“Sou obrigado a proclamar a descrença – Kiríllov andava pela sala. – Para mim não existe ideia superior à de que Deus não existe. Tenho atrás de mim a história da humanidade. O homem não tem feito outra coisa senão inventar um deus para viver, sem se matar; nisso tem consistido toda a história do mundo até hoje. Sou o único na história do mundo que pela primeira vez não quis inventar um deus.” (Dostoiévski, Os Demônios)
Talvez eu esteja sendo um tanto repetitivo nos últimos tempos, razão pela qual peço desculpas ao generoso leitor. Mas não posso, na medida em que eles, os iluminados, insistem em subestimar a nossa inteligência, transigir e aceitar tacitamente acusações tão torpes que me atingem tão diretamente. Não posso ler e ouvir essa quantidade avassaladora de teorizações estúpidas sobre minhas escolhas personalíssimas (e de muitos outros brasileiros), como se essas fossem mera adesão submissa baseada em relações de poder.
Pois bem, a celeuma da vez gira em torno do novo livro de Jessé Souza, um dos intelectuais mais celebrados do progressismo atual, cujas obras, se não são lidas, ao menos são citadas por todo aquele que quer parecer muito antenado sobre os problemas brasileiros mais profundos. Seu A elite do atraso, no qual podemos encontrar, com ares de alta análise sociológica, neologismos pueris como “golpeachment”, vendeu dezenas de milhares de cópias; e seu não menos panfletário A radiografia do golpe não deixa dúvidas de qual perspectiva todas as diatribes desse senhor partem.
“O Pobre de Direita” é um livro escrito por um esquerdista para esquerdistas. Escrito por um sociólogo que tem lado e cuja visão de mundo está fundamentalmente maculada por sua opção político-ideológica
Em seu livro atual, O Pobre de Direita – A vingança dos bastardos, ele mira, definitivamente, sua metralhadora de preconceitos contra aqueles cuja fidelidade e lealdade ao petismo – segundo ele, no Radiografia... – foram sequestradas pelo discurso anticorrupção. Ele diz, lá, que, para os pobres, “a corrupção e o engodo de forma geral são um dado universal da ʻpolítica dos ricosʼ, e o decisivo é a existência ou não de políticas que contemplem uma melhora de sua situação social”, e que isso fazia parte de sua “extraordinária racionalidade prática”. Ou seja, os pobres eram lenientes com o crime de colarinho branco a fim de levar vantagem, mas foram enganados e seduzidos pelo discurso de moralidade na política. Nem sei o que dizer.
Agora, ele inicia perguntando “quais foram as novas formas de manipulação da população inventadas, e quais foram as ansiedades das classes populares às quais elas se dirigiram?” Se entre 2013 e 2016 foi o lavajatismo, o que seria agora? E, a partir de um punhado de psicologizações que ele faz no início, ele questiona, por exemplo: “Por que a maioria dos pobres, inclusive, adere a uma moralidade convencional e conservadora que foi construída especialmente para oprimi-la?” E mostra a que veio: “Este é o objetivo deste livro: explicar, e não apenas descrever, as razões últimas que fizeram uma parcela significativa de um povo sofrido votar em um candidato que é, objetivamente, medido pela regra da utilidade econômica, seu maior inimigo”.
Daí que, ao ler a introdução do livro que pretende explicar o tal “pobre de direita” – sobre quem também já falei nesta Gazeta do Povo, mas, obviamente, da perspectiva de um –, temos uma certeza: esse é um livro escrito por um esquerdista para esquerdistas. Escrito por um sociólogo que tem lado e cuja visão de mundo está fundamentalmente maculada por sua opção político-ideológica. Sua pretensa análise parte de alguns pressupostos sem os quais não é possível compreendê-lo: ele ama Lula, tem plena certeza de que o impeachment foi golpe, que o PT nunca roubou e que o pobre é um idiota útil.
Souza, que esteve no acampamento “Lula Livre” em 2018, e até escreveu uma carta ao então presidiário – dizendo coisas como “o senhor é a luz nas trevas. O senhor é o líder popular mais importante dos 500 anos de história deste país e o único que se preocupou com os mais pobres e os mais marginalizados” –, não pode ser lido sem levar em consideração tamanha submissão ideológica. Jessé Souza, que acusou Sílvio Almeida, o ex-ministro já proscrito e esquecido, de petição de princípio, faz o mesmo quando escreve suas análises partido do pressuposto de que sua visão a respeito dos fatos que levaram ao impeachment de Dilma e Lula à prisão é expressão da mais pura verdade. Daí que sua construção argumentativa parte desses princípios e ele espera que seu leitor concorde com isso. É falacioso.
Mas quero aqui evidenciar não só o preconceito de Jessé Souza em relação ao negro evangélico, mas seu ódio a essa população por ter expressado sua liberdade de escolha democrática. Jessé Souza inicia o capítulo com uma interpretação de Max Weber que custei a acreditar ter saído da pena de um doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg. Ele afirma:
“Para Max Weber, o sociólogo das religiões mais influente e importante de todos os tempos, a religiosidade tem íntima relação com a classe social, ou seja, com a posição relativa dos fiéis na hierarquia social […]. O pentecostalismo, desde a sua vertente original nos Estados Unidos, nasce como oposição ao protestantismo histórico e ao processo de secularização que lhe foi subsequente. Como se sabe, a tese weberiana para explicar o processo de secularização parte da contradição interna ao protestantismo ascético, que constrói um ‘caminho para salvação’ baseado no sucesso mundano. Ao interpretar o caminho para a salvação eterna como decorrente do sucesso mundano e visível, ou seja, como riqueza material, o ascetismo protestante passa a exigir do fiel a ‘dominação do mundo’ social e natural como precondição para ser salvo.”
Souza não demonstra apenas seu preconceito em relação ao negro evangélico, mas seu ódio a essa população por ter expressado sua liberdade de escolha democrática
O problema é que Weber não diz isso; ele não diz que o protestantismo ascético “constrói um ʻcaminho para salvaçãoʼ baseado no sucesso mundano”. Ele diz bem o contrário. Leiamos um trecho paradigmático de A ética protestante e o espírito do capitalismo:
“A ascese lutou do lado da produção da riqueza privada contra a improbidade, da mesma forma que contra a avidez puramente impulsiva – condenando esta última com os nomes de covetousness [cobiça], mamonismo etc.: a ambição de riqueza com o fim último de ser rico. Pois enquanto tal, a posse de fato era uma tentação. Mas aí a ascese era a força ʻque sempre quer o bem e sempre faz o malʼ – ou seja, o mal no sentido que ela tinha em mente: a posse e suas tentações. Pois, a exemplo do Antigo Testamento e em plena analogia com a valorização ética das ʻboas obrasʼ, ela via, sim, na ambição pela riqueza como fim o cúmulo da culpa, mas na obtenção da riqueza como fruto do trabalho em uma profissão, a bênção de Deus. Eis, porém, algo ainda mais importante: a valorização religiosa do trabalho profissional mundano, sem descanso, continuado, sistemático, como o meio ascético simplesmente supremo e a um só tempo comprovação o mais segura e visível da regeneração de um ser humano e da autenticidade de sua fé, tinha que ser, no fim das contas, a alavanca mais poderosa que se pode imaginar da expansão dessa concepção de vida que aqui temos chamado de ʻespíritoʼ do capitalismo. E confrontando agora aquele estrangulamento do consumo com essa desobstrução da ambição de lucro, o resultado externo é evidente: acumulação de capital mediante coerção ascética à poupança.” (grifos meus)
Ou seja, a riqueza não era o “caminho para a salvação” – é ridículo pensar isso de um protestante histórico, ainda mais de um puritano –, antes era um sinal dela, mas por uma consequência prática: a racionalização do trabalho, a ascese e a poupança. Não existe uma exigência pela “dominação do mundo”, termo que, aliás, nem está no livro de Weber, o que tornam injustificáveis e manipulativas as aspas usadas por Souza. O sociólogo brasileiro erra, só não sabemos se deliberadamente ou por ignorância em relação ao autor citado.
O que ele comete, na verdade, é um anacronismo, pois pretende analisar o neopentecostalismo, mas, para dar ares científicos ao que dirá a seguir, quis apoiar-se no gigante Max Weber. Souza acerta, após uma análise histórica do surgimento do pentecostalismo, ao descrever o desembocar no neopentecostalismo como uma “afirmação do mundo” – ao contrário da “negação do mundo” que ocorria no pentecostalismo – que atribui a causas espirituais problemas sociais e usa dos mesmos expedientes mágicos para enfrentar o mundo e vencê-lo, aqui mesmo, através da prosperidade (já tratei disso aqui). Mas erra, de novo, quando diz que, por causa da demonização das religiões de terreiro, há uma criminalização do “negro e todas as suas práticas, inclusive as religiosas”, como se o berço religioso do negro fossem as religiões de terreiro. Não são; esse berço é o próprio pentecostalismo, há décadas, como nos mostra o teólogo Marco Davi de Oliveira em seu A religião mais negra do Brasil, lançado em 2004. E ele complementa, errando de novo e, dessa vez, sendo racista: “o neopentecostalismo é ideal para quem pretende ʻembranquecerʼ – com tudo o que isso significa no Brasil, e que não se refere apenas à cor da pele – pela aceitação da norma moral vigente do dominador branco que implica o estigma do negro (seu vizinho ou irmão) e a sua criminalização”. Para Souza, o negro que se torna evangélico quer ser branco. Absurdo já combatido por mim aqui.
Em seguida, transcreve entrevistas que fez com negros evangélicos que são a manifestação mais nauseante de seu preconceito e de sua manipulação ideológica. Ele pergunta, por exemplo, a um rapaz chamado Vanderson, “se a igreja o ajuda”, ao que ele respondeu:
“Eu acredito que sim. Porém, como eu cheguei a frequentar a faculdade, o leque se abre mais ainda. Mas a igreja ajuda muito. Com certeza. Ajuda principalmente a saber trilhar os caminhos corretos. Porque há muitos caminhos que você acha que seria bom, tipo: ‘Ah, vai pela cabeça de fulano, vai pela cabeça de ciclano!’, só que aí o final é só dor. A igreja é muito importante pra essa fase de aconselhamento, de ensino baseado na palavra, mesmo. Em termos de saber onde você anda, com quem você anda, como você anda. Em termos de companhia, também. Nesse quesito, eu acho a igreja muito importante.”
A análise de Souza é inacreditável: “Mais uma vez, aquilo que é ensinado de modo insensível nos lares de classe média desde tenra idade – como a importância da disciplina e do foco no estudo e no trabalho – é conseguido na vida adulta pela tardia socialização religiosa de muitos membros das classes populares. Com a diferença marcante do menor respeito à individualidade, dada a rigidez da moral religiosa baseada, supostamente, na ʻpalavra da Bíbliaʼ. O guia espiritual para iluminar o difícil caminho da vida é conseguido com o sacrifício do intelecto exigido – em maior ou menor grau – por toda forma de religiosidade. Por conta disso, uma individualidade refletida e crítica é tão difícil nesse contexto”.
Para Souza, grande parte das classes populares não tem ensinamentos morais em suas famílias, uma flagrante ignorância (ou consciente manipulação) em relação à fortíssima moralidade dos pobres
Para ele, grande parte das classes populares não tem ensinamentos morais em suas famílias, uma flagrante ignorância (ou consciente distorção da realidade) em relação à fortíssima moralidade dos pobres, que, não tendo posses, fazem questão de zelar por seu nome. Outra bobagem é dizer que o respeito ao que diz a Bíblia ocorre à custa do “sacrifício do intelecto exigido [...] por toda forma de religiosidade”. Essa é uma generalização carregada de um elitismo e um preconceito brutais. O pior é que, ao perguntar o que Vanderson pensava da politização da igreja no Brasil, a resposta, concordemos ou não com ela, não parece ter sido dada por alguém que sacrificou o intelecto: “Eu acho que é até bíblico. Tanto é que muitos políticos da época, da classe alta, foram importantes para a expansão do Evangelho, né? Se não fosse também o próprio império de Roma, o Evangelho não teria se difundido tanto. É lógico que é Deus no controle, mas o Império Romano ajudou muito nessa expansão”. Vai entender.
E, desse modo, Jessé Souza vai colocando na boca de seus entrevistados absolutamente todos os os exageros e absurdos reprováveis no discurso de Bolsonaro e seus eleitores. Não só o conteúdo, mas o tom das respostas, sinceramente, me faz desconfiar de sua autenticidade. Não que eu não tenha conhecimento de muitas pessoas que realmente pensam e falam desse modo, mas o modo como seus entrevistados respondem os faz ser, todos, cópias idênticas de negros bolsonaristas como Sérgio Camargo e Hélio Negão. Kit Gay, “bandido bom é bandido morto”, o medo de liberarem as drogas, a reclamação sobre os benefícios sociais etc. Está tudo lá. E isso dá ensejo a Souza de fazer sua análise crítica e acusatória, como segue:
“A estratégia conservadora é acusar a justa compensação às minorias perseguidas de pretenderem um privilégio indevido e exagerado em uma sociedade igualitária [...]. São eles os mais meritocratas. São eles quem mais apoiam todos os preconceitos produzidos pela elite e seus prepostos conservadores para oprimir os negros e os pobres como Vanderson. O que é óbvio e não deveria causar surpresa, já que são também, pelo seu abandono e exclusão, os menos aptos cognitiva e emocionalmente para se defenderem.”
Para Jessé Souza os pobres não são seres dotados de autonomia, de liberdade e inteligência mínima para fazerem escolhas. São massa de manobra das elites
Ou seja, de novo, mais preconceito, julgando serem esses, os pobres, “os menos aptos cognitiva e emocionalmente para se defenderem”. Mas, ao fim e ao cabo, o que Jessé Souza faz é culpar a suposta ignorância das pessoas em suas escolhas políticas como consequência de um círculo vicioso: o plano da elite para dominá-los através da perene condição de precariedade em que vivem. Uma vez dominados, escolhem seus algozes para ajudá-los. E atribui a essa mesma ignorância o não reconhecimento de tudo o que a esquerda (mais especificamente, dos governos petistas) fez por eles – o SUS, a geladeira linha branca, a saída da linha da pobreza etc.. A revolta contra a corrupção também não passa de manipulação da elite e nem mesmo o avanço do identitarismo e das pautas de licenciosidade sexual das mais tresloucadas justificariam a rejeição dos evangélicos à esquerda.
E para ele, a situação do negro pobre evangélico, especificamente, é muito pior, pois “ele é atormentado constantemente pela insegurança existencial e ontológica provocada pela negação, compartilhada por toda a sociedade, de seu valor como ser humano”. Ou seja, como dito acima, a conversão é mera tentativa de se parecer com o branco adotando o que Jessé julga ser a religião do branco. A experiência de conversão e a mística que isso envolve, algo muito sério para qualquer cristão evangélico, é tratada com desprezo por Jessé Souza, que, inclusive, não percebe nessa postura, comum na esquerda, outra causa da rejeição de evangélicos a ela.
O que temos, portanto, é que, para Jessé Souza, os pobres não são seres dotados de autonomia, liberdade e inteligência mínima para fazerem escolhas; e sua religião não é uma poderosa força espiritual, é só um fenômeno social manipulativo como outro qualquer. E são apenas massa de manobra das elites – usando o conceito, obviamente, de modo a excluir ricos como Lula e toda a malta esquerdista ligada a ele (como o próprio Jessé Souza). Mas ignora completamente que, nas quase duas décadas que o PT esteve no poder, a condição real de vida dos pobres mudou muito pouco, mudou de modo superficial. Os sofrimentos continuam, acrescidos, agora, pelo avanço do crime organizado, pela vulnerabilidade social causada pela violência e pelas pautas que pretendem ferir seus valores mais caros. Por conveniência ideológica, Souza ignora os efeitos dos escândalos de corrupção e os bilhões desviados nos governos de Lula e Dilma – pois tudo isso faz parte do projeto das elites. Por fim, culpa os pobres por sua situação e, com isso, demonstra que o que sente por eles é, de fato, desprezo e ódio.
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