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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Arte

“Canta, ó musa!” Ou: em defesa da poesia

Detalhe da "Apoteose de Homero", de Jean Auguste Dominique Ingres. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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“No princípio já existia a Palavra / e a Palavra se dirigia a Deus / e a Palavra era Deus. / Esta, no princípio, se dirigia a Deus. / Tudo existiu por meio dela, / e sem ela nada existiu de tudo o que existe. / Nela havia vida, / e a vida era a luz dos homens.” (João 1, 1-4, Bíblia do Peregrino)

“A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro.” (Octávio Paz, O arco e a lira)

Lembro-me vivamente de quando, num livro de teologia – se não me falha a memória, o clássico Orar com Deus, do teólogo canadense James Houston –, ao ver citados tantos poetas, intriguei-me. Em minha ingenuidade, pensei: “o que uma coisa tem a ver com a outra?” Ou melhor: “por que tantos poetas parecem ter compreendido verdades teológicas?” Até aquele momento, no início dos anos 2000, meu contato com a poesia era nulo. Não li quando adolescente, não consumi quando apaixonado, não me interessei quando, na escola, me foi apresentada. Erro meu, obviamente.

À época, por volta do início dos anos 2000, o poeta que mais me chamou a atenção – muito citado por Houston – foi T.S. Eliot. Impressionou-me a profundidade de seus versos e a capacidade que ele tinha de falar sobre coisas que, até aquele momento, para mim, não eram assunto de poetas. Não havia me ocorrido ainda que a Bíblia está eivada de poesia; que os salmos são poesia, que as profecias, muitas vezes, eram proferidas em versos; que a poesia é o veículo de criação por excelência. Que o poeta, parafraseando Andrei Tarkovski, não descreve o mundo, mas participa de sua criação. Corri para comprar um livro de Eliot, e qual não foi minha surpresa ao encontrar, de sua lavra, coisas como:

Se está perdido o verbo perdido, se está gasto o verbo gasto
Se, inaudito, se não dito
O verbo é não dito, é inaudito;
Ainda é o verbo não dito, é o Verbo inaudito,
O Verbo sem verbo, Verbo interno
Ao mundo e para o mundo;
E a luz resplandeceu nas trevas
Contra o Verbo a Terra revolve-se em vórtice
Em torno ao centro do silente Verbo.

Ó povo meu; que te tenho feito?
(Trecho de Os Quatro Quartetos, tradução de Caetano Galindo)

Até o início dos anos 2000, meu contato com a poesia era nulo. Não li quando adolescente, não consumi quando apaixonado, não me interessei quando, na escola, me foi apresentada. Erro meu

Ou seja, meu tardio contato intencional com a poesia foi, digamos, instrumental, baseado no desejo de encontrar nela um discurso teológico, confirmações sobre os meus interesses naquele momento. Por outro lado, uma janela de compreensão havia se aberto a mim, sobre um tipo de poesia que ultrapassava a mera expressão do sentimento amoroso, a chamada poesia romântica (pois é, eu não sabia absolutamente nada de poesia!). Em seguida, lembro-me de ter perguntado ao culto pastor da igreja em que congregava à época por onde deveria começar a ler poesia. Ele me disse, sem pestanejar: “leia o Poema em linha reta, de Fernando Pessoa”. Outra pancada: “Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo? / Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Hoje não sei se essa seria minha primeira opção caso alguém me perguntasse por onde começar a ler poesia, mas, naquele momento, fez muito sentido para mim encontrar na poesia um discurso diretamente crítico. Destacar em Fernando Pessoa, cuja produção é vasta e variadíssima, e cujos heterônimos têm vozes distintas, um poema prosaico como esse, creio que também denotasse os interesses imediatos (e secularizados) do pastor. Mas foi bom, pois colocou-me em contato com o bardo português e fez-me chegar, por exemplo, em obras-primas como Autopsicografia, Aniversário e Vem Sentar-te Comigo, Lídia.

Quando dei por mim, a poesia havia se tornado minha obsessão. Comprei tudo o que encontrei pela frente, comecei a escrever e, na busca por descobrir seus fundamentos e me aprimorar tecnicamente, fiz vários cursos na lendária Casa das Rosas, em São Paulo. Descobri poemas e poetas dos mais variados, estudei a Poesia Concreta, o poema como um “ser de linguagem” – na formulação de Décio Pignatari em seu célebre O que é comunicação poética; estudei a linguística de Peirce, Jakobson e Saussure; e me aprofundei nas técnicas de tradução e no conceito de transcriação de Haroldo de Campos. Conheci Dora Ferreira da Silva, Gerard Manley Hopkins, Adélia Prado, Hilda Hilst, Bruno Tolentino, Camões, Alberto da Cunha Melo, John Milton, Rainer Maria Rilke, Hölderlin, W.B. Yeats, Antônio Cícero, Agostinho Neto, Aimé Césaire, Sylvia Plath, Marianne Moore, Solano Trindade, Ezra Pound, Dante, Olavo Bilac, Emily Dickinson... para falar de alguns dos que mais me impressionaram. Mas a questão fundamental para mim, em determinado momento, passou a ser: o que é poesia e por que devemos lê-la?

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De acordo com o poeta romântico Percy B. Shelley, em seu Uma defesa da poesia: “A poesia, em seu sentido comum, pode ser definida como ‘a expressão da imaginação’: e a poesia é inata à origem do homem. O homem é o instrumento sobre o qual uma série de impressões internas e externas é conduzida, como as alternações de um vento inconstante sobre uma lira Eólica, que a move com seu perambular a uma inconstante melodia”. Eis o ponto: a poesia é inata à origem do homem. Não é possível definir quando o ser humano começou a escrever poesia, mas é possível dizer, miticamente, que a poesia criou o ser humano. A poesia é a arte-fundamento da humanidade, é o Verbo.

Na tradição oral dos antigos, com os aedos, os griots e os profetas, a poesia era (também) um modo de transmissão de conhecimento, de preservação da cultura, da religião etc.. Não só pelo conteúdo que seus versos abarcavam, mas também pela forma peculiar, carregada de relações entre som e sentido – paralelismos, aliterações e paronomásias –, que facilitavam a memorização e, por sua vez, a transmissão das tradições. Ezra Pound, poeta e crítico literário contemporâneo, em seu ABC da Literatura afirma que os gregos foram mestres no que ele chama de melopeia, a técnica de “produzir correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala”. Nas profecias e nos poemas hebreus da Bíblia também encontramos essas características.

Na Ilíada, um termo recorrente nos fornece um exemplo disso: para falar do mar tempestuoso, Homero utiliza o termo polyphloísboio thalasses (Livro I, 33-36). Note, caro leitor: o próprio termo reproduz, sonoramente, a agitação das ondas. Na Bíblia, esse tipo de recurso fonético também acontece, e aqui peço que o leitor condescenda com a transliteração de um trecho do Salmo 122 – um dos chamados “Cânticos das Subidas”:

Shir Hamaalot Ledavid
Samahti Beomerim Li / Beit Adonai Neleh
Omedot Haiu Regelêinu / Bisharaih Yerushalaim
Yerushalaim Habenuiáh / Keír Shehuberah La Yahdav
Shesham Alu Shevatin Shivte Ya

Edut Le Israel / Lehodot Leshem Adonai
Ki Shama Iashvu Kiseot Lemishefat / Kiseot Le Beit David
Shaalu Shelom Yerushalaim / Yishelauh Orravaíh. (Salmo 122,1-6)

Não é possível definir quando o ser humano começou a escrever poesia, mas é possível dizer, miticamente, que a poesia criou o ser humano. A poesia é a arte-fundamento da humanidade, é o Verbo

A leitura em voz alta, pausada, ajudará o leitor a perceber a repetição da letra shin (שִׁ) – em todos os trechos que têm “sh” –, que causa uma sucessão curiosa de aliterações. O significado de “cântico de subida” é incerto. Os salmos 120 a 134 formam um pequeno conjunto dentro do saltério, e pode significar que eram cantados um em cada degrau do templo; ou da “subida” dos peregrinos a Jerusalém durante as festividades; ou, ainda, a subida do povo de Israel do cativeiro na Babilônia. Isso importa pouco para nós atualmente, mas a curiosidade fonética do original – que na tradução perdemos completamente – não deixa de impressionar.

Durante os séculos, mesmo com a secularização e popularização da poesia, os recursos utilizados pelos poetas continuam os mesmos. Pignatari, com ajuda de Ezra Pound, nos ajuda a entender, tecnicamente, como a coisa funciona: os poemas podem ser classificados em três tipos fundamentais: “1. aqueles em que predomina a fanopeia: imagens, comparações, metáforas; 2. aqueles em que predomina a melopeia: música, mesmo dissonante ou antimúsica; 3. aqueles em que predomina a logopeia: ʻdança das ideias entre as palavrasʼ. Você pode encontrar até as três características num mesmo poema”. Nos exemplos de Homero e da Bíblia, o que predomina é a melopeia, a musicalidade oriunda da relação entre som e sentido. No trecho do poema de Eliot citado acima, o que predomina é a logopeia; e no Poema em Linha Reta a predominância é a fanopeia.

Diante do exposto, talvez o leitor já tenha compreendido a minha intenção, que é chamar a atenção para o fato de que a poesia é muito mais que a expressão de um sentimento; trata-se da expressão máxima de um povo através de sua língua. T.S. Eliot defende que há uma função social na poesia, que é salvaguardar a cultura. Ele diz: “Uma coisa é absolutamente certa: se não dispusermos de uma literatura viva, nos tornaremos cada vez mais alienados da literatura do passado; a menos que mantenhamos a continuidade, nossa literatura do passado tornar-se-á mais e mais distante de nós até nos parecer tão estranha quanto a literatura de um povo estrangeiro. É que nossa língua está se transformando; nossa maneira de viver também muda, sob a pressão das transformações materiais de toda ordem em nosso meio; e a menos que disponhamos daqueles poucos homens que associam a uma excepcional sensibilidade um excepcional poder sobre as palavras [os poetas], nossa própria capacidade, não apenas de nos expressar, mas até mesmo de sentir qualquer emoção, exceto as mais grosseiras, se degenerará”. E complementa dizendo que isso ocorre, pois:

“[...] No decurso do tempo, ela [a poesia] produz uma diferença na fala, na sensibilidade, nas vidas de todos os integrantes de uma sociedade, de todos os membros de uma comunidade, de todo o povo, independentemente de que leiam e apreciem poesia ou não, ou até mesmo, na verdade, de que saibam ou não os nomes de seus maiores poetas. A influência da poesia, na mais distante periferia, é naturalmente muito difusa, muito indireta e muito difícil de ser comprovada. É como acompanhar o trajeto de um pássaro ou de um avião num céu luminoso: se alguém os percebeu quando estavam muito próximos, e os manteve sob a vista quando se afastavam cada vez mais, poderá vê-los a uma grande distância, a uma distância na qual o olho de outra pessoa, de quem se tenta chamar a atenção para o fato, será incapaz de percebê-los: Assim, se rastrearmos a influência da poesia através dos leitores mais afetados por ela às pessoas que jamais leram nada, a encontraremos presente em toda parte. Pelo menos a encontraremos se a cultura nacional estiver viva e sadia, pois numa sociedade saudável há uma influência recíproca e uma interação contínuas de uma parte sobre as outras. E isso é o que eu entendo como a função social da poesia em seu mais amplo sentido: é isso o que, proporcionalmente à sua existência e vigor, afeta a fala e a sensibilidade de toda a nação”.

Não devemos confundir letrista com poeta. Nem todo bom poeta é letrista, e nem todo bom letrista é poeta

Nesse sentido, há duas ou três observações a fazer antes de terminar esse artigo. Primeiro, que devemos separar a poesia da mera expressão dos sentimentos subjetivos em forma de verso. Um poema deve se justificar enquanto tal. Aquilo que é dito em versos não pode ser dito de outra maneira – pelo menos não com o mesmo efeito e alcance. Há a chamada prosa poética, mas esta, geralmente, se caracteriza pela melopeia ao longo do texto, pelas aliterações, rimas internas etc. Há muita gente sendo chamada de poeta quando está somente expressando seus sentimentos – algumas vezes de forma bela, outras nem isso – sem expressar o poético ou a função poética da linguagem. Octavio Paz nos ensina:

“Perguntando ao poema pelo ser da poesia, não confundimos arbitrariamente poesia e poema? Já Aristóteles dizia que ʻnada há de comum, exceto a métrica, entre Homero e Empédocles; e por isso com justiça se chama de poeta o primeiro e de filósofo o segundoʼ. E assim é: nem todo poema – ou, para sermos exatos, nem toda obra construída sob as leis da métrica – contém poesia [...] Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega e se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem. O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são a mesma coisa.”

Segundo, porque não devemos confundir letrista com poeta. Nem todo bom poeta é letrista, e nem todo bom letrista é poeta. Bruno Tolentino, no prefácio ao seu estupendo A balada do cárcere, disse: “[...] malgrado a grandiosidade dos negro spirituals, por exemplo, mantenho que só a poesia, a linguagem profunda de uma raça, tem a amplitude de meios capazes de dar à complexidade da condição humana aquela dimensão de verticalidade correspondente às grandes perplexidades da alma. [...] Hofmannsthal, o maior poeta austríaco do século, era também o autor dos libretti para as óperas de Strauss, mas não as reuniu em suas Poesias Completas, pela óbvia razão de que a autonomia do poema é de outra ordem”. E mesmo o gigante Manuel Bandeira, que escreveu letras para Villa-Lobos e outros, disse, em seu inescapável Itinerário de Pasárgada, que “nesse ofício costumo pôr a poesia de lado e a única coisa que procuro é achar as palavras que caiam bem no compasso e no sentimento da melodia. Palavras que, de certo modo, façam corpo com a melodia. Lidas independentemente da música, não valem nada, tanto que nunca pude aproveitar nenhuma delas”.

E um último ponto é que, a fim de ajudar o leitor a escapar da lenga-lenga dos poetastros, que sempre são muitos – e muitas vezes sufocam os bons pela superioridade numérica, como disse Nelson Rodrigues –, gostaria de indicar alguns excepcionais poetas e poetisas que conheço, de nossa geração, ainda vivos e produzindo (alguns são meus amigos, inclusive), que mergulharão o leitor no mais profundo fazer poético contemporâneo. Vários estilos, uns mais tradicionais, como o extraordinário e piedoso João Filho; outros absolutamente disruptivos, como o genial Érico Nogueira. Há o sempre preciso Silvério Duque; e uma das mais hábeis artífices do verso: Cláudia Roquette-Pinto. E Adélia Prado dispensa apresentações, é o sagrado em forma de verso. As pequenas editoras Patuá e Mondrongo têm publicado excelentes poetas contemporâneos através de cuidadosa curadoria.

Pois que esse pequeno texto, em homenagem às musas evocadas por Homero no título, possa fazer o nobre leitor sair ao encontro da Beleza e salvar a civilização.

Correção

O texto bíblico em epígrafe é do Evangelho de João, não do Gênesis.

Corrigido em 10/11/2023 às 18:06

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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