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Paulo Cruz

Paulo Cruz

A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Debates de internet

Você não é todo mundo!

debates de internet
Debates de internet hoje estão mais focados na performance do debatedor que na busca sincera pela verdade. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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“É melhor vivermos cada um em nossa medida, com lama, com casebres e com a planície – mas com sinceridade.” (Constantin Noica)

A nova moda agora são os debates de internet. Podcasts e canais no YouTube têm investido pesado nessa modalidade de esporte radical de redes sociais. Não que debates na internet não existissem antes, mas agora a coisa se espalhou de tal modo que quem ainda não aderiu está correndo para não ficar para trás; e, com isso, o YouTube foi infestado de tretas.

Sim, porque os debates de hoje não são como a dialética platônica, na qual Sócrates pacientemente vai fazendo seus opositores, um a um, caírem em contradição, enquanto vai desenrolando seus inescapáveis argumentos. Não que nos debates encenados por Platão não houvesse tretas; há diversas ocasiões nas quais os interlocutores de Sócrates se irritam com sua minuciosa argumentação. Mas nada disso é parecido com o que temos hoje; mesmo porque o que temos hoje na internet está longe de ser dialética.

Via de regra, o que as pessoas querem nas redes sociais, quando buscam por uma opinião ou análise, são os vieses de confirmação. Quase ninguém está disposto a aprender na internet quando o assunto é política ou temas sociais sensíveis. As pessoas já têm uma opinião e só desejam confirmá-la por meio de alguém influente no debate público. Quase ninguém muda de opinião na internet; as chamadas bolhas mantêm as pessoas num vértice seguro de opiniões concordantes, de modo que qualquer ideia conflitante que invada aquele espaço virtual é rechaçada imediatamente, sem reflexão, sem crítica. Assim, opiniões das mais, digamos, originais – ainda que originalmente estúpidas – pululam nas redes sociais e sempre encontram seus adeptos.

Quase ninguém está disposto a aprender na internet quando o assunto é política ou temas sociais sensíveis. As pessoas já têm uma opinião e só desejam confirmá-la por meio de alguém influente no debate público

Platão, no Górgias, adverte seu interlocutor sobre a necessidade da busca pela Verdade num debate, sendo infrutíferos aqueles em que as discussões se perdem ou em que a pessoa esteja fechada nas próprias opiniões. A passagem é longa, mas basilar:

“Presumo, Górgias, que tu também já assististe a bastantes discussões, e que deves ter observado não ser fácil para os interlocutores que discorrem sobre determinado assunto defini-lo com harmonia de vistas, nem terminar a reunião com proveito para ambas as partes. Pelo contrário, havendo desacordo e incriminando um deles o opositor de ser pouco veraz ou nada claro, mostram-se agastados e atribuem o reparo a sentimento de inveja, alegando todos que o antagonista se deixa arrastar pelo amor à discussão, sem procurar elucidar o problema em debate. Alguns até acabam separando-se por maneira indigna, com impropérios de parte a parte, dizendo e ouvindo, a um tempo, tão pesados doestes, que os próprios assistentes se sentem envergonhados de terem dado ouvidos a tipos de tal jaez. E por que me manifesto desse modo? Porque tenho a impressão de que o que afirmaste agora não está de acordo nem concerta com o que disseste a respeito da retórica. Receio contestar-te, para que não penses que falo menos pelo prazer de esclarecer o assunto em discussão do que por motivos pessoais. Se fores como eu, de muito bom grado te interrogarei; caso contrário, fiquemos aqui mesmo. E em que número me incluo? Entre as pessoas que têm prazer em ser refutadas, no caso de afirmarem alguma inverdade, e prazer também em refutar os outros, se não estiver certo, do mesmo modo, o que disserem, e que tanto se alegram com serem refutadas como em refutarem. Do meu lado, considero preferível ser refutado, por ser mais vantajoso ver-se alguém livre do maior dos males do que livrar dele outra pessoa. No meu modo de pensar, não há nada de tão nocivas consequências para o homem como admitir opinião errônea sobre o assunto com que nos ocupamos. Se me declarares que tu também és assim, poderemos conversar; mas se fores de parecer que convém ficarmos por aqui, demos por terminado o assunto e suspendamos o colóquio.”

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Por esse motivo não aceito ir aos debates que estão sendo produzidos atualmente na internet – e  para os quais já fui convidado mais de uma vez. Primeiro, porque sei que nada de produtivo sai deles a não ser entretenimento do pior tipo para a audiência, uma vez que, como disse, ninguém quer aprender. Ainda que o fundamento fosse meramente formal, retórico, do tipo saber quem defende melhor o seu ponto, as pessoas só estão interessadas no que diz o debatedor com o qual já concordam. Segundo, porque penso não ser um bom debatedor desse tipo; sou um tanto avesso a confrontos e prefiro desenvolver minhas ideias com cuidado, escrevendo ou em meus vídeos.

No meu antigo podcast, o Noir, tive muitos embates com pessoas que pensam o oposto de mim, mas isso nunca ocorria de forma programada. Eu sempre procurei ser um bom anfitrião, e as discussões ocorriam de forma tranquila, respeitosa e sem a pretensão de sair vencedor, mas de produzir argumentos de modo que a audiência tivesse condições de avaliar, por si própria, os pontos levantados.

Precisamos, sim, lutar por uma política melhor, por uma educação melhor, por um país melhor. Mas penso que, para isso, o melhor ingrediente continua sendo a prudência. Sei de nossas urgências e que há situações gravíssimas ocorrendo em nossa sociedade, mas cada um age como pensa ser melhor agir; outros talvez nem ajam. Quando tentam me pressionar para agir de tal ou qual modo que nem sequer faz parte de minha personalidade, me advertindo de que “todo mundo” está fazendo desse modo, lembro-me sempre da advertência de minha querida e sábia mãe: “você não é todo mundo!”

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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