“Ontem – vocês acreditarão? – ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet. Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Esse triunfo sobre a minha paciência me espanta. Como uma obra assim me aperfeiçoa! Tornamo-nos, nós mesmos, uma obra-prima. Realmente, cada vez que ouvi Carmen, eu parecia mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário...” (Friedrich Nietzsche, O Caso Wagner)
A ópera é um espetáculo teatral cantado que se iniciou no século 16, de modo bastante modesto, tendo como a mais famosa companhia teatral desse gênero, em seus primórdios, a Camerata Fiorentina – ou Camerata deʼBardi, em homenagem a seu mecenas, Giovanni deʼBardi, o Conde de Vernio, militar, intelectual, crítico literário e grande entusiasta das artes. A Camerata não se restringia à música; era um grupo de intelectuais e artistas que se reunia na casa de Bardi para discutir a arte de sua época, com predileção pela música, a fim de recuperar as influências da arte da Grécia Antiga.
Não à toa Nietzsche, o impertinente e iracundo ex-wagneriano – “Wagner foi uma de minhas doenças”, disse ele –, que também sonhava com uma recuperação do espírito ático, exaltou a obra-prima de Georges Bizet como perfeita. Como ele afirma, na obra citada em epígrafe: “É [uma música] amável, não transpira [...]. Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: no entanto permanece popular – ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo. É rica. É precisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é o contrário do pólipo na música, a ʻmelodia infinitaʼ”.
Carmen é uma obra-prima, apesar de sua estreia, no Opéra-Comique de Paris, em 3 de março de 1875, não ter causado grande impressão; pelo contrário, foi duramente criticada pelo caráter, digamos, serelepe da cigana que dá nome à obra
Mas não se trata de nenhum exagero. Para além da provocativa exaltação nietzschiana por sua birra para com o imenso Richard Wagner – cuja admiração, de tão arrebatadora, tornou-se ódio diante da decepção –, Carmen é, de fato, uma obra-prima. Apesar de sua estreia, no Opéra-Comique, de Paris, em 03 de março de 1875, não ter causado grande impressão, foi duramente criticada pela imprensa, por conta do caráter, digamos, serelepe da cigana que dá nome à obra e sua morte em cena, nunca antes representada no Opéra-Comique. Imaginem uma mulher livre, leve e solta, em pleno século 19, desconcertando os homens com sua sensualidade irresistível, seduzindo-os e os trocando, uns pelos outros, e os levando ao conflito até ser assassinada por um deles. Não que essa mulher empoderada não habitasse a imaginação cultural dos franceses; a impetuosa Manon Lescaut, por exemplo, protagonista do romance homônimo publicado pelo abade Antoine François Prévost em 1731, é um exemplo. Mas sempre há espaço para o moralismo e o escândalo.
Meses depois de sua estreia em Paris, Carmen foi encenada em Viena, arrancando aplausos efusivos de Brahms, Wagner, Tchaikovski e do próprio Nietzsche. Uma pena que Bizet não tenha assistido à aclamação de sua principal ópera, uma vez que morreu três meses após a estreia. A história se passa em Sevilha, na atmosfera proletária de uma fábrica de cigarros. Carmen é uma cigana que trabalha nessa fábrica, juntamente com Mercedes e Frasquita, suas amigas, e outras mulheres (que formarão o coro). Don José é um militar um tanto ingênuo, que é seduzido por Carmen em meio a seu envolvimento com a jovem camponesa Micaëla, a quem ama e prometeu casamento. Quando as cigarreiras surgem, no belíssimo coro ainda no início do primeiro ato, Carmen arrebata a todos com a famosíssima “Habanera” (L’amour est un oiseau rebelle), uma das muitas árias que todo mundo conhece nessa obra – se não, deveria conhecer.
Don José até que tenta resistir aos encantos de Carmen, mas acaba de tal modo envolvido por ela que não só a liberta da prisão, após uma briga em que ela se envolve e fere uma das mulheres da fábrica, mas, após passar ele mesmo pela prisão por ter facilitado a fuga da cigana, deserta e envolve-se com um grupo de contrabandistas amigos da mulher fatal. O surgimento do toureiro Escamillo, outro seduzido por Carmen, torna a vida apaixonada de José um inferno, e uma disputa mimética entre os dois por pouco não acaba em morte. Quer dizer, acaba, pois, após ser recusado por Carmen, que se envolve com Escamillo, José acaba por matá-la com uma facada no coração.
A ópera, em quatro atos, teve seu libreto composto por Henri Meilhac e Ludovic Halévy, a partir de uma novela de Prosper Mérimée. Foi classificada como uma Opéra-Comique, gênero que, apesar do nome, não se trata necessariamente de uma obra cômica, mas que alterna o canto com passagens faladas, e trata de coisas cotidianas. Mesmo o gênero de Carmen vai se alterando, iniciando como uma obra mais divertida, com cenas um tanto cômicas, até ficar mais sombria e terminar numa tragédia ao fim do quarto ato. Como nos explica Jorge Takla, diretor cênico da montagem do Municipal que assisti no último final de semana, em texto introdutório para o libreto:
“Carmen, na novela original de Prosper Mérimée, é uma mulher violenta, prostituta e até assassina. Quando o Théâtre national de lʼÓpera Comique encomenda a Georges Bizet e seus libretistas, Henri Meilhac e Ludovic Halévy uma ópera, é levado em consideração o público daquela sala, acostumado a obras menos trágicas, operetas e óperas-comiques. Na Carmen de Bizet, a heroína continua sendo uma mulher livre, desejada e invejada, dona de seu destino. Os libretistas atenuam, porém, o lado violento e trágico da novela, acrescentando-lhe cenas de comédia e até, às vezes, um clima de opereta de Offenbach.”
É recheada de canções famosas e é uma das óperas mais famosas e encenadas do mundo. Dentre tantas passagens conhecidas do grande público, destacamos, para além da já mencionada “Habanera”, o Prelúdio e o Entreato, a “Canção do Toreador” e a “Seguidilla”.
A montagem do Municipal pode ser resumida numa palavra: suntuosa. Os diretores cênicos Jorge Takla e Ronaldo Zero deslocaram a trama da fábrica de cigarros para um ateliê de moda, ambiente majoritariamente feminino e, diga-se, dado a intrigas, mas também à curiosidade e ao desejo masculinos. Os cenários, físicos e grandiosos, bem como os figurinos de Pablo Ramírez, estavam de encher os olhos. Como disse Takla numa entrevista: “nós temos aqui quatrocentos figurinos, nós temos quatro cenários monumentais; cenários de verdade, não projeções, transparência, pirotecnia, fumacê; cenários, construídos”. Houve variação de alguns cantores e cantoras para os dias das apresentações. No dia em que fui, a mezzo-soprano italiana Annalisa Stroppa incorporou a cigana sedutora de modo impecável; o Don José vivido pelo tenor pernambucano Max Jota me surpreendeu muitíssimo, bem como a Micaëlla da soprano ítalo-brasileira Camila Provenzale; e o barítono argentino Fabián Veloz nos brindou com um Escamillo bastante consistente. E fiquei especialmente feliz por ver o tenor brasileiro Jean William, com quem tive uma conversa muito agradável em meu antigo podcast, interpretando – com grande destaque – um dos contrabandistas, o Remendado.
A montagem uniu, de maneira excepcional, o clássico e o moderno. Guardou a grandiosidade das montagens clássicas e incluiu a modernidade de forma bastante competente
Como sempre, a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo deu um show sob o comando do magistral Roberto Minczuk. Mas quero aqui destacar a performance absolutamente espetacular do Coro Lírico Municipal de São Paulo. Carmen é uma ópera que dá muito destaque aos coros – como o inicial, Sur la place chacun passe e o Coro das Cigarreiras (Au secours! Au secours!), bem como o Coro das Crianças (Avec la garde montante) – muito bem executado pelo Coro Infanto-Juvenil da Escola Municipal de Música. Já assisti a algumas apresentações do Coro Lírico, mas, dessa vez, fiquei verdadeiramente arrepiado em alguns momentos. Antes dos prelúdios foram incluídas poderosas canções e danças espanholas, que casaram muito bem com a trama; e o deslocamento do local principal da obra não prejudicou em nada a consistência e a compreensão da história. Em suma: a montagem uniu, de maneira excepcional, o clássico e o moderno, inclusive simulando, no último movimento, o da tourada, um desfile de moda com personagens andróginos enfeitados, coloridos e muito interessantes (apesar de, para mim, terem bagunçado um pouco a estética alvíssima do cenário e dos figurinos principais). Guardou a grandiosidade das montagens clássicas e incluiu a modernidade de forma bastante competente. Em suma: excelente!
Bem nos resumiu Nietzsche – e com ele encerro, grato:
“Mais ainda: eu me torno um homem melhor, quando esse Bizet me persuade. E também um músico melhor, um ouvinte melhor. É possível se escutar ainda melhor? – Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço a sua causa. Parece-me presenciar a sua gênese – estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatam-me os acasos felizes de que Bizet é inocente. E, coisa estranha, no fundo não penso nisso, ou não sei o quanto penso nisso. Pois nesse ínterim me passam bem outros pensamentos pela cabeça. Já se percebeu que a música faz livre o espírito? que dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico? O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz, forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como de um monte. Acabo de definir o pathos filosófico. E de súbito caem-me respostas no colo, uma pequena chuva de gelo sapiência, de problemas resolvidos... Onde estou? Bizet me faz fecundo. Tudo o que é bom me faz fecundo. Não tenho outra gratidão, nem tenho outra prova para aquilo que é bom.”
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