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“As ideologias não estão preocupadas em encontrar e expressar a verdade por seu valor de verdade. O que lhes interessa é confeccionar uma verdade utilizável.” (Andrei Pleșu)
Hoje fui ao mercado. Gastei R$ 450 em itens básicos de limpeza e alimentação. Nada demais. Quatro sacolas. Ou seja, gastei praticamente um terço do salário mínimo em alguns poucos itens, que durarão uma ou duas semanas. Saí do mercado assustado, de verdade. Não é razoável. E não consigo sequer imaginar como vivem 90% da população brasileira, que ganha menos de R$ 3,5 mil/mês (PNAD Contínua, 2024). Esses mesmos brasileiros que, na maioria dos casos, pagam aluguel, têm mais de um filho, cozinham com frequência e pagam mais de R$ 100 num botijão de gás que dura menos de um mês. Não é, nem um pouco, razoável.
Mas também me passou pela cabeça as vezes em que fiz esse tipo de desabafo, sobre o preço das coisas no mercado, em minhas redes sociais e recebi, quase imediatamente, respostas como: “deve ter feito compras em supermercado de rico”; “aqui onde moro, por esse valor, compro o triplo”; “mostra a nota aí!” Quando não dizem, simplesmente: “você está mentindo”. Ou seja, os esquerdistas de sempre, negando a realidade em nome da vassalagem política. Aqueles que dizem defender o “trabalhador”, não pensam duas vezes em trocá-lo por sua ideologia de estimação.
Mas, na outra margem do rio as coisas não são tão diferentes. Não demora muito também para aparecer o direitista reacionário (sim, que reage sonhando com o passado), disseminando, orgulhosamente, o seu temporão “faz o ʻLʼ”. Aliás, há muitos que pensam que fiz mesmo. Estes agem como se nunca tivessem vivido sob outros governos, em outros períodos de nossa história recente, e não soubessem que a instabilidade econômica, em geral, não é culpa deste ou daquele governo, mas é uma realidade constante de um país que, à exceção do Plano Real, nunca fez mudanças econômicas estruturais que nos permitissem viver longos períodos sem vender o almoço para comprar a janta.
É tudo muito curioso, e quem age dessa maneira, para mim – de duas, uma: ou está psicologicamente doente (e tem, mesmo, algo de doentio em defender políticos, que, tão somente, são nossos representantes), ou tem uma vida cujo lastro familiar minimiza os impactos do custo de vida das pessoas simples, sobretudo as da chamada classe média baixa, aquelas pessoas que, trabalhando muito, conseguem alguma mobilidade social, ganham um pouco mais que a média da população, mas vivem, basicamente, para pagar contas e tributos. O pobre, pobre, que vive de auxílios, é um conformado e, de certo modo, anestesiado, vive como dá e vai se virando, cheio de filhos, com a ajuda de Deus. O rico vive num outro Brasil, preparado e mantido para ele pelos políticos – eles mesmos, a maior das elites do país.
Por isso, ao ver toda a celeuma envolvendo o gesto de Elon Musk, absurda – o gesto e as reações – do início ao fim, não pude deixar de comparar nossa situação com a vivida pelos personagens da série do momento, Ruptura, da Apple TV+. Nessa série, espetacular, que estreou há pouco sua segunda temporada, os personagens têm uma espécie de dupla identidade; uma, vivida no ambiente de trabalho, em que eles realizam atividades que não sabem bem para que serve. E outra, fora da empresa, com suas vidas “normais”. A ruptura acontece quando entram no elevador da empresa para chegarem ou saírem do andar em que trabalham; suas memórias são chaveadas e eles não se lembram do que acontece no outro ambiente.
Esquerda e direita, atualmente, são ideologias propagadas, com maestria, por políticos e intelectuais, que rompem com a realidade a fim de darem, a seus comandados, um senso de pertencimento e de missão em abstrações irrealizáveis
Nas redes sociais me parece que acontece a mesma coisa. As pessoas passam o dia todo a brigar, defender Elon Musk, Trump, Lula, Bolsonaro et caterva, com unhas e dentes; de lutar, de modo figadal, por suas visões virtualmente reduzidas das ideias que circulam, freneticamente, nesse ambiente – polarizado, cheio de verdades apodíticas e inimigos inconciliáveis; ou mesmo pelas mentiras que escolhem para si, conscientemente ou não. Mas, quando saem, são obrigados a ir ao mercado e pagarem uma fortuna em bananas e papel higiênico. São obrigados, se moram na cidade de São Paulo, como eu, a ficarem sem luz diante de qualquer chuvinha; de terem o seu bairro tomado por usuários de drogas trazidos em vans de outras regiões ou do Centro; de serem incontestavelmente multados e terem de pagar mais de R$ 100 se passarem, por exemplo, a 48 Km/h em uma avenida que a prefeitura mantém, malandramente, com limite de 40Km/h. É impossível não ficar absolutamente estupefato, atônito, pasmo; e compreender que o Musk é o que menos importa. A não ser que sua situação econômica e sua rede de proteção social lhe ofereçam a possibilidade de passar incólume pelo que passam os meros mortais; aí você pode fazer sua ruptura sem muitos transtornos.
Andrei Pleșu, em seu estupendo Da alegria no Leste Europeu e na Europa Ocidental, analisa com precisão não só o conceito de ideologia – tratado por mim aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo –, mas o comportamento ideológico. Ele afirma, já ao final do ensaio “As ideologias: do ridículo à subversão”: “As ideologias são o correspondente – no plano intelectual – ao hábito de comer rápido e de digerir apenas parcialmente o que comes: fast food e junk food. Elas parecem ʻcientíficasʼ e ʻfuncionaisʼ, mas, na realidade, reduzem a vida orgânica do espírito a uma monotonia mecânica. As ideologias são pensamento burocratizado, assim como o fast food é alimentação burocratizada. Em ambos os casos, o equilíbrio vital do conjunto é posto em perigo.” E nos ensina a fugir delas – em complemento, eu diria, a fugir da ruptura:
“Mas pode-se escapar das ideologias? E, se sim, como? Não tenho a pretensão de colocar-vos à disposição um receituário infalível, que garanta uma proteção total contra o perigo. Ficaria feliz se conseguisse ao menos chamar vossa atenção acerca da existência dele. Quanto ao mais, as soluções são antes de bom senso, e dependem do diagnóstico correto da doença. Uma primeira forma de proteção contra a invasão ideológica é o pensamento autônomo, o pensamento por conta própria. Qualquer ideia vinda de fora, qualquer produto pronto para usar, qualquer moda lançada ciclicamente na cena pública tem de ser pesada com uma suspeição saudável. As ideologias são, de regra, pensamento massificado e, segundo a expressão célebre de Czeslaw Milaw Milosz, ʻmente cativaʼ. O sujeito deixa de ser o proprietário de seus próprios pensamentos, o que significa que seu pensamento deixa de ser um ato livre. ʻPensa-seʼ para ele em outra parte, a instrução é substituída pela propaganda, o ʻreclameʼ é preferido à experiência direta. Um segundo exercício de proteção é o esforço de pensar as coisas até o fim, para além da evidência de primeira instância, sem atalhos e correrias lógicas ou sentimentais.”
Esquerda e direita, atualmente, são ideologias propagadas, com maestria, por políticos e intelectuais, que rompem com a realidade a fim de darem, àqueles encantados por eles, um senso de pertencimento e de missão em abstrações irrealizáveis, que nada mais são do que servidão voluntária a projetos de poder. Nesse sentido, o gesto de Musk importa menos do que sua necessidade de condená-lo ou defendê-lo.