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Os católicos da Nicarágua se uniram de forma especial ao Cristo sofredor nesta Semana Santa que acaba de terminar, pois foram completamente proibidos de manifestar sua fé nas ruas do país. A ditadura socialista comandada por Daniel Ortega e sua esposa e vice-presidente Rosario Murillo proibiu quase 5 mil procissões ao longo de toda a Quaresma e Semana Santa, incluindo as do Domingo de Ramos e as do Senhor Morto, tradicional na Sexta-Feira Santa. Mas os fiéis não se deixaram intimidar e lotaram as igrejas, mostrando aos ditadores que seguem resolutos.
A versão em espanhol do site ACIPrensa informou que Ortega colocou um total de 4 mil policiais para garantir que, na esmagadora maioria dos casos, as cerimônias ocorressem única e exclusivamente dentro das igrejas – uma rara exceção foi a Via-Sacra penitencial na catedral de Manágua, que reuniu mais de 12 mil pessoas na Sexta-Feira Santa, de acordo com a página da arquidiocese no Facebook. Segundo jornalistas, a ditadura evitou mandar policiais fardados para evitar qualquer tipo de imagem que pudesse correr o mundo e desmoralizar o regime sandinista de Ortega e Murillo. No entanto, os agentes do regime à paisana eram facilmente identificáveis pela maneira como usavam os celulares para tirar fotos não dos eventos, mas daqueles que participavam das cerimônias – e mesmo assim a possibilidade de acabar “fichado” por ser católico não intimidou os fiéis que lotaram as igrejas.
Também citado por ACIPrensa, o advogado nicaraguense Juan Diego Barberena afirmou que a ditadura “já perdeu” a batalha das restrições à liberdade religiosa na Nicarágua. A persistência dos católicos do país é admirável, mas infelizmente não tenho a certeza que gostaria de ter a esse respeito. Quem conhece o roteiro “tradicional” das perseguições religiosas sabe que Ortega e Murillo estão apenas começando e ainda podem ir muito mais longe do que já foram. A não ser que um milagre livre a Nicarágua dos sandinistas no futuro próximo, os fiéis do país provavelmente passarão por muitas outras provações e precisarão de apoio, seja explícito, seja nos bastidores.
Quem conhece o roteiro “tradicional” das perseguições religiosas sabe que Daniel Ortega e Rosario Murillo estão apenas começando e ainda podem ir muito mais longe do que já foram
Durante a bênção urbi et orbi, neste domingo de Páscoa, o papa Francisco não citou a Nicarágua, notou o vaticanista John Allen Jr. no Crux, como também não mencionou perseguições na China e na Índia, embora tenha se referido à guerra entre Israel e o Hamas, à invasão da Ucrânia pela Rússia, à perseguição à minoria rohingya em Myanmar, a uma série de conflitos na África e a outros temas e lugares. O jornalista tem uma tese: as guerras explicitamente mencionadas são aquelas em que o Vaticano tem pouca ou nenhuma chance de interferir – em alguns casos, porque declarações anteriores foram muito mal recebidas por uma das partes em conflito, casos de Israel e Ucrânia; já os silêncios são sinais de que há alguma interlocução funcionando. No caso da Nicarágua, é preciso lembrar que Francisco já chamou o regime sandinista de “ditadura grosseira”, mas recentemente conseguiu que o bispo Rolando Álvarez fosse libertado e enviado para Roma junto com vários outros padres.
E, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral permite, não custa nada lembrar que Daniel Ortega tem um grande aliado no Palácio do Planalto, um presidente para quem todos os ataques à liberdade religiosa promovidos pelo ditador não passam de uma “disputa”. Lula, aliás, é amigo e admirador de outros ditadores e regimes que perseguem a Igreja, como o cubano, que também proibiu procissões nesta Semana Santa. Ainda hoje me pergunto como é que houve quem caiu na lorota do “Lula democrata” ou fez o L “pela democracia”; acho que é uma resposta que só terei no Juízo Final.
João Paulo II, Ortega e a Nicarágua
Hoje completam-se 19 anos do dia em que São João Paulo II partiu para receber de Deus sua recompensa eterna. Eu não tinha nem um ano de Gazeta do Povo quando fui convocado para ajudar a atualizar o material que já tínhamos preparado desde que a doença do papa se agravou. O caderno especial chegou às bancas poucas horas depois da confirmação oficial do falecimento. Todos os grandes jornais e revistas fizeram suas edições especiais, quase todas com aquele retrato clichê de João Paulo II: um líder carismático, que ajudou a acabar com a Guerra Fria, mas também um ultraconservador contrário a tudo o que essas publicações viam (e ainda veem) como “progresso”, especialmente em relação à defesa da vida e da família. Nós fizemos diferente, quisemos dar a verdadeira dimensão daquele longo papado; muitos leitores responderam dizendo “o caderno especial da Gazeta é o único que tenho vontade de guardar como recordação”.
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Em março de 1983, João Paulo II esteve rapidamente na Nicarágua, como parte de uma visita mais longa à América Central. Daniel Ortega já governava o país, e ainda contava com o apoio de boa parte da população, pois fazia poucos anos que os sandinistas haviam deposto outro ditador, Anastasio Somoza. Parte do clero também estava com o esquerdista, e muita gente só se lembra dessa viagem papal pela célebre imagem da reprimenda de João Paulo II ao padre-ministro Ernesto Cardenal. Na biografia Sua Santidade, Carl Bernstein e Marco Politi descreveram a atmosfera carregadíssima que marcou a visita, o contexto geopolítico em que ela se deu, e a enorme confusão causada pelos gritos dos militantes sandinistas nos momentos mais duros da homilia do papa na missa campal em Manágua. Vale a pena recordar algumas dessas palavras:
“A unidade da Igreja é posta em questão quando aos poderosos fatores que a constituem e mantêm – a mesma fé, a Palavra revelada, os sacramentos, a obediência aos bispos e ao papa, o sentido de uma vocação e responsabilidade comum na missão de Cristo no mundo – são antepostos considerações terrenas, compromissos ideológicos, opções temporais, inclusivamente concepções da Igreja que suplantam a verdadeira.
Sim, meus queridos irmãos centro-americanos e nicaraguenses: quando o cristão, seja qual for a sua condição, prefere qualquer outra doutrina ou ideologia ao ensinamento dos Apóstolos e da Igreja; quando se faz dessas doutrinas o critério da nossa vocação; quando se pretende interpretar de novo segundo as suas categorias a catequese, o ensino religioso, a pregação; quando se instalam ‘magistérios paralelos’, como disse na minha alocução inaugural da conferência de Puebla, então debilita-se a unidade da Igreja, torna-se mais difícil o exercício da sua missão de ser ‘sacramento de unidade’ para todos os homens.
A unidade da Igreja significa e exige de nós a superação total de todas estas tendências de dissociação; significa e exige a revisão da nossa escala de valores. Significa e exige que submetamos as nossas concepções doutrinais e os nossos projetos pastorais ao magistério da Igreja, representado pelo papa e os bispos. Isto aplica-se também no campo da doutrina social da Igreja, elaborada pelos meus Predecessores e por mim mesmo.
“A Igreja (...) deve permanecer unida para anunciar a verdadeira mensagem do Evangelho e que esteja livre de deformações devidas a qualquer ideologia humana ou programa político.”
João Paulo II, em homilia durante visita à Nicarágua, em março de 1983.
(...) Queridos irmãos: tende bem presente que há casos em que a unidade só se salva quando cada um é capaz de renunciar a ideias, planos e compromissos próprios, até mesmo bons – tanto mais quando desprovidas da necessária referência eclesial – em favor do bem superior da comunhão com o bispo, com o papa, com toda a Igreja. De fato, uma Igreja dividida, como já dizia na minha carta aos vossos bispos, não poderá cumprir a sua missão ‘de sacramento, isto é, sinal e instrumento de unidade no país’. Por isso, eu alertava sobre ‘o absurdo e perigoso que é imaginar-se como ao lado – para não dizer contra – da Igreja construída ao redor do bispo, outra Igreja concebida só como ‘carismática’ e não institucional, ‘nova’ e não tradicional, alternativa e, como se preconiza ultimamente, uma ‘Igreja popular’. Quero hoje reafirmar estas palavras, aqui diante de vós.
A Igreja deve manter-se unida para poder opor-se às diversas formas, diretas ou indiretas, de materialismo que a sua missão encontra no mundo. Deve permanecer unida para anunciar a verdadeira mensagem do Evangelho – segundo as normas, da Tradição e do Magistério – e que esteja livre de deformações devidas a qualquer ideologia humana ou programa político.”
Quatro décadas depois dessa visita, a Igreja na Nicarágua está toda consciente do mal que Ortega representa. Até mesmo o padre Cardenal tornou-se crítico do ditador, tendo rompido com ele ainda nos anos 90. O funeral do sacerdote, em 2020 – realizado um dia antes do aniversário da visita de João Paulo II à Nicarágua –, foi interrompido por militantes sandinistas que chamavam Cardeal de “traidor”. Mesmo assim, a advertência do papa santo segue valendo em muitos outros países nos quais persiste a tentação de colocar a fé abaixo das conveniências políticas e das paixões ideológico-partidárias, como vemos por aqui com alguns “coroinhas de Lula”.