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“ʻMas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos!ʼ, esticando o braço para tocá-lo no ombro. O Desajustado deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e começou a limpá-los.” (Flannery OʼConnor, Um homem bom é difícil de encontrar)
A megaoperação ocorrida na semana passada nos morros do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, que matou 117 criminosos e prendeu 113, ainda repercute. Como cristão, é bom dizer desde já, não comemoro a morte de ninguém; um criminoso, seja ele quem for, seja qual crime tenha cometido, é um ser humano apto a aceitar a Cristo como o seu senhor e salvador e ser redimido de seus pecados. A morte de um ímpio sempre horroriza um cristão. Dito isso, sabendo que este mundo “jaz no maligno” (1 João 5,19), também sei que a lei humana é absolutamente indispensável para impor a ordem. Usando literalmente a metáfora utilizada por C.S. Lewis em O problema do sofrimento: “Não somos apenas criaturas imperfeitas que devem ser aperfeiçoadas: nós somos, como disse Newman, rebeldes que precisam depor as armas”. E como diz Lutero, ao falar da necessidade da autoridade secular:
“Se todas as pessoas fossem cristãos autênticos, isto é, verdadeiros crentes, não seriam necessários nem de proveito príncipe, rei ou senhor, nem espada nem lei. Pois para que lhes serviriam? Eles têm no coração o Espírito Santo que os ensina e efetua que não façam mal a ninguém, que amem a todos e que sofram, de bom grado e alegremente, injustiças, sim, inclusive a morte da parte de qualquer pessoa […]. Por isso é impossível que a espada e a lei temporal encontrem algo a fazer entre os cristãos; pois, por si mesmos, eles já fazem muito mais do que toda a lei e ensinamentos possam exigir, como diz Paulo em 1 Tm 1,9: ʻNão se deu nenhuma lei para os justos, mas, sim, para os injustosʼ […]. Porque o justo faz, por si mesmo, tudo e mais ainda do que o exigido por todas as leis. Os injustos em contraposição nada fazem que seja justo; por isso necessitam da lei que os ensina, obriga e pressiona para agirem bem.”
Existe uma parcela da sociedade que nega a realidade e prefere enxergar tudo de maneira abstrata, de modo que os culpados se tornem inocentes e a lei, opressão
Por isso, devo considerar a megaoperação, diante das circunstâncias, necessária – e, pelos números, um sucesso. Numa situação gravíssima como a da segurança pública no Brasil, um país que tem números de mortes por crimes violentos maiores que os de países em guerra, é imprescindível não tergiversarmos da realidade. Territórios inteiros do país são dominados por facções criminosas, e retomá-los exigirá não somente inteligência, como dizem os “especialistas”, mas confronto. Curiosamente, como disse Lula em 2007, “tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó de arroz. A gente tem de enfrentá-los sabendo que muitas vezes eles estão mais preparados do que a polícia, com armas mais sofisticadas”.
Mas o fato é que existe uma parcela da sociedade que nega a realidade e prefere enxergar tudo de maneira abstrata, de modo que os culpados se tornem inocentes e a lei, opressão. Essa parcela – ínfima, mas influente – é formada por intelectuais, jornalistas e formadores de opinião de esquerda. Para eles, a megaoperação foi uma chacina; os criminosos, armados de fuzis e trocando tiros com a polícia, são suspeitos ou meninos; o Estado, genocida; a população que, cansada e amedrontada, apoiou a operação é fascista. Mas por quê? Qual a justificativa encontrada por essas pessoas para não defenderem o enfrentamento ao crime – sobretudo ao crime organizado, que destrói o tecido social e é um claro atentado ao Estado Democrático de Direito?
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Isso parte, principalmente, de sua visão de mundo. A visão de mundo de um esquerdista é herdeira da imaginação idílica de Jean-Jacques Rousseau. Já tratei disso em outro artigo nesta Gazeta do Povo, de modo que não me estenderei. Mas vale dizer que a esquerda enxerga a violência como um problema social, não como um problema, digamos, humano. Rousseau dizia que a sociedade civil, e a desigualdade que dela advém, é culpada pela degeneração do ser humano. Como afirma, no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens: “o primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: ‘Isto é meu’, e encontrou pessoas bastante simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”.
Por isso, para a esquerda, a pobreza e a criminalidade não têm causas multifatoriais – que podem incluir, sim, o racismo e o descaso das elites econômicas, mas não só. São problemas sociais produzidos, como um projeto intencional, por quem tem poder. São um produto da desigualdade imposta pelo acúmulo de capital e pela exploração – a tal luta de classes. Nessa visão, um jovem negro que mora numa favela ou periferia é empurrado para a criminalidade porque não vê outra saída; sua capacidade de escolha, sua agência, é completamente suprimida.
Não importa que a realidade lhes mostre o contrário; não importa que seja uma quantidade mínima de pessoas pobres que escolham a criminalidade; não importa que, ao fim e ao cabo, a população das favelas alvo da megaoperação tenha apoiado maciçamente a ação da polícia; não importa que o país seja um dos países mais violentos do mundo; não importa que o Brasil lidere a lista de países com maior número de homicídios do mundo. Nada disso importa. Tratam como causalidade a correção entre pobreza e criminalidade. Como eu disse num outro artigo: “Se houvesse uma relação de causalidade entre pobreza e criminalidade, países mais pobres teriam índices de criminalidade maiores. Malaui e República Centro-Africana, por exemplo, estão entre os países mais pobres do mundo; no entanto, não estão nem entre os 30 mais violentos”.
Não comemoro a morte de ninguém e acho que foi uma grande tragédia o que ocorreu. Mas tragédia maior é viver sob o domínio do crime
Mas não importa. Sua visão não vai mudar, pois seria preciso renunciar a muitas coisas – inclusive ao dinheiro que advém desse que é um negócio das estatísticas apocalípticas. A sociedade pouco importa; a opinião real da população é menosprezada, pois não há “consciência de classe”. Por isso a mídia mainstream, os jornalistas e intelectuais de esquerda estão, desde a semana passada, tentando manipular e distorcer a opinião pública. Eles não admitem que a sociedade tenha a sua própria autointerpretação de seus problemas; são eles, os ungidos – como diz Thomas Sowell –, que têm capacidade de nos dizer como devemos pensar.
Repito: não comemoro a morte de ninguém e acho que foi uma grande tragédia o que ocorreu. No entanto, penso que maior tragédia é viver sob o domínio do crime. Que o Estado brasileiro se dê conta disso e faça o que precisa ser feito para libertar o país do terrorismo interno que nos assola. E que os defensores de criminosos chorem à vontade.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




