A segunda fase da “reunião sobre como fazer reuniões”, como alguém muito sábio (e que infelizmente não lembro quem foi para dar-lhe o devido crédito) definiu o Sínodo sobre a Sinodalidade antes mesmo da primeira sessão, está em andamento, e de forma meio modorrenta. Sim, tivemos o cardeal Fernández anunciando que as comissões para estudar a possibilidade de ordenação de mulheres ao diaconato chegaram à conclusão de que “ainda não há espaço para uma decisão positiva do Magistério sobre o acesso das mulheres ao diaconato” (medo desse “ainda”). Sim, tivemos o pregador Timothy Radcliffe dizendo que Fiducia supplicans fez participantes do Sínodo se sentirem “traídos” – será que isso entrou na lista de “pecados contra a sinodalidade” dos quais resolveram que a Igreja deveria pedir perdão na abertura do Sínodo? Mas, de resto, a coisa anda devagar, até porque passou um ano e parece que ninguém ainda sabe bem ao certo o que “sinodalidade” significa exatamente...
Então o papa Francisco resolveu dar uma chacoalhada, anunciando no Angelus deste domingo uma lista de 21 novos cardeais, que receberão o barrete vermelho no próximo dia 8 de dezembro, solenidade da Imaculada Conceição. O padrão das nomeações é aquele já conhecido quando se trata de Francisco: muitos novos cardeais das periferias geográficas do mundo (Argélia, Indonésia, Irã, Costa do Marfim, Equador), alguns prêmios a aliados próximos (como o monsenhor George Jacob Koovakad, indiano que organiza as viagens papais), uns poucos arcebispos de sés importantes (Turim, Toronto, Santiago do Chile), e algumas escolhas bem incomuns: como o eparca ucraniano na Austrália vira cardeal, enquanto o arcebispo-maior de Kyiv-Halyč não? Dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre e atual presidente da CNBB, é o único brasileiro da lista, e com ele o Brasil passaria a ter oito cardeais – dom Raymundo Damasceno é o único acima de 80 anos, inabilitado de participar em um conclave.
O “bloco dos cardeais nomeados por Francisco” é muito mais heterogêneo do que supõem aqueles para quem o papa planeja ter um sucessor ao seu estilo
Ah, o conclave. Toda vez que Francisco anuncia novos cardeais, volta a conversa de que ele estaria enchendo o Colégio Cardinalício de gente que pensa como ele para garantir que seu sucessor saia ao seu estilo. E toda vez temos de lembrar que a história recente (por “recente” podemos considerar os séculos 20 e 21) tem sido pródiga em desmentir os clichês sobre eleições papais. Vale a pena ler esse texto de George Weigel publicado em 2022 na First Things, com exemplos concretos de conclaves repletos de cardeais escolhidos por papas de um perfil, mas que elegeram um bispo de Roma com características bem diferentes. Além disso, a forma como Francisco age, como já lembrou o vaticanista John Allen Jr., enche o Colégio Cardinalício de gente bem diversa, que raramente tem a chance de se encontrar, e que tem preocupações e prioridades muito distintas a levar para um eventual conclave, ou seja, o “bloco dos nomeados por Francisco” é muito mais heterogêneo do que se supõe.
Até onde eu pesquisei, a safra 2024 de novos cardeais não parece comprometedora; é verdade que tem lá bispos que defenderam publicamente e aplicam Fiducia supplicans, e o mais “radical” do grupo, o dominicano Radcliffe, está mais para um aprendiz de James Martin que para um seu equivalente. Mas, pelo menos até o momento, não parece haver nenhum Cupich, nenhum Grech, nenhum Hollerich, nenhum McElroy, nenhum Roche, nenhum Ghirlanda, para citar alguns que defendem abertamente posições nada católicas, ou que estão fazendo estrago em posições de comando na Igreja. E pelo menos um caso é bem interessante: o canadense Francis Leo, arcebispo de Toronto, é um dos que promovem com força a devoção ao Sagrado Coração de Jesus em junho para se contrapor ao mês do orgulho LGBT.
A esse respeito, aliás, é preciso lembrar que mesmo papas santos já fizeram nomeações incompreensíveis. Um comentarista tradicionalista recordou, na internet, o consistório de 2001, em que João Paulo II transformou em cardeais, numa tacada só, os alemães Walter Kasper (o pai da ideia de comunhão para divorciados em nova união civil) e Karl Lehmann (que havia sugerido a renúncia de João Paulo II tempos antes), e o norte-americano Theorore McCarrick (laicizado depois de uma série de abusos inomináveis). É um bom lembrete de que a infalibilidade não cobre tudo o que um papa faz, e que mesmo papas santos também podem errar feio em escolhas de pessoal.
Papa diz muitas verdades na Bélgica e provoca choro e ranger de dentes
Antes do Sínodo, no fim de setembro, o papa fez uma visita breve à Bélgica e falou ali umas tantas verdades sobre ideologia de gênero, sobre o papel das mulheres e, especialmente, sobre aborto, que ele novamente comparou a homicídios cometidos por assassinos de aluguel. Durante a viagem, Francisco visitou o túmulo do rei Balduíno, que abdicou temporariamente do trono para não assinar uma lei de legalização do aborto em 1990, e elogiou seu exemplo, chegando a anunciar a intenção de abrir um processo de beatificação do monarca, falecido em 1993.
Os políticos belgas, então, promoveram um festival de indignação barata. O núncio apostólico na Bélgica foi convocado para “dar explicações”, e o primeiro-ministro Alexander de Croo afirmou que “é absolutamente inaceitável que um chefe de Estado estrangeiro faça tais declarações sobre decisões tomadas democraticamente em nosso país”, e que “não precisamos de lições sobre como nossos parlamentares aprovam leis democraticamente”. Outros ministros também tiveram direito ao seu momento de piti, mas não foram apenas eles: a Universidade Católica de Louvain teve seu momento PUC-Rio e PUC-Minas, a ponto de manifestar em comunicado sua “incompreensão e reprovação à posição expressa pelo papa Francisco sobre o papel da mulher na Igreja e na sociedade”. Que posição é essa? Vejam aí:
“Pensar na ecologia humana leva-nos a um assunto que vos é caro, como o tem sido para mim e para os meus Predecessores: o papel das mulheres na Igreja. Me agrada o que disseste. Neste âmbito, pesam muito a violência e a injustiça, juntamente com os preconceitos ideológicos. Por isso, temos de redescobrir o ponto de partida: quem é a mulher e quem é a Igreja. A Igreja é mulher: não é ‘o’ Igreja, mas ‘a’ Igreja, é a esposa. A Igreja é o povo de Deus, não uma empresa multinacional. A mulher, no Povo de Deus, é filha, irmã, mãe. Tal como eu sou filho, irmão, pai. São as relações que exprimem o nosso ser à imagem de Deus, homem e mulher, juntos, não em separado! Com efeito, as mulheres e os homens são pessoas, não indivíduos; são chamados desde o ‘princípio’ para amar e serem amados. Uma vocação que é missão. Daqui deriva o seu papel na sociedade e na Igreja.
“A mulher está no centro do acontecimento salvífico. É a partir do ‘sim’ de Maria que o próprio Deus vem ao mundo. A mulher é acolhimento fecundo, cuidado, dedicação vital.”
Papa Francisco, em encontro com estudantes da Universidade Católica de Louvain.
Não é o consenso nem são as ideologias que sancionam o que é caraterístico da mulher, o que é feminino. A dignidade é assegurada por uma lei original, escrita não no papel, mas na carne. A dignidade é um bem inestimável, uma qualidade original, que nenhuma lei humana pode dar ou tirar. A partir desta dignidade, comum e partilhada, a cultura cristã elabora sempre de novo, em diferentes contextos, a missão e a vida do homem e da mulher e o seu mútuo ser um para o outro, em comunhão. Não um contra o outro – isto seria feminismo ou machismo – e não com reivindicações opostas, mas o homem pela mulher e a mulher pelo homem, juntos.
Recordemos que a mulher está no centro do acontecimento salvífico. É a partir do ‘sim’ de Maria que o próprio Deus vem ao mundo. A mulher é acolhimento fecundo, cuidado, dedicação vital. Por isso a mulher é mais importante que o homem, e é triste quando a mulher quer fazer-se homem: não, é mulher, e isto ‘tem peso’, é importante. Abramos os olhos para os muitos exemplos quotidianos de amor, das amizades ao trabalho, do estudo à responsabilidade social e eclesial, da conjugalidade à maternidade ou à virgindade em favor do Reino de Deus e do serviço. Não esqueçamos, repito: a Igreja é mulher, não é masculina, é mulher.”
É, como diria Tino Marcos, “sentiram”, e sentiram pra valer.
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