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O trinco girou com aquele som que ela já sabia de cor: era o aviso de que ele estava vivo.
Ele entrou sem pressa. A farda ainda colada ao corpo, os olhos ainda presos em outra rua. Havia dias em que voltava inteiro, outros em que voltava calado. Naquela noite, voltou com uma sombra no rosto — daquelas que nem o banho leva.
Ela não disse nada. Ajeitou o pano de prato na alça do fogão, desligou o arroz e serviu dois copos de vinho. Um para acalmar, outro para ouvir.
Ele pendurou a chave, tirou o cinto e deixou a pistola sobre a prateleira de cima, onde o filho não alcança. Depois sentou.
— Vi o vídeo — disse ela, sem levantar os olhos.
Ele assentiu com a cabeça.
— Eu segurei a mão dela com cuidado. Pedi o documento. Ela já veio filmando. Disse que só fui atrás do cara porque ele era negro. E que eu era um bostinha de Quintino.
Ele falava devagar, como quem pisa em caco. A mulher ouvia em silêncio. Só mexia no arroz com o garfo, sem comer.
— Depois começou a gritar na frente de todo mundo. Xingou, debochou, colou a cara no meu colete e mandou: “Você já foi pra Europa?” Em certo momento, começou a falar em inglês, só pra me humilhar. Disse que tinha um milhão de seguidores e eu não tinha nenhum.
Ele parou. A frase ainda doía. Não por ela em si, mas pelo que trazia escondido: o desprezo de quem acha que polícia é subespécie.
— Pra ela, pobre só é digno quando grita do lado certo. Quando obedece a cartilha. Se põe farda, já vira inimigo. Eles estão em guerra contra nós. Eles querem a nossa morte.
A mulher serviu mais vinho. A comida estava fria.
— Você nunca quis ir à Europa, amor — disse ela, por fim. — Só queria pagar as contas e voltar vivo.
Ele girou o copo devagar, sem beber.
E hoje, no rádio da viatura… ouvi a frase. A frase do presidente.
— “Os traficantes são vítimas.”
— E hoje, no rádio da viatura… ouvi a frase. A frase do presidente.
Ela não precisou perguntar qual.
— “Os traficantes são vítimas.”
Ele deixou a frase no ar feito quem deixa cair uma farda molhada no chão. A mulher abaixou os olhos. Sabia que ele não estava falando só da frase — mas de tudo o que ela significava.
— Eu penso nos colegas que não voltaram. Nos que tomaram tiro defendendo escola, comércio, velho indo pro ponto. Os que morrem com dois filhos pequenos e trinta anos de serviço.
Ele respirou.
— E o homem que governa diz que os que matam esses colegas são… vítimas.
A mulher cerrou a mandíbula, devagar.
— Eles odeiam vocês — disse, firme. — Não suportam o pobre que trabalha. Só aceitam o trabalhador que repete o que eles mandam. O pobre com farda é um escândalo pra essa gente.
Ele fechou os olhos.
— A militante me chamou de bostinha. O presidente me chamou de opressor. E amanhã tenho que voltar pra rua e fingir que não escutei.
Ela tocou a mão dele.
— Você volta vivo.
A porta do quarto estava entreaberta. O menino dormia encolhido, o lençol descobrindo um dos pés, a respiração suave de quem ainda não sabe o peso do mundo.
Ela olhou por um instante, depois voltou à cozinha com um suspiro abafado.
— Quando ele crescer… vão ensinar que o pai era o vilão. Que farda é violência, que autoridade é opressão. Vão ensinar que você fazia parte do problema.
Ele se levantou, ajeitou a farda dobrada sobre a cadeira.
— Se depender da escola, da mídia, do partido… ele vai ouvir isso. Vai ouvir muito.
Ela cruzou os braços.
— Mas aqui em casa, ele vai saber. Vai saber que o pai levava tiro pra proteger os filhos dos outros. Vai saber que você sofria na rua, mas voltava.
— Voltava — repetiu ele, com a voz entrecortada.
Antes de dormir, ela passou mais uma vez no quarto do menino. Fez o sinal da cruz sobre a testa dele e ajeitou a mochila da escola no canto. Sobre a mesa, estava aberto o caderno de história — com o dever de casa: “Quem são os heróis do Brasil?”
Ela apagou a luz sem responder.
(P.S: Dedico esta crônica aos policiais tombados no cumprimento de dever nos últimos dias.)
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