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“Na verdade uma nova civilização está se formando o tempo todo: a civilização de nossos dias pareceria realmente novíssima a qualquer homem civilizado do século 18, e não posso imaginar o reformador mais ardente ou radical daquela época muito satisfeito com a civilização que veria hoje.” (T.S. Eliot, Notas para uma definição de cultura)
Quando falamos em conservadorismo, o que a maioria das pessoas pensa é em “manter as coisas como são”, em “imobilismo”. Não raro, ouço de progressistas: “o que um pobre quer conservar?” – como se a vida das pessoas sem dinheiro fosse resumida à sua condição material. Mas o fato é que, num país como o nosso, em que tudo parece estar errado, falar em conservar soa, no mínimo, masoquista. A não ser que nossa compreensão de conservadorismo esteja fundamentada no sentido de tradição. Recorro a Roger Scruton em seu O que é conservadorismo:
“Nesse conceito, eu incluo todo tipo de costume, cerimônia e participação na vida institucional, em que tudo é feito não mecanicamente, mas por uma razão; e a razão não está naquilo que ainda acontecerá, mas no que já aconteceu. Não importa se a razão não pode ser dita pela pessoa que a obedece: as tradições são postas em prática e não planejadas; não obstante, são conscientes da falta de discurso.” (grifo meu)
Uma tradição não é uma mera invenção, é “uma forma de conhecimento social” construída através do tempo e da colaboração de vários indivíduos
Ou seja, por essa definição já é possível saber que mesmo a pessoa mais pobre, da sociedade mais pobre, tem coisas a preservar. Em minha família, por exemplo, sempre que estamos em casa os três, almoçamos juntos, à mesa. É uma pequena tradição nossa; e não importa se o que comemos é um sanduíche ou uma feijoada. Faz sentido para nós e é algo que queremos preservar pelo poder que isso tem para nossa convivência familiar, para nossa união. Com diz Scruton: “a tradição tem um duplo poder. Em primeiro lugar, ela confere razão à história e, portanto, coloca o passado diante de um objetivo atual [...]. Em segundo lugar, a tradição surge da própria organização da sociedade, não sendo apenas um mero aprisionamento do exercício do poder”. Uma tradição não é uma mera invenção, é “uma forma de conhecimento social” construída através do tempo e da colaboração de vários indivíduos.
Quando um progressista diz que não há o que preservar, tal afirmação é fruto de seu fanatismo pela novidade, pela ideia de que o mundo como está organizado é dominado por opressores, e só uma alteração profunda no modo como a sociedade é estruturada – e eles assumindo o poder, obviamente – resolveria o problema. Para um esquerdista, não há tradição alguma a ser preservada, pois todas elas apontam para a manutenção do status quo. Mesmo que ele, no fundo, tenha muitas coisas a preservar, ainda que não assuma.
O ponto é que uma tradição não significa imobilidade. Como disse o sempre citado nesta coluna quando o assunto é conservadorismo, João Camilo de Oliveira Torres, “somente podemos conservar reformando”. Ao contrário do revolucionário, que a tudo quer derrubar, e do reacionário, que “é capaz de construir um castelo medieval em Brasília, e andaria de armaduras ou calções de veludo em Copacabana, se isso fosse possível”, o conservador sabe que as reformas são necessárias, mas devem ser realizadas sem que modifiquem a ordem em suas estruturas essenciais; ou seja, “não quebrando a continuidade entre o passado, o presente e o futuro”. João Camilo arremata:
“O conservador, tendo o sentido das realidades históricas e da condição temporal do homem, sabendo que nenhuma época foi a Idade de Ouro − e nenhuma o será − e tendo muito claramente em vista que o tempo é continuidade homogênea não sendo possível separar épocas, todas compenetrando-se mutuamente, não ignora esta verdade elementar − somente são viáveis as reformas feitas respeitando o passado; do contrário, redundarão em completo malogro. Somente as reformas feitas em obediência ao princípio da continuidade conduzirão a resultados positivos − as inspiradas no espírito de descontinuidade e rupturas terminarão em desastres irreparáveis.”
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Pois bem, mas por que voltei a esse assunto? Não só porque é necessário sempre marcar a posição clara e distinta de um conservadorismo real, calcado numa – pois é – tradição; mas porque ao ver, essa semana, um episódio (o sexto) da última temporada da excepcional série The Crown, que por si só já é uma aula de tradição e de conservadorismo, uma cena me chamou a atenção, pois resume muitíssimo bem a razão e o profundo significado de uma tradição. Descreverei de modo superficial, mas recomendo fortemente que o leitor assista.
A rainha Elizabeth recebe o primeiro-ministro, à época o reformista Tony Blair, após sua vitoriosa intervenção, junto aos EUA, nos conflitos provocados por Slobodan Milošević no Kosovo, lhe parabeniza e diz: “você, neste momento, é de longe o líder mais aclamado no cenário mundial, com instintos notáveis. Então, levando isso em conta, não é segredo que a Coroa não esteve no melhor momento nos últimos anos. Muitas vezes, nossos valores e os do país não estiveram perfeitamente alinhados. Você, por outro lado, desde que assumiu o cargo, mostrou talento excepcional para interpretar o clima do país melhor que ninguém. Então não posso deixar de perguntar: o que você faria para mudar as coisas para nós? [...] Se estivesse no meu lugar”.
A pergunta surpreende Blair, mas, ao mesmo tempo, aproveitando essa aparente fragilidade da rainha – a princesa Diana havia morrido recentemente e isso afetara drasticamente a popularidade da monarquia, enquanto Blair, à época, era uma espécie de popstar –, decide propor algumas reformas não só na comunicação, mas no custo da monarquia; ele deseja reduzir gastos.
O conservador sabe que as reformas são necessárias, mas devem ser realizadas sem que modifiquem a ordem em suas estruturas essenciais
Daí que, numa reunião posterior, lhe apresenta uma proposta de reforma. E após iniciar propondo mudança na lei de primogenitura (filhas mais velhas são rebaixadas para que os filhos mais jovens assumam) e na transparência (com “um relatório anual de desempenho, bens, salários...”) e – aqui, a rainha já estava algo incomodada – uma reforma que permita que “membros da família real se casem com católicos”, ela objeta dizendo que abrir a concessão para que, na sucessão, seja possível um monarca católico seria o fim da Igreja Anglicana.
Mas o ápice de suas propostas tem a ver com, segundo ele, a “ostentação”; Blair passa a listar vários cargos e costumes que julga desnecessários, tais como “um grande falcoeiro hereditário”; uma “espalhadora de ervas da rainha e o lavador das mãos da soberana”; “um barqueiro real e 24 marujos, embora não haja uma barca real desde 1849”; um “guardião dos cisnes”. E, por fim, o que ele considera o mais anacrônico: os cerimoniais. Ele pergunta: “Precisamos de dez arautos? Incluindo o Rouge Dragon Pursuivant e o Maltravers Herald Extraordinary? Gold Stick in Waiting. Silver Stick in Waiting. O Gentleman Usher of the Sword of State?”
A rainha a tudo ouviu atentamente – ainda que, ao fim, um pouco estupefata –, retrucou algumas vezes e garantiu que ia pensar no assunto. E eis o que ela fez: em companhia de seu secretário particular, conversou com cada uma das pessoas que ocupavam esses cargos centenários, passados de geração e geração, pediu-lhes explicação sobre seu ofício e recebeu não só muitas histórias comoventes, mas a profunda relação daquelas pessoas com o seu ofício e um “sentimento de orgulho da tradição”.
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Depois, reuniu-se com a família e discutiu com eles tudo aquilo. E, após ouvir do filho Charles que não achava “errado conduzir a monarquia de uma forma mais racional e democrática”, ela respondeu: “Mas a monarquia não é racional. Nem democrática, nem lógica, nem justa. Ainda não aprendemos isso? As pessoas não querem ver no palácio real o que podem ter em casa. Quando vêm para uma investidura ou uma visita oficial, quando tocam em nós, querem a magia e o mistério. E o secreto, o excêntrico, o simbólico. E o transcendente. Querem sentir que entraram em outro mundo. Esse é o nosso dever. Elevar as pessoas e transportá-las para outro reino, não trazê-las à realidade e lembrá-las do que já têm”. E, em nova reunião com o primeiro-ministro, disse:
“Não sou contra a reforma. A questão é o que vale a pena preservar e onde traçar o limite [...]. Revisamos minuciosamente todos os gabinetes da minha casa, e o que descobrimos não foi uma extravagância indefensável, nem luxo, nem uma coleção de títulos ruritanos vazios, mas um conjunto extraordinário de conhecimentos preciosos, habilidades passadas de geração a geração, todas dentro da mesma família. E o veículo para essa continuidade é a Coroa. O feitiço que lançamos, e que fazemos há séculos, é nossa imutabilidade. A tradição é nossa força. O respeito por nossos antepassados e a preservação de gerações de sua sabedoria e experiência adquirida. Modernidade nem sempre é a resposta. Às vezes a antiguidade também é.”
E assunto encerrado. O que uma Tradição representa é muito mais profundo e valioso do que muitas vezes os indivíduos contemporâneos, voltados para o futuro, positivistas e dotados de um, como disse C.S. Lewis, “esnobismo cronológico” são capazes de compreender. Uma tradição comunica ordem, sacralidade, mistério e um senso de conexão e continuidade civilizacional que é absolutamente imprescindível para a construção e sobrevivência das sociedades. Aliás, um dos nossos grandes problemas, no Brasil, é termos perdido isso, termos substituído nossa tradição (um dia a tivemos?) por uma visão crítica, pejorativa e fatalista do país. Mas não custa termos bons exemplos e neles – no melhor do nosso passado – mirarmos o nosso futuro.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos