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Londrina, minha cidade amada,
Hoje você está fazendo 90 anos. Para uma pessoa, 90 anos é uma idade avançada. Mas, para uma cidade, 90 anos é a flor da juventude. Sua vida, embora repleta de heroísmo e drama, está apenas começando. Por isso, permita-me chamá-la de você.
Você me deu tudo, Londrina. Minha família, meu trabalho, meus amigos, minha vida. Você resgatou aquilo que me é mais precioso: a fé em Deus. Quando pus meus pés pela primeira vez nesta terra vermelha, eu era apenas um menino tolo, egoísta e perdido. Você me tornou um homem. Me apresentou ao amor da minha vida, me ensinou a ser gente e me deu um filho. Por isso, dediquei minha vida de cronista a cantar suas alegrias, belezas e consolações.
Eu sempre imaginei você, Londrina, não como um lugar, mas como uma pessoa. Não como um espaço físico, mas como um enredo que se desenrola entre o tempo e a eternidade.
Deus quis que eu antes fosse filho das duas pessoas que eu mais desejaria encontrar hoje: Paulo Lourenço e Aracy Costa Briguet Lourenço. Quando aquele menino nasceu em São Paulo, no Hospital São Camilo, em 10 de julho de 1970, Deus sabia o que estava fazendo. Naquele mesmo dia, meu pai foi sorteado no consórcio e veio buscar o filho na maternidade dirigindo um Fusquinha modelo 69.
Esse Fusquinha tinha uma cor parecida com a do latossolo vermelho, formado pelo derrame de lavas vulcânicas na infância do planeta Terra, no período Cretáceo. Ninguém sabia, mas, 137 milhões de anos atrás, quando se formou a terra vermelha, você já me chamava, Londrina.
Minha querida irmã Maria Fernanda nasceu cinco anos depois, no dia 17 de julho de 1975, exatamente quando Londrina viveu a dor da geada negra, que marcou o fim da era do café. No meio daquele frio e daquele drama histórico, você me chamava, Londrina.
Londrina me chamava há exatos 100 anos, em algum dia de 1924, quando o escocês Arthur caminhava pelas ruas de Londres e encontrou Lord Lovat, com quem já havia trabalhado em empreendimentos no Sudão. O nobre financista perguntou ao amigo se ele estaria interessado em desenvolver projetos de colonização na América do Sul. Arthur aceitou o convite na hora — e a filha de Londres começava a nascer naquele momento.
Você me chamava, Londrina, quando George, um jovem paulista filho de ingleses, liderou a primeira caravana de pioneiros. Eles atravessaram o Rio Tibagi numa canoa e seguiram dentro da mata, usando uma trilha aberta pelos caboclos, talvez ainda no tempo dos aldeamentos católicos.
Um guia caingangue estava com eles. George, sempre observador, percebeu que o índio conversava com os animais da floresta em voz baixa, chamando-os pelo nome. No final da tarde, o engenheiro russo Alexander gritou: “É aqui!”. Imediatamente, o português Alberto, mestre da carpintaria, deu a ordem para que os camaradas abrissem uma clareira.
As árvores de palmito tinham duas utilidades: alimento e abrigo.
As primeiras habitações do povoado, inicialmente chamado Três Bocas, eram todas de palmito. Era final de tarde, via-se um pôr-do-sol rubro. Aquele lugar hoje é chamado de Marco Zero
Você me chamava, Londrina, quando Andrei e Natasha fugiam do país em que haviam nascido. A aflição do casal não era tanto o frio siberiano de 40 graus negativos, mas a crueldade do governo comunista.
Foram embora a pé. Meses depois, chegaram às montanhas do Afeganistão. Para atravessar um rio, Natasha entregou ao barqueiro o único bem material da família: uma velha máquina de costura.
Feitos prisioneiros por bandidos, foram obrigados a trabalhar como escravos numa jazida de ferro. Fugiram de novo. Guiados por uma força de vontade inexplicável, chegaram ao território de Bangladesh, na época uma possessão britânica. Trabalharam para a família de um coronel inglês, e por ele souberam de uma companhia que estava arregimentando colonos para tentar a vida na América do Sul.
Depois de uma longa viagem de navio, Andrei e Natasha tomaram um trem e conheceram a Filha de Londres — você, Londrina. O primeiro filho brasileiro do casal nasceu em um rancho de palmito.
Você me chamava, Londrina, quando David, um menino libanês de 9 anos, nascido na aldeia de El Houssoun, foi levado por um tio, monsenhor da igreja maronita, para estudar em Nazaré, na Palestina. Ali, na cidade em que Jesus foi criado, David aprendeu comércio, filosofia, história, geografia, teologia, mitologia, aramaico, francês.
Do tio, ganhou uma libra de ouro; do avô, um anel com o nome David. Trouxe esses dois objetos na bagagem quando veio para o Brasil. Em Jataí, cidade conhecida como Boca do Sertão, conheceu o escocês Arthur, que lhe fez uma proposta: montar um armazém de secos e molhados na nova cidade que estava sendo construída na outra margem do rio. David aceitou.
Na casa do comerciante libanês foi celebrada a primeira missa da Filha de Londres. O anel e a libra de ouro estão até hoje com a família de David. Agora, poucos antes do seu aniversário, Londrina, nasceu o trineto daquele menino de El Houssoun.
Você me chamava, Londrina, quando o alemão Alberto abriu um pequeno ponto de comércio, abrigado em rancho de palmito. Numa viagem a São Paulo, ele havia encontrado o amigo Friedrich, gerente da empresa Siemens, deprimido por ter de fazer tantas demissões após a crise de 1929.
Alberto disse ao amigo: “Vá para o mato, é melhor do que passar fome na cidade”. E Friedrich foi, trazendo a mulher Helena e a filha de dois anos, Freya. A beleza da mata fez Helena recordar as florestas alemãs de sua infância. Ela escreveu: “Nem cem cavalos me arrastam daqui, aqui eu quero morrer, em tanta beleza”.
Certo dia começou a chover forte e as goteiras tomaram o rancho de palmito; Helena abriu um guarda-chuva sobre o berço de Freya. Jamile, a mulher de David, também se negava a desistir.
Quando os irmãos lhe disseram que uma mulher jovem e educada não poderia viver em lugar tão inóspito, onde nem havia móveis dentro de casa, ela respondeu: “Se não houver móveis, a gente senta nos caixotes de querosene!”.
Você me chamava, Londrina, quando os alemães se reuniram para escolher o nome do novo distrito que haviam criado. De repente, um negro chamado Arlindo, que convivia com os alemães e aprendera a falar o idioma deles, tomou a palavra: “Nós, alemães, precisamos ficar unidos. Por isso, este lugar se chamará Vale do Lar (Heimtal)”. E assim foi feito.
Também tinha pele escura a santa venerada pelos poloneses que formaram o Distrito da Warta. Certa noite choveu tanto que até as caixas de fósforos ficaram molhadas. Eduardo teve que andar quilômetros a pé, por uma picada, até uma vendinha no Heimtal.
Ao chegar em casa, acendeu o lampião — e uma vela para Nossa Senhora de Czestochowa, a Madona Negra. A escuridão da noite era quebrada pelas pequenas luzes da casa polonesa.
Você me chamava, Londrina, quando Celso, nascido no povoado de Tamaguelos, migrou da Espanha para o Brasil aos 18 anos. Em Santos, Celso trabalhou como garçom no Parque Balneário Hotel. Enquanto servia, ouviu os clientes comentando sobre o Norte do Paraná e a Filha de Londres.
Em 1930, veio para a região. Trabalhou duro e juntou dinheiro para comprar um caminhão Ford 1929, que depois transformou em um ônibus, apelidado de “Jardineira”. Era o início de uma grande companhia rodoviária. Nos anos 1960, viajou à Índia para trazer, ao país, matrizes da raça bovina zebu, numa luta obstinada para qualificar a pecuária nacional. Celso hoje dá nome a uma das rodovias que levam a você, Londrina. Para mim, todos os caminhos levam a Londrina.
Você me chamava, Londrina, no plantio dos primeiros cafeeiros, a capital mundial do café. Você me chamava quando os pioneiros construíram com madeira de peroba a primeira igreja matriz, hoje reproduzida no campus da UEL.
Você chamava nas 33 nacionalidades que se encontravam aqui já em 1938. Você me chamava nos pés do craque Carlos Alberto Garcia e no futebol que maravilhou o Brasil em 1977
Você me chamava em 1959, quando o prefeito Antônio Fernandes Sobrinho criou o Lago Igapó, que eu gosto de chamar com o nome da minha avó Maria. Porque se Igapó quer dizer “encontro das águas”, Maria quer dizer “encontro das graças”. Que saudade, Vó Maria! Como eu gostaria que você estivesse aqui com Londrina!
Você me chamava, Londrina, quando acolheu aqueles grandes cidadãos que no futuro viriam a me inspirar em minhas crônicas e livros: José Hosken de Novaes, Milton Menezes, Dr. Justiniano Clímaco da Silva, João Milanez, Dom Geraldo Fernandes, Padre José Kentenich, José Juliani, Haruo Ohara, Tomi Nakagawara, Hikoma Udihara e a minha querida Madre Leônia, a santa da minha rua, a santa da nossa cidade.
Você me chamava, Londrina, quando o Dr. Ascêncio Garcia Lopes transformava um perobal numa universidade. Você me chamava, Londrina, quando David Dequêch e seus companheiros fundavam a ACIL. Você me chamava, Londrina, quando as 12 irmãs alemãs criaram o Colégio Mãe de Deus.
Você me chamava, Londrina, quando Délio César criou o primeiro festival universitário, em 1968. Você me chamava, Londrina, quando Lucila Ballalai criou o Hospital do Câncer, salvador de tantas vidas, inclusive a vida de minha mãe.
Você me chamava quando Arrigo Barnabé compôs a “Valsa Londrina”. Você me chamava quando o caboclo chorava diante de um pé de café que havia nascido com ele, na triste manhã da geada de 75... Você me chamava, Londrina: “Paulo, Paulo, volte para casa!”
Você me chamava, Londrina, quando eu li os livros do seu maior escritor, Domingos Pellegrini, e imaginei uma festa em que todos os seus personagens estivessem presentes: José, Tiana, Zé do Cano, Mané Felinto, Lázaro Góis, Mané Preto, Maria Arrumadeira, Jeofrey, João Português, Dr. William, Irmã Trudberta, Dr. José Gomes de Moraes, Dr. Melo, o Homem Vermelho, 220 Volts, Circuito, Caruso, Mané Falcão, Mr. Chicago, Mr. Boston... Todos têm um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos. É a sua festa, Londrina — a festa dos seus 90 anos, menina-moça!
Você me chamava, Londrina, quando, em um dia de chuva, 35 anos atrás, eu desci em um ponto de ônibus errado no campus da UEL e no primeiro dia de aula conheci aquela que viria a ser a mulher da minha vida: Rosângela, que em seu nome traz a rosa e o anjo. Graças a ela, nasceria o primeiro londrinense da família: Pedro Henrique Vale Briguet. Pedro, você é o meu londrinense preferido, e o meu maior tesouro.
Para mim, você é isso, Londrina: um ensaio do Céu, uma terra para onde vêm aqueles que buscam paz, acolhimento e sobretudo consolação. Em Londrina nós temos a sensação de que alguma coisa boa vai acontecer — e acontece!
Você me chamou — e eu estou aqui, Londrina. Sei que não mereço tamanha honraria, mas estou aqui. Não pense, Londrina, que sou um homem grande. Sou, aliás, bem pequeno: é que subi no ombro de gigantes, como disse certa vez um velho cientista.
Você me chamou, Londrina — e estou aqui. Pai, eu estou aqui! Mãe, eu estou aqui! Vó Maria, eu estou aqui! Vô Briguet, você que era juiz de futebol e pintor de carros, estou aqui! Vô Costa, você que foi um menino solitário e maquinista de trem, estou aqui!
Londrina, eu agradeço de todo o meu coração — e peço licença para ser o menor de seus filhos. Londrina, você é uma terra de consolação e sobrevivência. Você é uma terra da ressurreição. Você é uma fonte de inspiração e entusiasmo para os difíceis tempos que precisaremos enfrentar, em defesa das nossas famílias e de tudo que mais amamos.
Quando Inácio de Antioquia era levado para o martírio em Roma, no ano de 110, ele disse aos que rezavam por sua libertação: “Este é o momento do meu nascimento”. Peço licença para usar as mesmas palavras do santo e encerrar esta carta que já se alonga, e poderia se alongar por mais 90 anos, se eu precisasse dizer tudo que está em meu coração. Londrina, este é o momento do seu nascimento!
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