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A história de Rose dos Santos se confunde com a do bairro Borda do Campo, na periferia de São José dos Pinhais, município da Região Metropolitana de Curitiba. Sua família foi a segunda a chegar ao local, na esteira da instalação do Complexo Ayrton Senna (CAS), a sede das fábricas da Renault na América Latina. Agora, décadas depois, costureira e montadora são exemplo de uma parceria de sucesso, que vem mudando a vida dos moradores da região.
Rose é presidente da Associação Borda Viva, um projeto social apoiado pelo Instituto Renault – braço do grupo francês responsável por implementar a estratégia de ESG e Responsabilidade Social da Renault do Brasil. A estrutura atual da Borda Viva está montada em uma área de mais de mil metros quadrados, construída e doada à associação pela Renault do Brasil. No local estão instalados projetos de geração de renda para a própria comunidade, como a Casa da Costura e a Cozinha Escola.
A escolha da montadora por atender a essa comunidade se justifica: os dados mais recentes do IBGE, divulgados pela Prefeitura de São José dos Pinhais, mostram que mais de 61% dos moradores não concluíram o ensino fundamental. Associada à falta de formação está a baixa renda: 7 mil dos cerca de 9 mil habitantes empregados recebem até dois salários-mínimos.
“A maioria das pessoas daqui, 74% dos habitantes da Borda do Campo, vivem em situação de pobreza”, explicou Graziela Pontes, diretora executiva do Instituto Renault. “Esses dados são de 2018, e está dentro do nosso plano de ações melhorar essa situação até o ano de 2023. A Associação Borda Viva é hoje o nosso principal parceiro social de negócios, e a Rose é a líder dessa associação”.
Parceria da Associação Borda Viva com a Renault evoluiu com o tempo
No começo, lembrou Rose em entrevista à coluna Paraná S/A, os primeiros trabalhos feitos em parceria com a Renault eram para reaproveitar banners e outros produtos de lona que seriam descartados após o uso. As bolsas ecológicas feitas com o material reaproveitado foram colocadas à venda, mas a abordagem dos clientes ainda desagradava a presidente da associação.
“As pessoas que acabavam comprando essas ecobags faziam isso mais por pena. Tudo bem, elas queriam ajudar, mas dava para ver nos olhos dessas pessoas que elas tinham mais dó do que vontade de comprar o produto. Eu nunca gostei disso, sempre quis que as pessoas nos procurassem pela qualidade do que fazíamos”, revelou.
Foi quando o útil se uniu ao agradável, e as fábricas da Renault passaram a encaminhar à associação sobras de tapeçaria e dos cintos de segurança utilizados nas linhas de produção dos veículos do CAS. Por um lado, a estratégia vem ajudando a montadora desde 2016 a atingir a importante marca de coprocessar e reciclar mais de 500 toneladas de resíduos industriais todos os anos. Os investimentos na economia circular foram reconhecidos por importantes players mundiais, como o Fórum Econômico Mundial e a Câmara Americana de Comércio.
Por outro, o descarte consciente das sobras da fábrica se tornou uma fonte de matéria-prima de qualidade para que a Casa da Costura, capitaneada por Rose, melhorasse ainda mais a gama de produtos. Com a ajuda de uma consultoria da PUC-PR e o reaproveitamento de mais de 12 toneladas de materiais que de outra forma iriam parar em um aterro sanitário, as costureiras passaram a fazer bolsas, mochilas, nécessaires e outros produtos que são vendidos para o Brasil inteiro.
A formação das costureiras é feita na própria associação, e segundo Rose há uma fila de espera para entrar no time da Borda Viva. Há uma rotatividade, explica a empreendedora, que permite que outras mulheres consigam entrar no projeto nas vagas deixadas por aquelas que, graças à capacitação obtida no local, agora conseguem alçar seus próprios projetos.
“Nós temos empreendedoras que começaram aqui com a gente, mas já partiram para a carreira solo. Durante a pandemia não pudemos abrir mais turmas de formação, e o nosso espaço está se tornando limitado. Mas já estamos com planos de ampliação. Aqui ninguém era costureira. Hoje, são profissionais excelentes, que conseguem se colocar no mercado de trabalho. E nós fazemos a carta de recomendação e assinamos embaixo, porque são ótimas costureiras”, contou Rose.
Cozinha Escola já distribuiu mais de 54 mil marmitas gratuitas
A Cozinha Escola foi criada com o objetivo de dar segurança alimentar às famílias de cerca de 120 crianças da comunidade. No início, o objetivo era oferecer marmitas saudáveis a essas crianças, mas a procura dos adultos fez o projeto ser repensado e ampliado.
A associação formou, em junho de 2021, uma parceria com a ONG Gastromotiva. O resultado foi a união entre os projetos sociais e a doação e reaproveitamento de alimentos, com direito à aplicação de práticas de gastronomia social.
As mulheres da comunidade receberam uma formação em Cozinha Social, com mais de 228 horas de atividades práticas de curso ministrado pela ONG. Com isso, as cozinheiras recém-formadas passaram a contar com um currículo de gastronomia social completo e conta com atividades práticas envolvendo temas como o consumo alimentar, gastronomia social e sua origem, captação de recursos, mobilização de redes, mensuração de impacto, formas de evitar o desperdício de comida, o consumo consciente de produtos e o reaproveitamento de alimentos.
Em novembro último, a parceria entre a Associação Borda Viva, o Instituto Renault e a ONG Gastromotiva resultou em mais de 54 mil marmitas totalmente gratuitas servidas para famílias em situação de vulnerabilidade social. Além do lado assistencial, a Cozinha Escola também conta com um restaurante que atende diariamente centenas de funcionários e colaboradores de empresas instaladas no entorno da comunidade. O projeto é autossustentável, uma vez que o valor da venda das refeições é revertido para a própria associação e para a geração de renda das cozinheiras voluntárias, que moram na Borda do Campo.
“A geração de renda é transformadora para essas mulheres, isso é maravilhoso. A gente tem sim um lado assistencialista, principalmente na Cozinha Escola. Mas a gente precisar educar o nosso povo. Muitas vezes essas famílias não têm uma qualificação para entrar no mercado de trabalho, e esse é o nosso papel. Nós damos um atendimento emergencial a essas famílias, mas também as ensinamos a trabalhar”, completou Rose.
Produtos da Borda do Campo são vendidos em Paris
Foi das máquinas de costura da Associação Borda Viva que saíram, por exemplo, os porta-carregadores elétricos, confeccionados exclusivamente para o lançamento do Renault Kwid E-Tech 100% elétrico, disponíveis para compra nas concessionárias e pela internet, na Boutique Renault. A Associação também está participando da elaboração de produtos que serão destinados à montadora na Colômbia.
“Eu estou criando uma calça feminina, um projeto de uniforme para as mulheres que foi pedido pela Renault da Colômbia. É um projeto de voluntariado lá da associação social deles, para o atendimento em um hospital de lá, e nós vamos fazer tudo aqui, em São José dos Pinhais”, disse Rose, confessando, na sequência, que já está projetando novos uniformes femininos das operadoras das linhas de produção das fábricas da Renault no CAS.
Também foi das mãos habilidosas das costureiras da Borda do Campo que saíram bolsas e sacolas com destino a um dos mais importantes centros de moda mundial, a avenida Champs-Élysées, em Paris. Uma linha com visual atrativo e moderno, produzida em parceria com uma estilista e alunos do Curso de Design de Moda da PUC-PR, foi colocada à venda no Atelier Renault, em um dos endereços mais caros da capital francesa.
Ao ser perguntada sobre a sensação de ver produtos made in Borda do Campo sendo comercializados em um local tão nobre, Rose se disse sem palavras. Emocionada, a empreendedora, que carrega nos olhos o brilho da vontade de superar cada um dos obstáculos que a vida lhe impôs, disse ver nesse resultado a certeza de que o esforço de toda uma vida valeu a pena. E mais do que se acomodar com o objetivo alcançado, ela quer seguir mudando a vida de mais e mais mulheres da comunidade.
“Eu jamais imaginei que alguma coisa minha fosse ser vendida em Paris. Diferente lá do começo, quando as pessoas compravam meus produtos só para me ajudar, hoje eu vejo satisfação nos olhos dos meus clientes. As coisas mudaram completamente. Quando essas mulheres se dão conta de que o que elas produziram está sendo vendido no centro do mundo da moda, elas também se dão conta do salto de qualidade na vida delas. Essas mulheres que estão aqui comigo já foram resgatadas, hoje estão prontas. Mas eu preciso resgatar muito mais ainda”, concluiu.