Duas semanas atrás, afirmei que o Sínodo sobre a Sinodalidade estava meio em marcha lenta: aparentemente nenhuma dessas questões tão caras aos identitários estava sendo discutida para valer, e até os bispos e líderes mais conservadores não estavam tão veementes nos seus discursos, com uma ou outra exceção. Na semana passada, um famoso “progressista” norte-americano deu sua explicação para esse marasmo: Thomas Reese, padre jesuíta que foi editor da revista America até sua cabeça rolar com a eleição de Bento XVI, lamentou-se na semana passada ao repórter Christopher White, do National Catholic Reporter, dizendo que os conservadores “podem cantar vitória”.
“Francisco pegou todos os temas quentes e polêmicos e os tirou da agenda [do Sínodo], então os conservadores não têm nada do que reclamar”, disse o jesuíta norte-americano. De fato, este ano o papa resolveu criar dez comissões para tratar de temas como ordenação de mulheres e o acolhimento aos católicos LGBT; esses grupos até apresentaram ao Sínodo os resultados de algumas discussões iniciais, mas todos têm até junho do ano que vem para terminar o trabalho. Além disso, há algumas coisas estranhas acontecendo no próprio Sínodo, como o cano que o cardeal Victor Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, deu em uma reunião que incluiria o grupo de trabalho sobre acesso das mulheres ao diaconato, alegando problemas de agenda e mandando dois “subs do sub” no lugar.
Minha esperança é que os “padres sinodais” (e os não padres também, já que está cheio de leigos lá participando e votando) voltem para casa pensando que estiveram na clássica “reunião que poderia ter sido um e-mail”
Mas calma lá, que o pessimismo do padre Reese sobre o Sínodo talvez não seja totalmente fundado. No mesmo dia em que a entrevista do jesuíta era publicada, o cardeal Joseph Zen, que nos seus 92 anos já não tem absolutamente nada a perder, lembrou que Fiducia supplicans apareceu, em dezembro do ano passado, sem que seu conteúdo tivesse sido discutido na primeira sessão do Sínodo, ocorrida poucas semanas antes. Além disso, os participantes do Sínodo podem não estar tratando dos temas polêmicos propriamente ditos na sessão deste ano, mas um assunto que está na mesa é o nível de autonomia doutrinal que poderia ser dado às conferências episcopais e aos bispos individualmente. É o tipo de coisa que legitimaria, por exemplo, loucuras como a dos bispos alemães. No entanto, as informações de bastidores dão conta de que, felizmente, a ideia está enfrentando muita resistência porque seria um golpe duríssimo na unidade da Igreja – e seria mesmo.
Com esta segunda sessão do Sínodo marcada para terminar no próximo domingo, minha esperança é que os “padres sinodais” (e os não padres também, já que está cheio de leigos lá participando e votando) voltem para casa pensando que estiveram na clássica “reunião que poderia ter sido um e-mail” – um e-mail bem longo, sem dúvida, mas ainda assim um e-mail. Mas nem assim poderemos ficar tranquilos, continuando a rezar para que Deus nos livre de surpresas pós-sinodais.
Falei cedo demais sobre os novos cardeais
Na coluna sobre o anúncio dos novos cardeais, feito durante o Sínodo, escrevi que “até onde eu pesquisei, a safra 2024 de novos cardeais não parece comprometedora”. Escapou-me uma entrevista de 2022 do arcebispo de Argel (Argélia), o dominicano Jean-Paul Vesco, francês naturalizado argelino. Falando a um site católico suíço, Vesco afirmou que “devemos conseguir nos livrar da ideia de que devemos evangelizar”, segundo a tradução do site IHU Unisinos – foi a frase escolhida para destacar a entrevista, e sendo o pessoal da Unisinos quem é, acho que a escolha não foi para criticar, mas para elogiar.
O bispo até disse coisas bem mais sensatas, por exemplo sobre a necessidade de os católicos da Argélia não se tornarem insignificantes apesar de serem pouquíssimos. E eu até entenderia se ele afirmasse que, em contextos como o da Argélia, o testemunho pessoal do católico contaria muito mais que a pregação das verdades da fé (até porque na Argélia é ilegal tentar convencer alguém a deixar o islamismo para se converter a outra religião). Mas abrir mão de evangelizar, assim, sem mais? Onde foi parar o “ai de mim se eu não evangelizar” paulino, ou a ordem “ide e fazei discípulos meus todos os povos” dada pelo próprio Cristo? E isso que não faz muitos meses o papa Francisco lembrou a necessidade da evangelização quando disse, aos novos arcebispos que haviam ido a Roma receber o pálio:
“O caminho do apóstolo Paulo é, também e sobretudo, uma experiência pascal. Efetivamente, primeiro ele é transformado pelo Ressuscitado no caminho de Damasco e, depois, na contemplação contínua de Cristo crucificado, descobre a graça da fraqueza: quando somos fracos – afirma – é então que somos realmente fortes, porque já não nos apegamos a nós mesmos, mas a Cristo (cf. 2 Cor 12, 10). Alcançado pelo Senhor e crucificado com Ele, Paulo escreve: ‘Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gl 2, 20). O objetivo de tudo isto, porém, não é uma religiosidade intimista e consoladora, como hoje nos apresentam alguns movimentos na Igreja, com uma ‘espiritualidade de salão’; pelo contrário, o encontro com o Senhor acende na vida de Paulo o zelo pela evangelização. Como ouvimos na segunda leitura, no fim da sua vida ele declara: ‘O Senhor esteve comigo e deu-me forças, a fim de que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem’ (2 Tm 4, 17). (...) Pedro e Paulo fizeram esta experiência de graça. Tocaram com as mãos a obra de Deus, que lhes abriu as portas da sua prisão interior e também das prisões reais onde estavam encerrados por causa do Evangelho. E abriu-lhes, igualmente, as portas da evangelização, para que pudessem experimentar a alegria do encontro com os irmãos e irmãs das comunidades nascentes e levar a todos a esperança do Evangelho.”
Quem sabe em dezembro, quando Vesco estiver em Roma para receber do papa Francisco o barrete vermelho, o pontífice possa lembrá-lo de que a evangelização é algo de que ninguém pode se esquivar.
Um milagre entre os yanomami
Também em meio aos trabalhos do Sínodo, o papa canonizou 14 pessoas, incluindo 11 mártires que foram mortos na Síria, no século 19, por se recusarem a abraçar o islamismo. Os outros três canonizados eram um padre e duas religiosas. O sacerdote é o italiano Giuseppe Allamano, fundador dos Missionários da Consolata. O milagre cuja aprovação permitiu que ele estivesse entre os canonizados pelo papa Francisco neste domingo ocorreu em 1996, na selva amazônica brasileira, em Roraima. A história está em uma reportagem da Rádio França Internacional.
Um indígena yanomami chamado Sorino foi atacado por uma onça, que lhe abriu o crânio, a ponto de haver pedaços do cérebro de Sorino espalhados no chão. Os demais caçadores que estavam com ele pediram ajuda a missionárias da congregação fundada por Allamano, que prestaram os primeiros socorros do jeito que dava, e o encaminharam a um hospital em Boa Vista, pedindo a intercessão do fundador. A viagem levou três dias e, apesar da perda cerebral, Sorino se recuperou sem sequelas e assim continua até hoje, algo para o qual nem os médicos que o atenderam, nem o Vaticano encontraram explicação.
Fantástico, não? Mas, pelo que dom Evaristo Spengler, bispo de Roraima, disse à RFI, o trabalho da congregação da Consolata padece do mesmo problema do bispo Vesco. “Especificamente na terra yanomami, a missão não é de anúncio explícito do evangelho. Foi criada para o diálogo, valorização da cultura e do respeito à forma religiosa que o povo indígena vive, sem fazer proselitismo”, disse dom Evaristo. E aí eu fico me perguntando se o milagre não foi a forma que Deus encontrou de romper esse silêncio que nega aos indígenas o anúncio da salvação...
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