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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Crime hediondo

Narcoterrorismo: as três crianças que morreram por uma gaiola de passarinho

Os meninos de Belford Roxo foram acusados de furtar uma gaiola de passarinho que pertencia ao tio do chefe do tráfico em Castelar. (Foto: Imagem criada usando ChatGPT/ Gazeta do Povo)

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Edgard Alves de Andrade, o Doca, era um dos principais alvos da Operação Contenção, realizada no Rio de Janeiro no último dia 28. O líder narcoterrorista de 55 anos conseguiu fugir. “Ele escapou por um triz, mas a captura dele é uma questão de tempo”, diz o secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Felipe Curi. Doca não é um criminoso qualquer: tem 260 anotações criminais e mais de 100 mandados de prisão em aberto. “Para quem não sabe, o Doca está envolvido no desaparecimento e morte daqueles meninos de Belford Roxo por causa do furto de uma gaiola de passarinho”, disse Filipe Curi.

A fala do secretário despertou-me a lembrança dessa história terrível ― um exemplo do tipo de crueldade que os narcoterroristas são capazes de fazer. Casos como a morte dos três meninos de Belford Roxo explicam por que 88% dos moradores das favelas aprovam a Operação Contenção, segundo uma pesquisa recente. Essas pessoas não aguentam mais viver sob o regime do terror.

É duro, é amargo, é revoltante, mas eu preciso contar essa história real a vocês, meus sete leitores.

Dois dias depois do Natal de 2020, três meninos saíram para brincar no campinho de futebol ao lado do condomínio em que moravam, no bairro Castelar, em Belford Roxo, município da Baixada Fluminense. Alexandre da Silva, de 10 anos, seu primo Lucas Matheus, de 8 anos, e o amigo Fernando Henrique, de 11 anos, costumavam fazer isso todos os domingos, e sempre voltavam na hora de almoço. Naquele domingo, porém, eles não voltaram. Foram vistos pela última vez nas imagens de uma câmera de segurança, na Rua Malopia, a caminho de uma feira no bairro da Areia Branca, onde costumavam comprar ração para passarinhos.

De qualquer modo, o caso da morte dos meninos-passarinhos demonstrou que o crime organizado do Rio possui um amplo apoio entre determinadas ONGs e entidades

Os três meninos de Belford Roxo amavam passarinhos. Silvia Reginaldo Silva, avó de Alexandre e Lucas, quando ainda tinha esperança de reencontrar os netos, disse:

― O Xande ama bicho. Quando ele encontra algum passarinho, traz pra casa e trata que nem neném.

O amor de Xande e seus amigos pelas pequenas aves pode ter sido a causa de um crime abominável. Os meninos foram acusados de furtar uma gaiola de passarinho que pertencia ao tio de Wiler Castro da Silva, conhecido como Stala, chefe do tráfico em Castelar. Ao tomar conhecimento do suposto furto, Stala ficou furioso. Entrou em contato com os chefes do Comando Vermelho presos no Complexo de Gericinó (zona oeste do Rio) e pediu permissão para executar os “ladrões de passarinho”. A permissão foi concedida por Edgard Alves de Andrade, o Doca, chefe do tráfico de drogas no Castelar. Existem áudios comprovando a autorização de Doca para o crime hediondo.

O secretário estadual da Polícia Civil na época, Allan Turnowski, com larga experiência em combate ao crime organizado, começou a suspeitar do envolvimento do tráfico de drogas no caso após alguns acontecimentos atípicos. Em janeiro, um homem foi preso por suspeita de participação na morte dos meninos, e solto logo em seguida, por falta de provas. Na ocasião, familiares dos meninos fizeram um protesto contra a soltura do homem, em frente à delegacia de Belford Roxo. No mesmo dia, foram queimados dois ônibus. “Ora, protesto de famílias não tem queima de ônibus”, disse o secretário aos seus subordinados. “Isso é modus operandi do tráfico.” Ficou claro que o tráfico tentava desviar o foco das atenções.

Ainda em janeiro, um pai-de-santo de Belford Roxo foi sequestrado por narcoterroristas locais, submetido a um tribunal do tráfico, torturado quase até a morte e entregue à avó dos meninos. Segundo os narcoterroristas, o pai-de-santo seria o responsável pela morte dos meninos em um suposto ritual de magia negra. A Polícia Civil investigou o pai-de-santo e concluiu que o homem era totalmente inocente.

No dia 27 de julho, o narcoterrorista Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, considerado “presidente” do Comando Vermelho nos presídios do Rio, saiu pela porta de frente da cadeia onde estava preso. Abelha foi libertado a despeito de um mandado de prisão que havia contra ele, pela morte de Ana Cristina Silva, baleada durante um confronto entre facções rivais do tráfico, em agosto de 2020. Ana Cristina foi atingida quando tentava proteger o filho de 3 anos.

Assim que saiu da cadeia, Abelha ordenou a execução de Stala, como queima de arquivo pela péssima repercussão do assassinato dos três meninos. Segundo a Polícia Civil, a autorização para o assassinato de Alexandre, Lucas e Fernando foi realmente concedida pelos líderes do Comando Vermelho, mas Stala não teria deixado claro que os alvos eram crianças. Doca, que havia autorizado a ação, foi absolvido pelo tribunal do crime.

De qualquer modo, o caso da morte dos meninos-passarinhos demonstrou que o crime organizado do Rio possui um amplo apoio entre determinadas ONGs e entidades, que criticaram duramente o governo do Estado por associar o crime hediondo aos narcoterroristas. O narcoterrorismo hoje conta até com assessoria de imprensa: após o crime, Abelha chegou a marcar uma coletiva de imprensa com os principais veículos de comunicação do Rio, que acabou não se realizando pela exigência de que fosse presencial. Era a época da pandemia.

Os corpos das crianças mortas pelo tráfico foram jogados em um rio de Belford Roxo, que desemboca na Baía de Guanabara. Nunca mais foram encontrados.

E Doca está solto.

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