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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Ad Astra, ou: muito além do Planeta Silencioso

(Foto: 20th Century FOX/Divulgação)

Eu concordo que tecnologia é per se neutra: mas uma raça dedicada a aumentar seu próprio poder pela tecnologia com total indiferença à ética, me parece um câncer no Universo. Certamente, se for muito adiante na atual rota, o homem não merece a confiança de receber conhecimento. (C. S. Lewis, em resposta a uma carta de Arthur C. Clarke)

Explorar o universo sempre foi um desejo do homem moderno. Conhecer novos mundos, procurar vida para além da Terra – e, num impulso conquistador, dominá-la – está no imaginário popular desde há muito. Muitos escritores – tais como H. G. Wells, Arthur C. Clarke e, mais recentemente, Carl Sagan  – se consagraram produzindo esse tipo de literatura. No entanto, essa sanha cientificista – que faz da ciência uma ideologia que promete solucionar todos os problemas da humanidade – gerou preocupação em escritores do porte de G. K. Chesterton, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis. O que parecia estar ocorrendo desde a metade do século 19, quando esse tipo de literatura começou a se notabilizar, era uma espécie de confiança demoníaca de que os desafios da ciência valessem qualquer esforço. Chesterton, num artigo – publicado em Hereges (Ecclesiae) – em que critica essa postura em H. G. Wells, diz (a citação é longa, mas é basilar):

A instância mais citada em nossos dias é a da chamada humildade do homem de ciência, certamente um bom exemplo e bastante moderno. Os homens consideram muito difícil acreditar que o homem que move montanhas e divide os mares, que derruba os templos e estende as mãos até as estrelas, realmente seja um tranquilo cavalheiro idoso que só pede para ser deixado em paz com o passatempo antigo e inócuo de seguir seu inofensivo e senil nariz. Quando um homem parte um grão de areia e em consequência o universo é virado de cabeça para baixo, fica difícil perceber que para o homem que o partiu a divisão do grão é um grande acontecimento, e a reviravolta do cosmo, algo muito pequeno. É difícil compreender os sentimentos de um homem que considera um novo Céu e uma nova Terra à luz de um subproduto. Mas, indubitavelmente, foi a essa quase assustadora inocência do intelecto que homens notáveis do grande período científico, que agora parece estar terminando, deveram seu enorme poder e glória. Caso tivessem feito cair o Céu como um castelo de cartas, a alegação não seria nem mesmo que o fizeram por princípio; a irrespondível alegação seria de que o fizeram por acidente. Sempre que havia um ínfimo toque de orgulho a respeito dos respectivos feitos, tínhamos um bom pretexto para atacá-los; mas, ao se tornarem completamente humildes, foram totalmente vitoriosos. Havia possíveis respostas para Huxley; não havia resposta possível para Darwin. Este foi convincente pela falta de consciência; quase poderíamos dizer, por estupidez. Tal mentalidade infantil e banal está começando a desaparecer do mundo da ciência. Os homens de ciência estão começando, como diz a expressão, “a assumir seu papel”. Estão começando a ficar orgulhosos de sua humildade. Estão começando a ser estetas, como o resto do mundo, começando a soletrar verdade com “V” maiúsculo, começando a falar de credos que imaginam ter destruído, das descobertas que seus antepassados fizeram. Assim como o moderno homem inglês, estão começando a ser flexíveis com a própria inflexibilidade. Estão se tornando conscientes da própria força – isto é, estão ficando mais fracos.

Atualmente, temos a impressão de que o cientificismo arrefeceu; talvez por não termos mais um Orson Welles entre nós, a botar pânico na população americana com sua dramatização de Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, no rádio. Ou porque, após a chegada do homem na Lua, o espaço se mostrou menos sedutor do que era para os antigos. Ou, ainda, porque os problemas na Terra se avolumam de tal maneira que não há tempo, pelo menos para o homem comum, de se preocupar com o espaço. O fato é que descobertas ligadas, por exemplo, à física quântica, aqui mesmo, em nosso mundo, me parecem muito mais em evidência do que a procura e a exploração de paragens extraterrestres. No entanto, tal curiosidade não morreu. Muito pelo contrário: o interesse de empresas privadas bilionárias, cujo objetivo é o turismo espacial, cresce a cada dia. Elon Musk, por exemplo, da Tesla Motors, criou a SpaceX com esse intuito. Atualmente, há dezenas de empresas concorrendo nesse caríssimo mercado.

É por reconhecer nossa condição de imperfeição que Lewis sabia dos riscos que essas tentativas de domínio desenfreadas nos trazem

Semana passada fui assistir ao estupendo Ad Astra, novo filme de James Gray, e todas essas reflexões me vieram à mente; mais do que isso: lembrei-me, imediatamente, do tema de meu mestrado, no qual analisei os aspectos teológicos e de imaginação moral na Trilogia Cósmica de C. S. Lewis, obra que trata, dentre outras coisas, dessa sedução cientificista provocada pela literatura de ficção científica. Mas, antes de falar das relações que vi entre o filme e a trilogia de Lewis – mais especificamente, de Além do Planeta Silencioso –, falarei um pouco do filme – sem spoilers, ou, pelo menos, com o mínimo possível.

Major Roy McBride, personagem vivido por Brad Pitt – cujo Oscar de melhor ator já demora para vir –, um astronauta experiente e reconhecido por sua impassividade diante de situações adversas, é designado para uma missão perigosa e ultrassecreta a fim de resgatar (ou eliminar) os possíveis sobreviventes de uma missão malsucedida em direção aos limites do sistema solar em busca de vida inteligente. Ao que tudo indica, a nave do Projeto Lima está em Netuno, pois de lá, há bilhões de quilômetros de distância, por um possível erro de processo – ou sabotagem –, estão chegando ondas de energia poderosíssimas e destruidoras, que estão causando pânico e mortes na Terra. Mas há um detalhe: o comandante do Projeto Lima é ninguém menos que H. Clifford McBride, seu pai, conhecido como o maior astronauta de todos os tempos, um herói cujas façanhas espaciais são um orgulho para todos. Há dezesseis anos que a comunicação com o Projeto Lima foi perdida, e, desde então, Clifford McBride e sua tripulação são dados como mortos. No entanto, uma mensagem inesperada chega e eles desconfiam que ele esteja vivo – e que, infelizmente, seja ele o problema.

A missão de Roy consiste em seguir, secretamente, através de um voo comercial, até a Lua e, depois, até Marte, onde há, na superfície do planeta vermelho, uma estação avançada de pesquisa. De lá ele tentará se comunicar com o Projeto Lima – mais especificamente com seu pai, apelando para sua condição de filho. A escolha profissional de Roy não é fortuita, ele e o pai tem uma profunda ligação – que colocaria a missão em risco não fosse sua notória impassibilidade, que impressiona seus superiores. O fato é que as coisas não saem como o esperado e Roy decide seguir adiante, contra tudo e todos, em direção ao Projeto Lima, em Netuno. A ideia de que seu pai, o seu herói, conhecido como o mais competente astronauta de todos os tempos, tenha enlouquecido e sabotado a missão a fim de seguir autonomamente em busca de vida nos confins do sistema solar, perturba Roy, que vive melancolicamente e cheio de questionamentos existenciais desde seu desaparecimento. Seu desafio, portanto, não é só encontrar o pai, mas confrontá-lo – e, consequentemente, a si mesmo.

A melancolia de Roy McBride dá o tom do filme, e logo percebemos que sua viagem é também interior. As falas em off – que lembram A árvore da vida, obra-prima de Terrence Malick também com Brad Pitt – são um processo de anamnese pelo qual o personagem passa enquanto despista, por sua capacidade de manter seu batimento cardíaco abaixo de 80 bpm, a avaliação psicológica automática que tem de fazer regularmente. Sua vida pessoal também vacila em desencontros, sua esposa reclama sua ausência – mesmo quando está em casa. A possibilidade de rever o pai o deixa vulnerável, ainda mais sob a desconfiança de que ele tenha sequestrado a espaçonave do Projeto Lima; Roy passa a questionar a sanidade de seu ídolo e de todo propósito de sua própria vida – que não foi nada além de buscar seguir os passos do pai. No entanto, em meio à solidão e ao silêncio que dominam tanto o espaço quanto a sua vida, há um fato curioso que, em determinados momentos, contrasta a enorme aridez da trama: a fé dos astronautas, que, por várias vezes, oram e agradecem a Deus pela oportunidade de conhecer mais da Criação. Roy, ao fim, se encontra: “espero ansioso pelo dia em que minha solidão vai acabar e eu estarei em casa”.

Mas, como eu disse, ao assistir Ad Astra – na verdade, logo na epígrafe do filme – fui remetido, quase que imediatamente à lembrança da Trilogia Cósmica de C. S. Lewis – mais especificamente a Além do Planeta Silencioso, primeiro livro da série, pois a ideia central é praticamente a mesma: os descaminhos do cientificismo e da sanha do homem por dominar outros planetas. Eis a epígrafe assaz reveladora:

Um futuro próximo...Um tempo de esperança e conflito... A humanidade olha para as estrelas em busca de vida inteligente e promessa de progresso. Para as estrelas – Ad Astra.

A propósito: é curiosíssimo saber que, ainda na juventude (1919), Lewis publicou sua primeira obra, um livro de poesias chamado Spirits in Bondage. Nele há um poema chamado Victory, que, nos manuscritos tinha outro nome: Ad Astra (que podes ler aqui).

No entanto, à época em que escreveu sua Trilogia, a preocupação de Lewis era absolutamente justificável e compartilhada por seu amigo Tolkien, pois, naqueles tempos, que antecederam a Segunda Guerra Mundial, eles perceberam (como Chesterton anteriormente) que a influência muito sutil de certo evolucionismo e darwinismo social começavam a povoar a imaginação das pessoas comuns através da obra de materialistas e grandes homens da literatura e da divulgação científica – como Wells e Bernard Shaw –, cujos livros Lewis havia devorado na adolescência.

Das suas intenções para escrever Além do Planeta Silencioso, somos informados, através de uma carta ao seu amigo e biógrafo Roger Lancelyn Green, que, para além da influência de Wells, o estopim foi a leitura de Last and First Men, romance de ficção científica de Olaf Stapledon, e uma coletânea de ensaios de J. B. S. Haldane chamada Possible Worlds. O livro de Stapledon é sobre a evolução da raça humana, do presente a dois bilhões de anos, formando dezoito espécies humanas diferentes. Na história, cientistas evolucionistas criam um super cérebro, sem corpo, controlado por indivíduos interligados telepaticamente. O livro contém ainda viagens estelares, e os “últimos homens” de Stapledon dizimam os habitantes de Marte e Vênus para garantir a sua própria sobrevivência. Possibly Worlds, de Haldane – “um bem-conhecido bioquímico, biólogo e marxista”, segundo Walter Hooper, que odiava o Cristianismo – intrigou muito C. S. Lewis. Em um dos ensaios, intitulado Last Judgement, Haldane imagina um futuro onde, após a Terra ter sido destruída, um pequeno grupo de terráqueos viajaria para Vênus e passaria a viver lá. Para Haldane, o ser humano deveria viver para sempre.

VEJA TAMBÉM:

Outra influência marcante para a criação da Trilogia é a obra Voyage to Arcturus, de Sir David Lindsay, publicado em 1920, e que Lewis lera em 1935. Foi na leitura da obra de Lindsay que Lewis teve a ideia de que a ficção científica era um excelente veículo para experiências espirituais, e também de um método para escrita de ficção que ele chamou de “ficção científica teologizada”. Não foi o conteúdo da história de Lindsay que atraiu Lewis, pois ele o considerava demoníaco, mas a habilidade com que fez da ficção científica um meio para transmissão de ideias filosóficas.

Ou seja, as histórias eram povoadas desse delírio por domínio de outros planetas e isso incomodava profundamente Lewis, pois certamente uma influência dessas na imaginação moral das pessoas não seria nada proveitosa. Isso seria como esquecer os princípios de ordem e de moralidade que nos formaram; seria tentar, num impulso luciferino, assumir o controle sobre a criação e, consequentemente, sobre o homem. E, como diz Lewis em A abolição do homem:

A conquista da Natureza pelo Homem, caso se realizem os sonhos de alguns cientistas planejadores, significaria que algumas centenas de homens estariam governando os destinos de bilhões e bilhões. Não há nem pode haver nenhum acréscimo ao poder do Homem. Cada novo poder conquistado pelo homem é da mesma forma um poder sobre o homem. Cada avanço o deixa mais fraco, ao mesmo tempo que mais forte. Em toda vitória, o homem é ao mesmo tempo o general que triunfa e o escravo que segue o carro dos vencedores.

É por reconhecer nossa condição de imperfeição que Lewis sabia dos riscos que essas tentativas de domínio desenfreadas nos trazem. Edward Weston, de Além do Planeta Silencioso, é um personagem possuído pelo desejo de controlar a natureza; sua missão, segundo ele, é em prol da humanidade – nem que, para isso, alguns indivíduos tenham de perecer. Ele diz que “os fins justificam os meios”, afinal: “ao que nos seja dado saber, estamos fazendo o que nunca foi feito na história do homem, talvez na história do universo. Aprendemos a saltar do cisco de matéria no qual nossa espécie surgiu. O infinito e, portanto, talvez a eternidade, está sendo posto nas mãos da espécie humana”. E completa, dizendo a Ransom, o tranquilo filólogo que sequestrou na Terra a fim de sacrificá-lo para alcançar os seus objetivos: “você não pode ser tão mesquinho a ponto de pensar que os direitos ou a vida de um indivíduo ou de um milhão de indivíduos tenham a menor importância em comparação com isso”.

Portanto, quando assistir Ad Astra, caríssimo leitor, se leu Além do Planeta Silencioso se lembrará das palavras de Weston e da trama malacandrina. Se já viu e não leu, corra para ler a sensacional obra de C. S. Lewis .

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