Ouça este conteúdo
Os céus e a terra tomo hoje por testemunhas contra vós, de que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe pois a vida, para que vivas, tu e a tua descendência. (Deuteronômio 30,19)
No último sábado (07/09), Dia da Independência, estive mais uma vez com os meus amigos do Brasil Paralelo, participando do Fórum Brasil – A Última Cruzada, encontro presencial para falarmos da série de enorme sucesso, que atingiu milhões de pessoas e cujo objetivo não é reescrever a história do Brasil, como dizem seus críticos, mas redescobri-la. O evento estava lotado e tivemos a oportunidades de ver o quanto as pessoas têm sede de saber a história de seu país, que, infelizmente, nos últimos 50 anos foi reduzida a seus aspectos meramente econômicos, sobretudo através das interpretações desenvolvimentistas/progressistas de Celso Furtado e comunistas de Caio Prado Jr..
Do ponto de vista econômico, historiadores da atualidade, como Jorge Caldeira, refutam a tese amplamente divulgada de que o Brasil teria sido uma mera colônia de exploração. Partindo da constatação de que, na virada do séc. 18 para o 19, a maioria da população era de homens livres – segundo dados oficiais de 1819, 74,8%, contando com os indígenas livres –, Caldeira, em sua pesquisa, explora a imensa pujança do mercado interno, e diz, em seu História do Brasil com empreendedores (Mameluco), que “uma grande parte dos estudiosos que empregam o modelo do latifúndio agrário-exportador entende que o sucesso desse modelo é resultado da aplicação do marxismo como metodologia. Trata-se de orgulho justificado pela própria força que o modelo adquiriu – e orgulho que certamente será afetado pela necessidade de sua revisão”. Um pouco adiante, ele afirma: “um novo entendimento do mercado interno, para além das aparências ideológicas, só é possível com a introdução de um novo ponto de vista de análise. Esse ponto de vista está sintetizado na figura do empreendedor”. Vale muito a pena visitar a obra recente de Caldeira.
Voltando ao Fórum, tive a imensa responsabilidade – e a imensa honra – de dividir o primeiro painel do evento, Descobrimento do Brasil, com meu grande amigo e historiador competentíssimo Thomas Giulliano, e com o notável jornalista Percival Puggina, uma fonte inesgotável de bondade e sabedoria. Mas, antes de nós, tivemos uma belíssima introdução apresentada pelo membro da família imperial brasileira, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, autor do livro Por que o Brasil é um país atrasado? (ed. Novo Conceito) e atualmente deputado federal pelo PSL. Luiz Philippe falou da importância de um mito fundador para a constituição de uma nação, e evocou, como mito fundador do Brasil, a lenda de São Brandão (484-577), que, no início da Alta Idade Média teria navegado pelo Atlântico em busca da Terra Prometida dos mapas cartográficos da época, uma ilha chamada Hy Brazil, (ilha afortunada) um objeto de desejo dos povos e cuja importância atravessou as eras e chegou até a esquadra portuguesa que aportou no Brasil. Também exaltou a origem templária dos Cavaleiros da Ordem do Cristo – da qual fazia parte Pedro Álvares Cabral –, de quem Portugal herdara os mapas cartográficos da Alta Idade Média, que fizeram de um pequeníssimo país, espremido entre o Oceano Atlântico e a Espanha, a nação heroica e aventureira descrita por Camões n'Os Lusíadas.
Percival Puggina também exaltou os aspectos heróicos da formação de nosso país – a via gloriosa, nas palavras de S. A. I. R. Dom Bertrand de Orléans e Bragança, bisneto da Princesa Isabel, que participou do painel seguinte – e criticou a historiografia militante, que há décadas faz com que os brasileiros tenham ódio do Brasil, como uma terra de oportunistas, bandidos desterrados e vilões exploradores de índios e negros.
Em minha intervenção, iniciei dizendo que minha parte na história brasileira não é a das glórias e dos heroísmos, pelo menos não no sentido empregado por meus antecessores. A participação negra na história de nossa pátria é, num primeiro momento, associada a uma tragédia, que caracteriza o Brasil como “o maior território escravista do hemisfério ocidental por quase três séculos e meio. Recebeu, sozinho, quase 5 milhões de africanos cativos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América. Como resultado, é atualmente o segundo país de maior população negra ou de origem africana do mundo”, de acordo com Laurentino Gomes em seu recentíssimo Escravidão (Globo Livros). Os números de mortos na travessia também são aterradores. Diz Laurentino:
Durante mais de três séculos e meio, o Atlântico foi um grande cemitério de escravos. Era no mar, durante a travessia, que as cifras de mortalidade ficavam mais evidentes: como escravos representavam um “investimento”, uma mercadoria valiosa do ponto de vista dos traficantes, cada óbito tinha de ser registrado nos chamados Livros dos mortos pelos capitães dos navios, ao lado de diversos outros itens que apareciam nas colunas de crédito e débito dos relatórios de contabilidade. Por isso, os números de mortos durante esse tipo de viagem são mais precisos do que os das demais travessias náuticas da época, geralmente baseados em estimativas. Isso permite fazer hoje um cálculo assustador. Se, entre o início e o final do tráfico negreiro, pelo menos 1,8 milhão de cativos morreram durante a travessia, isso significa que, sistematicamente, ao longo de 350 anos, em média, catorze cadáveres foram atirados ao mar todos os dias. Por essa razão, os navios que faziam a rota África-Brasil eram chamados de “tumbeiros”, ou seja, tumbas flutuantes.
“Solidariedade de raça” ou mesmo “consciência racial”, são valores contemporâneos, fomentados já pela militância organizada
Some-se a isso o fato de, após a abolição – pelos motivos que abordei em artigo, aqui nesta Gazeta do Povo – os negros terem sido profundamente marginalizados, figurando, ainda hoje, entre a população mais pobre do país, e temos o clima perfeito para o ressentimento que atualmente toma conta de grande parte dos jovens negros, fomentado por uma militância política que não pretende resolver o problema, mas usá-lo em função de seus próprios interesses ideológicos ou mesmo partidários. Também já tratei dessa submissão ideológica aqui, e de seus efeitos aqui. Ou seja, não é sem um esforço hercúleo que conseguimos inserir o negro como uma figura que tenha destaque positivo na formação da sociedade brasileira.
No entanto, 130 anos já se passaram desde a Lei Áurea, e julgo não ser mais adequado procurar culpados para tal situação; ou melhor, julgo que o único culpado seja o Estado brasileiro. Não por sua inação, mas justamente por suas iniciativas errôneas para a resolução de um problema que, atualmente, não atinge somente aos negros, mas praticamente todos aqueles que não foram premiados com a fortuna da ascendência nobre. Como tenho dito: o Brasil é um país muito bom para quem é rico, mas péssimo para quem é pobre; e como os negros são os mais pobres, é evidente que sofrem mais. Também tenho reforçado que minha proposta passa por uma desestatização da solução, pois o Estado, enquanto ente burocrático (e corrupto), é incapaz de prover adequadamente iniciativas que equacionem os problemas de ordem econômica – e menos ainda os problemas de ordem moral, como o racismo. A solução deve partir da própria sociedade, através daquilo que André Rebouças, o maior dos abolicionistas, chamava de “iniciativa individual e o espírito de associação”, pautados pelo liberalismo econômico – sistema que causa arrepios em militantes socialistas não por rejeição consciente, mas por pura ignorância, por desconhecimento.
Trato disso com certa profundidade e referências em meu curso online O Brasil é um país racista?.
Aos jovens, reforço a urgente necessidade de recuperarmos os heróis negros de nossa pátria, não somente aqueles que participaram, ativamente, das forças de trabalho escravo ou mesmo das forças de resistência e insurreição – como Palmares, Zumbi ou a Revolta da Chibata –, mas aqueles que, intelectual e institucionalmente, foram fundamentais para a formação de nossa identidade cultural: artistas, professores, intelectuais, jornalistas, empresários, médicos, advogados, heróis de guerra, acadêmicos, ativistas etc.. Há uma plêiade de figuras positivas que, mesmo em meio a grandes dificuldades – como o racismo e a pobreza – se destacaram e hoje nos servem não como meras exceções (no sentido pejorativo que os coletivistas tratam), mas como modelos que podem impulsionar muitos que não enxergam perspectiva diante das dificuldades. Também já tratei disso em artigo, aqui.
Por ocasião do Fórum, escolhi um personagem que, ainda muito próximo da chegada dos portugueses em sua ilha afortunada, já era um negro livre e foi uma figura fundamental na luta contra a invasão holandesa no Brasil: Henrique Dias, aquele que ficaria conhecido como Governador dos Crioulos, Pretos e Mulatos do Brasil.
A data da nascimento de Henrique Dias é incerta, mas sabe-se que, em 1630 – os primeiros africanos chegaram no Brasil entre 1539 e 1542 –, já era um negro livre e batalhava contra o invasor holandês. Em 1633, se apresentou ao então governador da capitania de Pernambuco, Matias de Albuquerque, se oferecendo “para servir, com alguns de sua cor, em tudo o que lhe determinasse”. Iniciou como capitão, mas, posteriormente, recebeu a honraria de ser governador de um terço (como se chamavam os pelotões militares à época) de homens pretos e mestiços. Até sua morte comandou e governou um pelotão de cerca de 400 homens, que foram chamados de Henriques. Recebeu muitas honrarias ainda em vida. Como diz o livreto biográfico Henrique Dias – Herói da restauração de Pernambuco (Agência Geral das Colónias), de Frazão de Vasconcelos, publicado em Portugal em 1940:
Henrique Dias, preto de nascimento, teve honras que muitos brancos então invejariam. Em 1638 foi-lhe concedido o fôro de cavaleiro fidalgo da casa del Rei e, depois da expulsão dos holandeses, teve, em 1657, a mercê de posto de mestre de campo. Por outro lado, as recompensas de ordem material também não foram somenos. No ano de 1634, teve a mercê da comenda dos Moinhos de Soure, da Ordem de Cristo, que vagou por morte de D. Antônio Felipe Camarão […]. A seu pedido, estas mercês foram depois modificadas e ampliadas em favor de suas filhas e seus genros […], ficando ele, Henrique Dias, com a renda de 200 mil réis em sua vida, pagos na capitania de Pernambuco.
VEJA TAMBÉM:
E complementa: “Esse fatos põem em evidência dois aspectos altamente significativos: que os serviços extraordinários de Henrique Dias na expulsão dos holandeses do Brasil não foram esquecidos e que a tolerância da côrte portuguesa, dando, em pleno século XVII, a um preto o fôro de seu cavaleiro fidalgo e o hábito da mais estimada das ordens militares, não tem paralelo que saibamos em qualquer outra da Europa”.
Diz-se também que no Brasil era muitíssimo considerado, inclusive por generais, com uma única exceção, que ele mesmo relata, em carta a el Rei, de 1650, reclamando do tratamento que recebia do general de campo Francisco Barreto de Meneses. Ocasião na qual o rei manda tomar providências em seu favor.
Tudo isso devido ao seu imenso heroísmo nas batalhas. Recebeu ferimentos de mosquete em cinco ocasiões, voltando às batalhas após os curativos. Mas a mais notável das histórias é a de que, tendo sofrido um ferimento de tiro na mão esquerda, e vendo que o curativo demoraria demais a curar, pede para que lhe arrancassem a mão de uma vez, dizendo “que ainda lhe restava mão direita para o serviço del Rei e terror dos inimigos”. Desse modo, se tornou um dos grandes heróis de guerra brasileiros, com destaque para sua participação nas duas Batalhas dos Guararapes.
Após a expulsão dos holandeses, vai, pela segunda vez, a Portugal, pedindo ao Rei em seu favor e de seu Terço, que era formado basicamente por escravos. Henrique Dias pede a libertação deles, e lhe é concedida. Diz a biografia: “Em 17 de outubro de 1657, a Rainha Regente determina: 'Enquanto viver Henrique Dias se conserve este terço e se dê liberdade pelo modo que parece à consulta. Morto Henrique Dias, se me proporá o que se há de fazer deste terço'”. Em 1658, recebe ainda outra honraria da Rainha Regente, que “dá-lhe o posto de mestre da campo honorário 'e que haja com ele somente o soldo com que antes da recuperação de Pernambuco governava o mesmo terço, e que goze de todas as honras, privilégios, isenções e franquezas e liberdades que por razão lhe tocarem'”. Henrique Dias morreu em junho de 1662, entrando para a história como grande herói, para depois ser esquecido nesse grande apagamento da memória nacional que ocorreu em nosso país nas últimas décadas. Curiosamente, há informações documentais de que o terço de Henrique Dias existiu até meados do séc. 19, servindo não só em Pernambuco, mas também na Bahia e até em Angola.
Recentemente, através da lei nº 12.701, de 06 de agosto de 2012,foi inscrito no Livro de Heróis da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, um cenotáfioque homenageia os heróis nacionais localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
Das contradições de nossa tão singular história, vale dizer que Henrique Dias e seu terço também combateram quilombos – inclusive Palmares. Mas não seria correto fazermos julgamentos anacrônicos em relação a acontecimentos tão remotos. Antes, é preciso compreender algo como “solidariedade de raça” ou mesmo “consciência racial”, são valores contemporâneos, fomentados já pela militância organizada. E como diz Joaquim Nabuco em O abolicionismo, “a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo”, tornando difícil a distinção de sua hediondez. Completa ele que é preciso “adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou”. Ainda assim, creio ser possível enaltecermos a figura de Henrique Dias como um homem negro valoroso de nossa história, que, ainda no início de nosso período escravista – há quem afirme que ele nasceu por volta de 1575 –, se destacou como homem livre e coberto de honrarias.
E foi sobre isso, sobre nossos antagonismos, que o historiador Thomas Giulliano tratou em sua intervenção. Nos lembrou que o Brasil é, realmente, um país de contradições, cuja história só pode ser melhor compreendida com a valorização das fontes primárias e da cautela para não fazermos juízos anacrônicos; “a historiografia brasileira não é para amadores”, disse ele, e completou que é preciso, sobretudo, amor ao estudo, paciência e honestidade intelectual para que, do meio de tantos aspectos, digamos, grotescos, a virtude seja reconhecida e exaltada.
Por isso, reitero: está colocada diante dos negros brasileiros uma escolha; ou procuramos a nossa independência e a nossa autonomia, não ficando reféns de nosso passado tão doloroso, tampouco do Estado – requerendo somente a desobstrução do caminho que nós mesmos queremos trilhar, sem sua intervenção paternal e escravizante –, ou sucumbiremos na morte – espiritual, perpetrada por ideologias que inoculam em nós o veneno do ressentimento que paralisa e mata, ou a morte física da vulnerabilidade periférica.
Escolhamos a vida, para que vivamos.