundial dos Movimentos Populares tenha surgido por iniciativa do papa Francisco e sempre tenha contado com a participação do papa, ele não é, tecnicamente falando, um “evento oficial do Vaticano”

A coluna procurou o MST, cuja assessoria de imprensa explicou que a entidade participa da secretaria que organiza o encontro, e que tem estado presente em todas as edições do EMMP, desde a primeira, 11 anos atrás – ou seja, trata-se de algo que tradicionalmente já conta com a presença do MST, sem que haja o envolvimento direto ou convites oficiais de algum órgão específico da Santa Sé a cada edição do encontro. “O MST, como parte dos movimentos sociais, esteve desde o primeiro encontro nessa construção, porque nos somamos aos movimentos que lutam pelos direitos dos camponeses a ter acesso à terra, e também porque desde nossos territórios temos atuado respondendo às necessidades dos setores mais pobres, como as ações de doação de alimentos no contexto da pandemia e de promoção da saúde através dos agentes populares de saúde. Isso contribuiu para o reconhecimento e a convocação do MST nesses diálogos com o Vaticano”, afirmou Ayala Ferreira, respondendo por meio da assessoria de imprensa às perguntas enviadas pela coluna. “Os cinco EMMPs são fruto da resposta positiva que os movimentos populares deram à convocação do papa Francisco 11 anos atrás, cuja finalidade era ampliar os canais de diálogo e interlocução dos setores populares com as estruturas e setores da Igreja”, acrescenta a dirigente do MST.

Os movimentos populares ainda participaram de uma peregrinação jubilar, passando pela Porta Santa na Basílica de São Pedro. Embora vários sites que trataram da presença do MST no evento com o papa tenham mencionado um Jubileu dos Movimentos Populares nos dias 25 e 26, ele não aparece no calendário oficial do ano jubilar, que registra até mesmo peregrinações de dioceses e grupos específicos – só o que consta para essas datas é o Jubileu das Equipes Sinodais e dos Órgãos de Participação.

Então, antes de dizerem que o papa tem que “selecionar melhor” ou “se informar melhor” sobre quem ele recebe ou cumprimenta, é preciso perceber que se trata de um evento maior, de um grupo amplo de movimentos populares do mundo inteiro (e dos quais só conheço os brasileiros). Mesmo que muitos desses movimentos defendam um tipo de socialismo que a Igreja condena, ou que tentem usar uma foto com o papa como “prova” de que o pontífice endossa sua ideologia e seus métodos – lembrando que ortodoxia na fé não é critério para poder apertar a mão do papa ou tirar uma foto com ele –, o que o papa Leão XIV expôs em seu discurso foi uma visão católica sobre o pobre e sobre o direito de acesso aos bens deste mundo; que cada um compare o que diz a Igreja com o que faz o movimento X, Y ou Z e tire suas conclusões; não é difícil.

Presente foi escolhido por temática ambiental

Questionada sobre a escolha do presente oferecido ao papa, Ayala Ferreira afirmou que “os movimentos populares que se articulam no EMMP expressam diferentes religiões, incluídas as de matriz africana. Se somos diversos na composição, por que não ser diversos na oferta dos presentes, que aliás foram inúmeros?” A dirigente sem-terra afirmou que a imagem foi um presente coletivo do Cenarab com o MST, e explicou que o orixá representado “é o orixá protetor das florestas, das ervas que, cultivadas, podem curar os males do corpo”, acrescentando que, “em um ano em que o Brasil recebe a COP-30, e com o debate sobre a crise ambiental que as sociedades estão enfrentando, julgamos ser um belo presente a ser oferecido”.

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Da minha parte, acho muito questionável oferecer a um líder religioso uma imagem de uma divindade de uma outra fé. Fico imaginando se fosse o inverso, alguém presenteando um pai ou mãe de santo com um terço, um crucifixo ou uma imagem de um santo católico ou da Virgem Maria; no segundo seguinte à divulgação da imagem já teríamos acusações de provocação, proselitismo, intolerância religiosa ou sabe Deus o quê. Se o objetivo era oferecer um presente bonito, artesanal, que remetesse à preocupação com o meio ambiente, a iconografia católica oferece muitas fontes de inspiração; ou, na pior das hipóteses, que se oferecesse uma imagem bela e “religiosamente neutra”.

A quantas missas preciso ir no próximo fim de semana?

santos fra angelico retabulo de fiesoleDetalhe do Retábulo de Fiesole, de Fra Angelico. (Foto: Domínio público)

A treta da semana no mundo católico brasileiro (ou ao menos na bolha que conheço melhor) teve a ver com o(s) preceito(s) do próximo fim de semana, devido a uma coincidência que acontece a cada punhado de anos: a solenidade de Todos os Santos normalmente é celebrada no domingo seguinte ao 1.º de novembro – assim como acontece com as solenidades da Epifania, Ascensão, São Pedro e São Paulo, e Assunção de Nossa Senhora –, mas este domingo é 2 de novembro, dia de Finados. E agora?

A CNBB publicou uma nota afirmando que no sábado, durante todo o dia, celebra-se Todos os Santos, e no domingo celebra-se Finados; mas ela serve mais como guia para os padres saberem que liturgia e que leituras fazer em cada dia, sem informação nenhuma sobre o cumprimento do preceito, e isso bastou para a confusão, porque pelas regras da Igreja universal a solenidade de Todos os Santos é dia de preceito, ou seja, é obrigatório ir à missa (ainda que muitos padres se esqueçam de lembrar os fiéis sobre preceitos como Corpus Christi, Imaculada Conceição e Maria, Mãe de Deus...). Seria preciso ir a duas missas, uma para cumprir Todos os Santos, e outra para cumprir o preceito dominical? Ou uma missa só bastaria? Vi ambas as respostas sendo dadas por gente bem ortodoxa – e os que defenderam que uma única missa já resolve nem de longe são do tipo laxista, adeptos da lei do mínimo esforço.

Decretos sobre dias de preceito no Brasil têm ambiguidades

Acontece que há uma particularidade brasileira no caso. As conferências episcopais podem transferir ou abolir dias de preceito, com autorização da Santa Sé. Em 1986, a CNBB publicou a seguinte legislação complementar ao Código de Direito Canônico: “São festas de preceito os dias de: Natal do Senhor Jesus Cristo, do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo, de Santa Maria Mãe de Deus, e de sua Imaculada Conceição. As celebrações da Epifania, da Ascensão, da Assunção de Nossa Senhora, dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo e a de Todos os Santos ficam transferidas para o domingo, de acordo com as normas litúrgicas. A festa de preceito de São José é abolida, permanecendo sua celebração litúrgica”. É um texto que dá margem a mais de uma interpretação.

Não se pode cumprir dois preceitos com uma missa só. Ou Todos os Santos é preceito, e aí temos dois preceitos, obrigando o fiel a assistir a duas missas; ou Todos os Santos não é preceito, e então neste fim de semana não há dois preceitos, mas apenas um, o dominical

A primeira diz que, se as festas de preceito são Natal, Corpus Christi, Maria Mãe de Deus e Imaculada Conceição, então os outros preceitos (Epifania, Ascensão, Assunção, São Pedro e São Paulo, e Todos os Santos) foram abolidos, com sua celebração movida para o domingo, enquanto o preceito de São José é abolido, mas o dia não muda. Se for assim, não há dois preceitos no próximo fim de semana, mas apenas um: o preceito dominical, que poderia ser cumprido indo à missa no sábado à tarde/noite (com a liturgia de Todos os Santos) ou no domingo (com a liturgia de Finados, tanto faz).

A segunda interpretação diz que essas cinco solenidades (Epifania, Ascensão, Assunção, São Pedro e São Paulo, e Todos os Santos) continuam sendo de preceito, tendo apenas sido movidas para o domingo – quem defende essa interpretação diz que, se a CNBB quisesse abolir o preceito, teria escrito “a festa é abolida”, como escreveu em referência a São José. Se for assim, então temos dois preceitos para cumprir neste fim de semana, o de Todos os Santos e o preceito dominical. Repito a pergunta: e agora?

Esclarecimento da CNBB não esclareceu muita coisa

Tanto faltou clareza (ao contrário dos bispos americanos, que decretaram explicitamente que “quando 1.º de janeiro, solenidade de Maria, Mãe de Deus; 15 de agosto, solenidade de Assunção; ou 1.º de novembro, solenidade de Todos os Santos, cair em um sábado ou em um domingo, a obrigação de ir à missa é abolida”) que há bispos dando orientações diferentes a esse respeito. Nesta segunda-feira, com a treta já instalada, a CNBB se pronunciou por meio do frei Luís Felipe Marques, assessor do Setor Pastoral Litúrgica da Comissão Episcopal para a Liturgia da CNBB – mas não ajudou muito, não.

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A matéria diz que Todos os Santos “é uma celebração de preceito e deve ser participada pelos fiéis”, e o frade afirma que “indo à missa no sábado à tarde, além de cumprir o preceito de Todos os Santos, estarei cumprindo também o preceito dominical”. Mas não existe, em hipótese alguma, isso de cumprir dois preceitos com uma missa só: em um texto publicado no site do padre Paulo Ricardo em 2023, o padre José Eduardo conta que, em 1974, a conferência episcopal americana enviou um dubium à Congregação para o Clero, no Vaticano, em um caso parecido: a solenidade da Assunção, 15 de agosto, caía num sábado. Os bispos dos EUA perguntaram se era possível cumprir o preceito específico da Assunção e o preceito dominical em uma única missa na tarde de sábado, e a resposta da Santa Sé foi negativa.

A discussão, então, se resume ao seguinte dilema: ou Todos os Santos é preceito (como parece estar implícito nas citações da matéria da CNBB) e aí temos dois preceitos, obrigando o fiel a assistir a duas missas, desde que nos dias/horas corretos; ou Todos os Santos não é preceito, e então neste fim de semana não há dois preceitos, mas apenas um, o dominical, que pode ser cumprido também no domingo, e não apenas no sábado à tarde/noite.

Ainda temos tempo para a CNBB esclarecer melhor a questão, mas, na falta disso, o que fazer? Havendo uma orientação do bispo local, esteja tranquilo para segui-la. Se não houver, reze, peça conselho, siga a sua consciência – e atenção: se a sua consciência lhe disser que são dois preceitos, então você está obrigado, sim, a assistir a duas missas, e não adianta usar uma interpretação possível da norma para fugir do dever que você mesmo se impôs. Claro, o ideal é ir à missa sempre que se pode, e o católico não vai à missa só para se livrar de uma obrigação, mas porque ama a Cristo. Tendo a possibilidade, vá à missa no sábado para festejar a Igreja Triunfante, e no domingo para recordarmos todos os nossos entes queridos e pedir que Deus os acolha em Sua glória.

Duas missas tridentinas que não poderiam ser mais diferentes uma da outra

Neste fim de semana pudemos ver claramente a diferença entre a obediência e a rebelião entre os tradicionalistas. No sábado, o cardeal Raymond Burke celebrou uma missa tridentina no Altar da Cátedra da Basílica de São Pedro, em Roma. Foi o ponto culminante da peregrinação anual Summorum Pontificum – o nome do documento de 2007 pelo qual Bento XVI liberou a celebração da missa tridentina sem necessidade de autorização episcopal –, que ocorre desde 2012. Depois que Francisco publicou Traditionis Custodes, em 2021, a peregrinação continuou ocorrendo, mas sem a celebração desta missa. As informações de bastidores que encontrei são unânimes: algo assim só poderia ter acontecido com a autorização expressa do papa Leão XIV – não há uma confirmação oficial do Vaticano a esse respeito, mas São Pedro é a “basílica do papa”, e logo após a eleição de Leão XIV os organizadores da peregrinação enviaram a ele uma carta pedindo a permissão para que a missa pudesse a ser celebrada em São Pedro.

Milhares de peregrinos participaram da missa – o número superou as previsões do Vaticano, que fez o que pôde para acomodar a todos, já que o espaço entre o altar-mor papal e o Altar da Cátedra não cabe todo esse povo. A maioria deles fez o caminho destinado aos peregrinos jubilares, em uma curta procissão pela Via della Conciliazione, começando perto do Rio Tibre e terminando na Praça de São Pedro. Ao fim da missa, o cardeal albanês Ernest Simoni, 97 anos, ex-prisioneiro da ditadura comunista da Albânia, rezou a oração completa composta por Leão XIII a São Miguel Arcanjo, em um rito de exorcismo devido a casos recentes de profanação ocorridos dentro da Basílica de São Pedro.

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No dia seguinte, a milhares de quilômetros de Roma, o Centro Dom Bosco e a Sociedade São Pio X aprontavam das suas mais uma vez. O bispo suíço Bernard Fellay celebrou uma missa tridentina campal no Aterro do Flamengo, com organização do CDB e do Centro Cultural Permanência. O CDB afirmou que esta foi “a primeira Missa Tradicional pública celebrada no Rio de Janeiro desde o Congresso Eucarístico Internacional de 1955”.

Seria lindo, se não fosse uma missa clandestina. Mesmo um bispo, para celebrar missa fora de sua diocese (e dom Bernard Fellay nem tem diocese alguma), precisa de autorização expressa, ou ao menos presumida, do bispo local, como diz o cânon 390 do Código de Direito Canônico. E fontes da Arquidiocese do Rio de Janeiro consultadas pela coluna afirmaram que dom Orani Tempesta nem sequer foi comunicado a respeito desta missa, muito menos recebeu qualquer pedido de autorização para que dom Fellay a pudesse celebrar. Pelo contrário: a posição oficial da arquidiocese, manifestada em junho, é a de que “os fiéis católicos devem abster-se de participar das atividades promovidas por tal Fraternidade [a SSPX] ou por associações jurídica ou espiritualmente a ela vinculadas, como é o caso agora do Centro Dom Bosco, que se autodeclarou sob a direção da Fraternidade e de ministros que a ela pertencem ou a suas comunidades amigas”.

A SSPX, lembremos, não tem status canônico regular. Dom Bernard Fellay foi validamente ordenado, mas foi excomungado por João Paulo II em 1988 e teve sua excomunhão levantada por Bento XVI em 2007 – ou seja, é bispo católico. A missa que ele celebrou foi válida, ou seja, ali de fato o pão e o vinho se transformaram no Corpo e no Sangue de Cristo; mas foi ilícita, porque ocorreu em desacordo com lei canônica, sem a autorização do ordinário local. Obediência, como sabemos, nunca foi exatamente o forte da SSPX, e cada vez menos parece ser o forte do CDB também. O contraste com os tradicionalistas que foram em peregrinação a Roma, e que suportaram pacientemente os anos em que não puderam celebrar na Basílica de São Pedro, não poderia ser mais marcante.

Atualização

A coluna foi atualizada com a informação da resposta do Vaticano aos bispos dos Estados Unidos sobre a possibilidade de se cumprir dois preceitos em uma única missa.

Atualizado em 29/10/2025 às 12:32

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