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Na homilia da missa Pro eligendo pontifice, o cardeal-decano Giovanni Battista Re afirmou que “é forte o apelo à manutenção da unidade da Igreja segundo o caminho indicado por Cristo aos apóstolos. A unidade da Igreja é desejada por Cristo, uma unidade que não significa uniformidade, mas comunhão sólida e profunda na diversidade, desde que se permaneça plenamente fiel ao Evangelho”. O tema da unidade havia aparecido em várias intervenções dos cardeais nas congregações gerais pré-conclave. Depois de eleito, Leão XIV pediu, na sacada da Basílica de São Pedro, que “sem medo, unidos de mãos dadas com Deus e uns com os outros, sigamos em frente!”
O vaticanista Andrea Gagliarducci afirmou, em um excelente texto, que Leão XIV foi eleito não como um papa que faz concessões, nem um papa de consenso político, mas como um papa que traga harmonia. E todos sabem como há desavença dentro da Igreja atualmente. Não falo apenas dos assuntos em que existe uma liberdade saudável, com diversos pontos de vista lícitos – para ficar em um único exemplo já bastante “quente”, a ordenação de homens casados para o sacerdócio pode ser defendida sem problemas; é possível discordar (e eu mesmo discordo), mas não dizer que é uma posição herética. Em outros casos, no entanto, a divergência dá margem à heterodoxia, como na controvérsia da comunhão para católicos divorciados que vivem maritalmente em uma nova união civil: certas posições sobre esse tema fatalmente resultam na negação de verdades de fé sobre a indissolubilidade do matrimônio, ou a necessidade do estado de graça para receber a eucaristia. Basta olhar os perfis do College of Cardinals Report para ver como há divergências sobre esses assuntos. Como o papa Leão XIV vai lidar com isso?
“Divergência sempre ocorreu e sempre ocorrerá na história da Igreja; o importante é reafirmar a figura do papa como figura de unidade.”
Monsenhor André Sampaio, da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Dizem alguns relatos que começam a aparecer sobre o conclave – e que sempre precisam ser lidos com muito ceticismo, já que existe um dever de segredo sobre o que ocorre na Capela Sistina – que, no escrutínio decisivo, o cardeal Robert Prevost recebeu mais de 100 votos, de um total de 133 eleitores. “Acho que o processo do conclave, que exige dois terços para o papa ser eleito, é mais democrático que a maioria das eleições, em que alguém vence com 51% dos votos e sai bravateando que recebeu uma procuração de todo o povo para governar”, disse-me, ainda durante o conclave, o monsenhor Sérgio Costa Couto, da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em outras palavras: ainda que os relatos sobre uma votação avassaladora de Prevost não sejam reais, a própria exigência do apoio de dois terços dos cardeais indica que um papa jamais poderia ser eleito sem uma confluência de votos de cardeais com posições antagônicas, ao menos sobre alguns temas.
“Dentro da Igreja, e especialmente dentro do Colégio dos Cardeais, há ideias e opiniões distintas, o que é natural; mas não existe desunião. Pude perceber isso enquanto ajudei os cardeais brasileiros nas congregações gerais, pois o clima que eles relataram foi de fraternidade e respeito”, relatou durante o conclave o monsenhor André Sampaio, também da Arquidiocese do Rio de Janeiro. “Divergência sempre ocorreu e sempre ocorrerá na história da Igreja; o importante é reafirmar a figura do papa como figura de unidade, mas uma unidade na diversidade; Pedro é o sinal da unidade desejada por Cristo”, acrescentou.
“Infelizmente, o papa Francisco deixou algumas questões em aberto, o que levou a atitudes como os dubia de quatro cardeais sobre a comunhão para divorciados em nova união, que ele não respondeu”, afirma o professor Felipe Aquino; ele ressalta, no entanto, que em outros temas a insistência de alguns cardeais existe apesar de manifestações bastante claras do papa Francisco: “sobre a ordenação de mulheres, por exemplo, João Paulo II fechou a porta e Francisco disse mais de uma vez que a Ordinatio sacerdotalis era definitiva”.
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Para Aquino, o papa Leão XIV, cujo lema já é um chamado à unidade, “vai ter de acertar algumas coisas” e investir muito em clareza doutrinária, traçando limites claros a respeito de quais temas comportam uma variedade lícita de opiniões, e quais já estão definidos de forma permanente. “Ainda é cedo para sabermos de que forma o papa fará isso, mas eu concordo com o arcebispo Georg Gänswein, ex-secretário de Bento XVI, quando ele diz ao Corriere della Sera que Leão XIV é um pacificador e construirá pontes”, diz o professor. Ainda citando Gänswein, ele reconhece que há “grandes tensões na Igreja” e que, para superá-las, o novo papa precisará não só da já citada clareza doutrinária, mas também das estruturas de governo da Igreja, que existem para ajudar o pontífice em sua tarefa. Se Francisco tinha uma certa desconfiança em relação à Cúria Romana, Leão XIV deve ter outro entendimento, até por vir da Cúria, onde trabalhava antes de se tornar papa. “Estou confiante, acho que colheremos bons frutos com Leão XIV”, conclui Aquino.
Todo papa é chamado a governar a Igreja “para dentro”, sanando questões internas, e também “para fora”, posicionando a Igreja diante do mundo contemporâneo – que relevância dará a cada aspecto, e quais temas enfatizará, são escolhas particulares de cada pontífice. No aspecto interno, Francisco passou boa parte do seu pontificado dedicando-se à reforma da Cúria, e nos anos finais priorizou o tema da sinodalidade. Leão XIV pega uma Igreja com problemas administrativo-financeiros, e chacoalhada pelas fortes divergências de opinião, particularmente em temas onde tais divergências nem deveriam existir por seu potencial de comprometer o depósito da fé. Se o novo papa for capaz de recuperar uma unidade “plenamente fiel ao Evangelho”, para usar as palavras do cardeal Re, já ganhará seu lugar entre os maiores dos últimos tempos.








