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À Paula Carvalho Joly.
“Se em vez de bibliotecas […], os filantropos doassem música aos pobres […], é provável que todos os crimes e contendas logo se tornassem desconhecidos, podendo fluir melodiosos, em obediência às leis da música, o trabalho das mãos e os pensamentos da mente. E seria então um crime tomar os músicos de rua ou qualquer um que interprete a voz do deus por outro alguém que não seja um homem santo, e do nascer ao pôr do sol nossa vida poderia passar ao som de música.” (Virginia Woolf, O músico de rua)
Peguei-me esses dias pensando em perspectivas para o ano que se aproxima. Meu cérebro e meu coração não evocaram nada de bom. Na realidade, para ser sincero contigo, leitor amigo que me acompanhou nesta coluna em mais este ano, estou terminando o ano pior do que comecei. Não foi o ano que planejei e as coisas saíram bem diferentes do que eu havia previsto. Projetos não realizados, promessas vazias, objetivos não alcançados e, com exceção de dois ou três acontecimentos extraordinários, meu 2023 foi um ano, de certo modo, frustrante – inclusive financeiramente.
Óbvio que, vivendo no Brasil, um país que não oferece estabilidade a (quase) ninguém, meu relato não é o de um privilegiado às avessas; é a situação de muitos que, como eu e dentro do contexto em que me encontro, escolheram a estrada menos viajada ou que, infelizmente, foram impedidos por adversidades. Nossas intempéries políticas são só um efeito de tragédias produzidas muito antes que qualquer um de nós tivéssemos visto a luz da vida. Manter a integridade num país que constantemente se desintegra é um desafio árduo para muitos de nós, que não fomos visitados pela Fortuna, que não somos amigos do rei, que não integramos o inner circle dos que têm as chaves dos cofres. Mas já estou me lamuriando e esse não é o objetivo deste pequeno texto.
Quero dizer, na verdade, que toda a atmosfera sombria do parágrafo acima foi sensivelmente aliviada dias atrás por uma história que envolve, dentre muitas coisas, a arte e a redenção pelo sofrimento. Falo do comovente documentário American Symphony, do cantor, compositor e multi-instrumentista Jon Batiste, que eu, confesso, ignorara completamente até ver o filme; cheguei ao documentário por indicação de uma querida amiga, a quem dedico esse artigo e agradeço a preciosa dica. Disponível na Netflix, o filme acompanha o cantor em pleno processo de composição de sua primeira (e, por ora, única) sinfonia, que seria apresentada, em concerto único, no lendário Carnegie Hall, enquanto acompanhava sua esposa, a escritora Suleika Jaouad, em sua batalha contra a leucemia, que, após dez anos de remissão mediante um transplante de medula, havia retornado e exigia um novo procedimento cirúrgico. Também concorriam com a atenção de Batiste as múltiplas indicações ao Grammy de 2022 – onze, das quais ele levou cinco, incluindo Álbum do Ano, prêmio que não era vencido por um homem negro desde 2008 – e a apresentação que ele faria no dia da premiação. Ou seja, uma mescla de efervescência criativa, felicidade, apreensão e dor.
O medo de que a doença interrompa sua história de amor; a criatividade artística de um casal que, mesmo em meio a tanto sofrimento, consegue continuar criando e cumprindo a sua vocação; e a esperança de que tudo acabe bem, é o traço mais marcante do filme, e o incentivo de que precisei para renovar minhas perspectivas futuras
Jon Batiste é um jovem muito talentoso, nascido em 11 de novembro de 1986, na Luisiana, oriundo de uma numerosa família de músicos de Nova Orleans. No documentário ele diz que seu pai foi seu primeiro mentor musical, e que sua mãe acreditava muito na formação em piano clássico como fundamento: “Saiba o que tem de fazer, depois faça do seu jeito”, ela dizia. Bem cedo despertou o desejo de fundir gêneros, experimentar sons, sair do comum. Foi parar na conceituadíssima Juilliard School, onde formou sua primeira banda, a Stay Human Band, com a qual formou o time de músicos que tocou no programa The Late Show, com Stephen Colbert, de 2015 a 2022, trabalho que o notabilizou.
No documentário, enquanto conta a sua história, sua formação e influências, compõe, reúne os músicos para os ensaios de sua sinfonia, toca no Late Show, corre com os preparativos para a apresentação no Grammy e, por último, mas não menos importante, acompanha a esposa em suas idas e vindas do médico, nas internações e cuidados em casa. Tudo isso o leva a ficar exausto e atribulado, muitas vezes sem saber o que fazer. É um marido presente, que faz questão de acompanhar tudo de perto, de não deixar a esposa passar por isso sem ele. E esse conjunto tão diverso de sensações e problemas ajuda o diretor Matthew Heineman a montar um emocionante mosaico de arte, companheirismo, senso de vocação, amor e fé.
Com sua esposa debilitada, no meio do doloroso tratamento, da cirurgia e da delicada convalescênça, Batiste vence os Grammys e apresenta sua inventiva sinfonia contemporânea no Carnegie Hall – em meio a percalços como a falta de energia no teatro logo no início da apresentação, momento em que ele, se recompondo do susto, faz um solo de piano, improvisado e emocional, no qual canalizou toda a tensão daquele momento de sua vida. Durante o filme, o modo íntimo como cada um encara o que está ocorrendo é exposto de modo a humanizar ao máximo a situação; enquanto Suleika pinta, em seu quarto de hospital, pequenos quadros que lembram os de Frida Kahlo, externando seu sofrimento em imagens; Jon, em casa, sozinho, esconde sua cabeça embaixo do travesseiro e fala com sua psicóloga, depois volta a mergulhar no trabalho. Suleika também escreve, teve uma coluna no New York Times, na qual relatava seu tratamento e encorajava outras pessoas com câncer, e lançou um livro – Between Two Kingdoms: A Memoir of a Life Interrupted.
No início do filme, Batiste afirma: “Desde pequeno, estou sempre criando coisas. Minha mente está sempre criando coisas. E isso foi se tornando, com o passar dos anos, cada vez mais um mecanismo de sobrevivência. É a forma como processo tudo na minha vida”. E Jaouad diz, à frente: “Muito antes de termos um relacionamento romântico, Jon e eu compartilhávamos uma linguagem criativa. Ambos vemos a sobrevivência como um tipo de ato criativo. É o que nos ajuda a transmutar as diversas coisas que surgem na vida e transformá-las em algo útil, significativo e até bonito”. E ele complementa: “Aprendo com ela o tempo todo a olhar para a escuridão e o desespero e enfrentá-los. Mas não pode deixar que te dominem”. Creio que o “espírito” do filme esteja resumido nessas poucas mas muito significativas frases.
O medo de que a doença interrompa sua história de amor, que começou com uma doce amizade num acampamento musical – Suleika toca contrabaixo acústico; a criatividade artística de um casal que, mesmo em meio a tanto sofrimento, consegue continuar criando e cumprindo a sua vocação; e a esperança de que tudo acabe bem, é o traço mais marcante do filme, e o incetivo de que precisei para renovar minhas perspectivas futuras. As coisas nem sempre (ou quase nunca) saem como planejamos. Mas são sempre uma oportunidade de buscarmos alternativas e criarmos algo que, no final, fará a diferença não somente a nós, mas àqueles que amamos e, não raro, à humanidade. Assista a American Symphony e tenha um Feliz 2024!
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Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise