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“Como defensor de escravos, perante o júri, foi mais de uma vez chamado à ordem pelo presidente do tribunal, por pregar francamente o direito de insurreição: – Todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstâncias for, mata em legítima defesa!” (Luiz Gama)
Dias atrás, numa discussão sobre liberdade de expressão e o cancelamento de palavras, meu interlocutor me surpreendeu com a seguinte pergunta: “mas ‘criado-mudo’ é ou não é um termo racista?” Custei a crer que alguém ainda acredite nessa bobagem, por isso fui à internet verificar o quanto essa mentira ainda segue sendo divulgada. E levei um susto.
Já começa com a resposta da inteligência artificial do Google, que afirmou, categoricamente: “Sim, o termo ʻcriado-mudoʼ é racista e deve ser evitado: O nome do móvel remete ao período da escravidão, quando os escravos eram obrigados a ficar imóveis ao lado da cama dos senhores para segurar objetos. A expressão se associa ao imaginário da mulher negra sensualizada, o que pode abrir caminho para a violência sexual e outras formas de discriminação. A palavra ʻcriado-mudoʼ está muito enraizada na cultura, mas é importante tomar consciência da sua origem”. E o site O Tempo, em novembro desse ano, publicou uma matéria com o título: “Criado-Mudo: expressões e heranças do racismo”, e o subtítulo: “A origem e o impacto da expressão ʻcriado-mudoʼ na nossa sociedade”. E há dezenas de páginas repetindo a mesma ladainha.
Até uma fábrica de móveis aderiu a uma narrativa absurda, inventada, que relaciona o nome do simpático móvel a um escravo
A fim de demonstrar o quão absurda é essa narrativa, decidi fazer um exercício de imaginação através de uma esquete do Monty Python – a lendária trupe de comediantes ingleses: John Cleese entra numa sala quase vazia, com apenas um homem (Eric Idle), em pé, ao lado de uma cama, segurando um pequeno prato com um copo com água e uma toalha de rosto apoiada em seu antebraço. Cleese se aproxima da cama, aponta para o homem – que está imóvel, com a fisionomia ligeiramente atônita – e diz: “esse é o Joe, um criado mudo. Joe passa dia e noite imóvel ao lado da cama, segurando essa bandeja com um copo d’água e uma toalha. Ele é mudo porque o senhor lhe cortou a língua, afinal de contas, um criado não pode falar – sabe-se lá com quem – enquanto o senhor dorme. Essas marcas em seu corpo são por castigos que sofreu para ‘aprender’ a nunca se mexer enquanto seu dono está dormindo”. Cleese pega o copo da bandeja, o criado mudo lança um ligeiro olhar de soslaio a ele que, abruptamente, lhe joga a água na cara. Joe dá um gritinho, e o homem deitado, que é Terry Gilliam, acorda e sai correndo atrás dele com um chicote vociferando palavrões. Todos riem.
Tal esquete, bem ao gosto nonsense e sarcástico da trupe britânica, poderia ter sido protagonizada (e foi, imaginativamente, pelo menos) por uma fábrica de móveis numa campanha que teve a coragem de cometer com a intenção de parecer antirracista. Isso mesmo: uma fábrica de móveis aderiu a uma narrativa absurda, inventada, que relaciona o nome do simpático móvel – que há tanto ampara nossos despertadores e abajures – a um escravo que, supostamente, ficaria ao lado da cama o tempo todo, a noite toda, satisfazendo o sadismo de seu senhor, e resolveu protestar através de uma campanha de marketing que propõe a mudança de nome do inocente utensílio. Para quê? Não sei, uma vez que, provavelmente, ninguém até então fazia tal associação quando depositava em tal móvel o seu relógio de pulso antes de dormir; e, mesmo que fosse verdade, mais de 200 anos foram suficientes para que essa curiosidade semântica não nos causasse qualquer espanto.
Mesa de cabeceira é o nome proposto. Ou seja, numa patética corrupção da linguagem, pois não se trata de uma mesa e nem fica à cabeceira da cama, um nome de riquíssimo apelo simbólico foi substituído, sem qualquer razão objetiva, por uma loja de móveis – que, diga-se de passagem, faliu três anos após essa patacoada – em solidariedade aos pobres-diabos negros que, supostamente, se horrorizariam com o termo herdado do nefasto período escravista.
Mas tudo isso não passaria de uma piada de mau gosto não fosse a enorme repercussão que gerou, com direito à adesão de outros fabricantes, lojas e de toda a mídia, numa submissão bovina aos ditames do politicamente correto e de gente que deseja moldar o mundo, de forma tacanha e autoritária, à sua própria imagem e semelhança.
E a coisa não parou por aí. Diante do absurdo e da falta de evidências que garantissem a veracidade dessa espúria narrativa, quem surgiu? Óbvio: um acadêmico. Gabriel Nascimento, doutor em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (isso mesmo, inglês) pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese “Do limão faço uma limonada: estratégias de resistência professores negros de língua inglesa”, e autor da obra Racismo Linguístico (!!!), produziu, numa entrevista para o site Casa Vogue, uma, no mínimo, curiosa ginástica argumentativa para defender a tese divulgada pela loja. Diz ele:
“ʻCriado-mudoʼ não surge especificamente dentro do contexto escravocrata, mas ganha historicidade nesse período, é a coisificação daquele que serve na residência, que, no século 19, era o escravizado. A expressão é racista pois naturaliza a estrutura de comodificação interna da casa, de que o escravizado compõe esse lugar e é visto no mesmo nível que os móveis, um ser sem animação que compunha um dado lugar na sociedade brasileira de onde não poderia sair jamais.”
Num país com enormes problemas estruturais, é uma vergonha que alguns se deem o trabalho de incomodar a sociedade com picuinhas sem qualquer relevância, somente para parecerem bons e conscientes
Seria cômico se não fosse trágico. Entretanto, a explicação mais aceita por quem ainda não deixou seu neurônios derreterem pelas doutrinas do ressentimento é a de que o termo é uma tradução de dumbwaiter, aqueles pequenos elevadores que transportam alimentos entre os andares de um imóvel, inventado no século 19. O site Superinteressante acrescenta: “Na Alemanha, que não usou mão de obra escravizada em seu território nos tempos coloniais, também há a expressão ʻcriado-mudoʼ (stummer diener) – é a palavra deles para ʻcabide de piso’”. Mas não adianta, a bobajada marqueteira continua ecoando, em sites, cartilhas de órgãos governamentais e na mídia de maneira geral. E uma mentira repetida mil vezes...
Num país com enormes problemas estruturais, é uma vergonha que alguns se deem o trabalho de incomodar a sociedade com picuinhas sem qualquer relevância, somente para parecerem bons e conscientes aos seus próprios olhos. Será que não passou pela cabeça dessa gente que esse modo paternalista de agir é tão ou mais ofensivo que um ato de racismo explícito, pois passa a impressão de que os negros não têm capacidade de reagir àquilo que verdadeiramente os ofende, e que uma intervenção de pessoas superiores, de alma nobre, se faz necessária. Como se essa tutela ridícula não nos afrontasse mais do que o nome de um móvel que teria sido inventado para substituir um pobre-diabo que, plantado ao lado da cama a noite toda, curiosamente não causava qualquer desconforto psicológico ao senhor que ali dormia o sono dos justos – e, diga-se, nem pensava em se vingar pelo infortúnio, como nos mostra a epígrafe de Luiz Gama.
Essa “tutela das palavras”, como diz Sócrates no diálogo platônico Crátilo, é um risco, uma vez que a linguagem é dinâmica e polissêmica por natureza. No entanto, essa é uma marca registrada das ideologias e suas simplificações da realidade que visam inconsequentes transformações sociais. Tal manipulação da linguagem oferece uma vantagem ao ideólogo, que, construindo um falso fundamento para suas teorias, passa a ter autorização para aplicar suas transformações sociais sem que seja questionado, uma vez que qualquer pergunta é respondida com uma advertência do tipo: “você está sendo preconceituoso”.
Quem leu 1984, de George Orwell, sabe bem do que se trata essa tutela. A novafala (ou novilíngua) é o recurso mais poderoso do governo de Oceania. Como diz Syme, especialista em novafala, ao protagonista Winston Smith:
“Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? [...] Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos. [...] É pura e simplesmente uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas, no fim, nem isso será necessário. A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. A Novafala é o Socing, e o Socing é Novafala.”
Ou seja, a própria ideologia do Estado totalitário é fundamentada no controle da linguagem, que, para Syme, será o ápice, a ortodoxia do regime: “Ortodoxia significa não pensar – não ter necessidade de pensar. Ortodoxia é inconsciência”. O mundo dos ideólogos do politicamente correto é o mundo no qual a estupidez de todos – exceto deles próprios – é a regra máxima, pois suscita a obediência máxima. Desse modo, passaríamos a vigiar e a censurar uns aos outros, como já ocorre principalmente no ambiente das redes sociais, não porque somos convictos de que palavras há muito utilizadas, cuja origem ignoramos completamente, têm o poder de causar danos psicológicos na atualidade, mas porque não queremos ser advertidos – quiçá presos, num futuro não muito remoto. Urge resistir.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos