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Paulo Briguet

Paulo Briguet

“O Paulo Briguet é o Rubem Braga da presente geração. Não percam nunca as crônicas dele.” (Olavo de Carvalho, filósofo e escritor)

Fé cristã

O último inimigo a ser vencido é a morte

"Cristo ressuscitou dos mortos, sendo ele as primícias dos que dormem" (Foto: Vincent Van Gogh / Wikimedia Commons)

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Em uma passagem de seu magnífico O Século do Nada, Gustavo Corção se recorda de uma cena da Segunda Guerra Mundial. Diante de uma mercearia na Londres bombardeada pelos nazistas, o dono do estabelecimento escreveu com giz: Open as usual. Alguns dias depois, a mercearia foi atingida por uma bomba que praticamente dividiu ao meio a edificação. Então o merceeiro cunhou em giz esta pérola do bom humor e da resiliência britânicos: More open than usual. A tirada é tão boa que, a exemplo dos trocadilhos shakespearianos, fica difícil traduzi-la literalmente. O melhor que eu conseguiria é “Aberta como sempre”, na primeira frase, e “Mais aberta do que nunca”, na segunda.

Durante os bombardeios da Luftwaffe, os ingleses comuns deram várias mostras de coragem. Ficaram famosas, por exemplo, as imagens dos leitores consultando as prateleiras de uma livraria cujo teto havia caído, dos cafés abertos apesar do medo de novos ataques e do leiteiro que saía para vender seus produtos indiferente à destruição em volta. Essas imagens nos ensinam que sempre há na vida uma ordem que resiste às mais caóticas circunstâncias. Talvez isso seja o que Aristóteles chamava de substância, ou seja, a ordem interna pela qual alguma coisa se torna o que é; talvez seja aquilo que Viktor Frankl chamava de sentido da vida, algo que faz um prisioneiro do campo de concentração resistir aos mais atrozes sofrimentos. Não importa o que aconteça, o merceeiro tende a continuar abrindo a mercearia. More open than usual.

E aqui eu me socorro novamente de uma frase de Gustavo Corção, esta extraída de outra obra-prima, Dois Amores, Duas Cidades:

“Diante do imenso reservatório de experiências, o que é preciso ter, para bom aproveitamento, é a finura de bem discenir as experiências efêmeras, superficiais, que apenas marcam uma época, e apenas trazem uma informação, das outras experiências que têm continuidade, que prosseguem sob formas diversas, que se multiplicam nas manifestações de superfície para afirmar a constância de um dado que nos traz um real conhecimento”.

Nossa pobre e pequena alma, pelo simples fato de ser imortal, vai durar mais do que a história de todos os buracos negros, de todas as galáxias, de todo o universo

Hoje é Dia dos Fiéis Finados, dia daqueles que já enfrentaram as circunstâncias efêmeras e permanentes da existência. É nosso dever rezar pelas almas daqueles que passaram a linha da morte e já discerniram a diferença entre o que passa e o que permanece. Eles têm muito a nos ensinar, pois já entenderam que existe uma realidade superior a todas as tentativas de submetê-la a um esquema puramente mental (e, não por acaso, a palavra mente tem a mesma origem que das palavras mentira e mensuração). Como disse o professor Olavo de Carvalho em A Consciência de Imortalidade: “Liberto dos elementos dispersantes da existência atual, o eu substancial poderá se concentrar apenas naquilo que é próprio à situação de perenidade”. Ninguém mais se lembra dos produtos que o merceeiro vendia em sua loja. Mas eternamente será lembrada a sua disposição em abrir a mercearia depois do bombardeio, quando tinha todos os motivos para não o fazer.

Na missa, leu-se hoje uma passagem particularmente arrebatadora da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios:

“Mas Cristo ressuscitou dos mortos, sendo ele as primícias dos que dormem, porque, assim como a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo. (...) Porque é necessário que ele reine, até que ponha todos os inimigos debaixo de seus pés. Ora o último inimigo a ser destruído será a morte.”

Certa vez, conversei com um preso do 8 de janeiro, condenado a 15 anos de prisão simplesmente por estar presente em Brasília naquele fatídico dia. Seu relato confirma aquilo que qualquer pessoa de bom senso já sabe: vivemos hoje no país uma espécie de realidade ao avesso, em que os bandidos julgam os inocentes, os doentes tratam os médicos, os ímpios pregam aos fiéis, os traidores condenam os traídos, os mentirosos corrigem os verazes, os perdulários controlam as despesas, os loucos comandam o hospício. No país do avesso, a mentira e a covardia nos bombardeiam diariamente. A verdade é que de algum modo provavelmente passaremos por tudo aquilo que São Paulo enumerava como aparentes obstáculos para o conhecimento da verdade: a tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada.

Mas, apesar de tudo isso, apesar desse buraco negro que parece sugar toda a luz de nossa esperança, há uma ordem maior na qual todos estamos mergulhados. É como disse São Paulo no Areópago de Atenas: “NEle vivemos, nos movemos e somos”. (At 17, 28)

Nossa pobre e pequena alma, pelo simples fato de ser imortal, vai durar mais do que a história de todos os buracos negros, de todas as galáxias, de todo o universo. Há uma Verdade que envolve e supera todas as dimensões do tempo e do espaço. Por isso, o Dia dos Mortos é o Dia de Vivos. Agora mais do que nunca.

(Dedico esta crônica ao meu saudoso pai, que sempre me convidava para passear no cemitério: “Vamos pegar um cemitério, Paulão?”)

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