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Nicole Kidman em cena de Dogville, de Lars von Trier.
Nicole Kidman em cena de Dogville, de Lars von Trier.| Foto: Divulgação

O beautiful for spacious skies,
For amber waves of grain,
For purple mountain majesties
Above the fruited plain!
America! America!
God shed his grace on thee
And crown thy good with brotherhood
From sea to shining sea!
(Katherine Lee Bates, America The Beautiful)

Quando Dogville (2003) iniciou, com seu cenário teatral e ridiculamente simples – uma “vila” de uma rua, a Elm Street, cujas casas dividem-se apenas por marcações no chão e o abre-e-fecha de portas é feito com as mãos girando no ar, a segurar maçanetas invisíveis –, pensei tratar-se de uma brincadeira de Lars von Trier, pois, de início, somos avisados, através de um letreiro, que o filme será contado em “nove capítulos e um prólogo”. Em seguida, o prólogo, “que nos apresenta a cidade e seus habitantes”, inicia com uma suite para violino belíssima do compositor dinamarquês Joachim Holbek, e a vila nos é apresentada vista de como um mapa. Pensei: “ao terminar o prólogo, o cenário ʻde verdadeʼ vai aparecer”. Ledo engano.

[contém spoilers]

À medida que o filme vai seguindo, a irritação com aquele cenário esquisito – e saber que terei de aturá-lo por três horas! – vai sendo substituída pela curiosidade, pelo “deixa eu ver onde isso vai dar”. De repente, o arrebatamento... e o terror. A história de Grace (Nicole Kidman) e sua relação com os falsamente pacatos cidadãos de Dogville, nos captura... e tortura. Grace está fugindo de seu pai, um gângster (James Caan), e vai parar, sem querer, na pequena cidade fictícia e é encontrada por Tom Edison Jr. (Paul Betanny), um jovem aspirante a escritor que se compadece dela e, mesmo sabendo que ela está fugindo de criminosos, lhe oferece guarida e submete sua intenção aos demais moradores, que, mesmo titubeando, a aceitam, com a condição de ela ajudar os moradores em seus poucos afazeres.

À medida que o filme vai seguindo, a irritação com aquele cenário esquisito – e saber que terei de aturá-lo por três horas! – vai sendo substituída pela curiosidade, pelo “deixa eu ver onde isso vai dar”

No entanto, Grace, cuja figura elegante contrasta com a simplicidade dos  moradores, de início enfrenta certa resistência, pois todos lhe dizem que não há o que ela possa fazer e que não precisam de sua ajuda. Mas ela insiste e responde: “Não importa, pois não sei fazer nada. Nunca trabalhei na minha vida”. Com isso inicia sua jornada naquela simplória comunidade e vai, aos poucos e ao que tudo indica, conquistando um a um. Mas não demora muito para que sua prestatividade se transforme numa verdadeira descida aos infernos.

Aos poucos – e, curiosamente, a partir de uma criança – os moradores de Dogville vão mostrando o lado mais sombrio da alma humana. Grace passa a ouvir críticas sobre o seu trabalho e, quando menos espera, começa a sofrer sanções, que vão se intensificando cada vez mais até se transformarem em abusos, estupros e torturas física e psicológica. E então percebemos estar diante de uma absolutamente perturbadora crítica de Trier ao tão desejado American way of life, nessa nova trilogia (inacabada) conhecida como USA – Land of Opportunities. Como diz Linda Badley em seu livro sobre Von Trier: “Somos lembrados de que a América nasceu como um experimento que Edison, batizado em homenagem ao cientista, inventor e pragmático americano prototípico, personifica. Este experimento/jogo/romance de Edison, no entanto, está carregado de riscos – sociais, econômicos e pessoais – subjacentes a uma relação anfitrião/convidado, presente/destinatário, e o filme se torna uma lição sobre a economia do desejo e as sadomasoquistas relações de poder”.

Caso o nobre leitor ainda não tenha visto o filme, será inútil meu esforço de descrever-lhe o que realmente acontece com Grace. A cada investida dos moradores, transformados em verdadeiros demônios, a protagonista, resignadamente, aceita tudo; parece não acreditar que sejam capazes de ir mais fundo naquilo que já a violara completamente. Mas eles são insaciáveis, e a maldade de que são tomados não encontra limites e só pôde ser parada por alguém que, definitivamente, não acredita na bondade humana: seu pai (Big Man), o criminoso de quem fugiu por considerá-lo um homem mau. No reencontro e antes do desfecho, o homem não deixa de censurar a filha por sua absurda condescendência.

Grace, a exemplo de Selma (Dançando no Escuro) e Bess (Ondas do Destino) – mas, ao mesmo tempo, diferente das duas, pois não demonstra a mesma ingenuidade –, é mais uma dos avatares femininos de Von Trier, que ele submete ao calvário de suas próprias neuroses, mas, ao mesmo tempo, tece suas mordazes críticas existenciais e políticas a tudo que, ainda que seja bom e desejável – família, religião, relações amorosas e sociais –, não resiste à hipocrisia dos seres humanos. Nesse caso, a paródia é perfeita: Grace é a personificação da Graça divina, e seus profanadores são os cristãos – ou anticristoscomo vistos por Nietzsche, cuja aparência de bondade esconde um sentimento de inveja e um desejo de vingança.

Rebecca A. Longtin, em seu ensaio Film as Phantasm: Dogville’s Cinematic Re-evaluation of Values, presente no interessante livro The Films of Lars von Trier and Philosophy (organizado por José A. Haro e William H. Koch) analisa de forma muito bem essa ligação entre Von Trier e Nietzsche, afirmando:

“As questões morais que surgem no filme refletem, portanto, a mesma crítica da piedade em Nietzsche e os estoicos. Piedade e compaixão não são bases suficientes para a ação moral e podem até sinalizar complacência diante de uma grave injustiça. Dogville, como a crítica de Nietzsche à moralidade tradicional, nos faz questionar o peso de nossos valores morais para a vida. Somos forçados a confrontar nossas ideias de bem e mal de uma perspectiva diferente, que vira tudo de cabeça para baixo e arranca nossas suposições mais profundas sobre o mundo. Assim como a filosofia de Nietzsche foi concebida para destruir os delírios negadores de vida da modernidade para limpar o terreno para uma moralidade que poderia afirmar a vida, Von Trier nos força a confrontar a suposição problemática de que as pessoas são meramente o produto de seu ambiente e não podem ser culpadas por ações. As críticas de piedade de Nietzsche e von Trier são provocações que visam a um reexame crítico de nossas crenças morais e as maneiras pelas quais elas podem falhar em promover a igualdade genuína e o florescimento humano”.

O niilismo de Von Trier é indigesto, sobretudo para quem é religioso, como eu. Mas sua capacidade de nos conduzir a uma experiência cinematográfica inesquecível não pode ser ignorada

Por isso os moradores de Dogville, ao submeterem sua hóspede às mais degradantes situações, o fazem com aquele semblante de quem está apenas fazendo o que é necessário para manter a ordem da comunidade. Há uma inversão total nisso, maligna. Ao ser acorrentada pelo pescoço a uma enorme roda de ferro fundido para que não tentasse fugir novamente – tentara subornar um morador que prometeu levá-la escondida em seu caminhão, mas ele a engana, estupra e a leva de volta à vila – os sádicos moradores mantêm um ar de constrangimento odioso; não pelo que estão fazendo, mas por Grace ter sido ingrata. É de embrulhar o estômago. E Linda Badley analisa a ligação entre as antiheroínas de Trier:

“Recapitulando as trajetórias de todas as três narrativas do Coração de Ouro apenas para revertê-las em sua conclusão surpreendente, Dogville pode ser lido reflexivamente como uma caricatura das obras anteriores de Trier, que declara Bess, Karen [de Os Idiotas] e Selma tolas e ‘arrogantes’ em seu martírio. Uma metafórica imigrante que se deixa explorar, Grace é incriminada e punida, como Selma, por ‘crimes’ dos quais é inocente. Como Karen, ela sacrifica sua dignidade pelo bem de sua (indigna) comunidade adotiva. Acima de tudo, a Grace de Kidman oferece um corretivo sardônico para Ondas do Destino. Onde o amor transcendente de Bess está associado à música e aos sinos da igreja (ausentes), Grace é regulada pelo sino da casa da missão, que o filme associa à lei ao avisar sobre a aproximação da polícia, proclamar votos, espaçar seus turnos, zombar de sua mercantilização sexual, e marca sua subjugação. Finalmente, Dogville reverte a apoteose-via-sinos de Bess com o deus ex machina do Big Man e o perverso Deus Pai. A alegoria religiosa, reinvestida com sinceridade em Breaking the Waves, é implantada em Dogville com o objetivo igualmente didático e subversivo da sátira, representando a palavra final sobre Justine, de Sade. Grace entra na cidade em busca de refúgio, é sistematicamente explorada, escravizada, estuprada, torturada e, posteriormente, punida por prostituição, escapando da custódia e roubo, tornando-se a ‘ilustração’ perfeita de Tom/Trier para seu exemplum sadomasoquista sobre o fracasso da virtude. Finalmente, Trier se disfarça em Edison Jr., seu substituto cuja presunção de conhecimento ‘filosófico’ e um olhar científico o colocam numa posição de poder que é suspeita desde o início.

Em 2005, Lars von Trier repetiu a fórmula – cenário brechtiano, luz direcionada, divisão em capítulos, narração em off etc. – no segundo filme de sua trilogia inacabada, Manderlay, substituindo Nicole Kidman por Bryce Dallas Howard no papel de Grace, e James Caan por Willem Dafoe no papel do pai. O esquema cênico, já manjado, perdeu o vigor, e a história, menos pungente, também não chega a decolar. É um panfleto político mais direto. Mas não deixa de ser uma crítica contundente – e inédita no cinema, eu diria – do racismo americano, em que negros vivam voluntariamente escravizados numa fazenda, no Alabama, setenta anos após o fim da Guerra de Secessão e a abolição.

Willem Dafoe e Bryce Dallas Howard, em <em>Manderlay</em>
Willem Dafoe e Bryce Dallas Howard, em Manderlay

A caravana de Grace, seu pai e seus capangas faz uma parada para se organizar bem em frente à fazenda em questão, quando é surpreendida por uma mulher negra que sai por um espaço aberto na grade – “quando há chicoteamento, eles tiram uma parte da grade” – e pede sua ajuda para impedir um chicoteamento. Grace estranha uma mulher falar em chicotes àquela altura do campeonato, e pergunta: “O que você está dizendo? Quem vão chicotear?”. Ela responde: “Timothi”. “Por que?”, Grace insiste. A mulher olha com uma cara de espanto e diz: “É assim que nos fazem escravos”. Grace não compreende, e a mulher complementa: “Certamente já ouviu falar em escravos; é isso que somos em Manderlay, este lugar abandonado”. E Grace então se envolve com essa pequena comunidade, que ira se revelar curiosa e voluntariamente submissa a um sistema que tolhe a sua liberdade.

Já comentei sobre esse filme em outra ocasião – aqui, nesta Gazeta do Povo –, ao falar sobre a submissão dos artistas negros de Hollywood à chancela da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, por meio de sua campanha Oscars so White, em 2016.

O fato é que o niilismo de Von Trier é indigesto, sobretudo para quem é religioso, como eu. Mas sua capacidade de nos conduzir – através de roteiros impecáveis (o texto e a narração de John Hurt são perfeitos), atuações marcantes e direção genial – a uma experiência cinematográfica inesquecível não pode ser ignorada. E o título dessa série de artigos faz jus aos que sinto ao ver seus filmes.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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