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“Ei, Brown, / Você acha que o problema acabou? / Pelo contrário, ele apenas começou / Não perceberam que agora se tornaram iguais / Se inverteram e também são marginais, mas / Terão que ser perseguidos e esclarecidos, / Tudo e todos, até o último indivíduo / Porém, se nós querermos que as coisas mudem, Ei, Brown qual será a nossa atitude?” (Racionais Mcʼs, Pânico na ZS)
Quando eu tinha por volta de 14 ou 15 anos (ou seja, fim dos anos 1980), estava com três ou quatro amigos, todos mais ou menos da mesma idade, de madrugada, indo a um bar perto de nossa casa, onde estava tendo um “samba”. Morava (e moro ainda) num bairro de periferia, na zona norte de São Paulo, capital. Havíamos acabado de sair do bar do seu Vicente, pai de um desses amigos. Sim, sou um sujeito precoce; amadureci bem cedo, inclusive por ter irmãos bem mais velhos que eu, e comecei a frequentar a noite paulistana e a tomar bebida alcoólica ainda na adolescência; tão cedo que esse ano fez 24 anos que não coloco uma gota de álcool na boca. Parei no ano 2000, em janeiro.
Voltando à história: no caminho, fomos abordados por dois policiais que passavam de viatura pelo local que, àquela hora, exceto por nossa presença, estava deserto. De maneira absolutamente truculenta, vociferaram o famigerado “mão pra cabeça!”, apontaram as armas para nós, nos jogaram contra a porta de uma farmácia que ficava na esquina e nos revistaram aos gritos e empurrões. O policial que me revistou, ao terminar, me empurrou e me mandou “ir” – aos gritos. Virei-me tranquilamente, disse “estou indo”, e continuei andando. De repente fui atingido por um soco em meu rosto, pelas costas, e levei um chute na bunda. Em seguida, a frase: “só podia ser preto!”
As pessoas são maltratadas só pelo fato de serem (aos olhos dos policiais) suspeitos. É como se já fossem culpadas até que consigam – se tiverem oportunidade, claro – provar o contrário
Que o leitor não pense que exagero, pois foi exatamente isso que ocorreu, e jamais esqueci. E essa foi só uma das inúmeras vezes em que fui abordado por policiais e tratado com truculência. Isso porque jamais fiz nada que não fosse estar na rua. Quantas e quantas vezes, indo para o (ou voltando do) trabalho com meu irmão, fomos abordados e tivemos de responder perguntas desconfiadas como “estão vindo de onde?”, “estão indo para onde?”, “estão com drogas no carro?” etc. Se você morava em São Paulo entre os anos 1980/90 e era um jovem de periferia, isso era absolutamente comum. Com o passar dos anos isso diminuiu sensivelmente, pois também passei a ficar menos exposto – namorando, saindo menos de madrugada, essas coisas. Mas lembro bem dessa época, e muitos amigos e parentes passaram pelo mesmo.
Não quero entrar aqui em psicologizações ou mesmo em análises históricas ou sociológicas que, no momento, me escapam. Há quem diga que a Polícia Militar, criada nos tempos da escravidão, segue, ainda, a mesma lógica de proteção ao patrimônio dos poderosos, ou que a desmilitarização se faz necessária para que o caráter punitivista e de combate ao crime seja substituído por uma perspectiva humanizada do trabalho policial. Toda essa discussão é importante, mas creio que tenhamos um problema anterior, mais básico: somos um país violentíssimo.
No ano passado foram registrados mais 46 mil assassinatos no Brasil e o país lidera o ranking de homicídios por números absolutos. Mata-se muito no Brasil, pelos mais variados motivos – e também sem motivo algum. E é bom lembrar: a letalidade policial representa – na média, pois há regiões em que esses dados nem sequer existem – pouco mais de 13% desse total. Ou seja, incluindo os confrontos com criminosos, para cada pessoa que a polícia mata, pelo menos outras sete são mortas por criminosos, colocadas em “micro-ondas” pelo crime organizado, por dívida com traficantes, no trânsito, nos bares, por ciúmes – a lista é enorme.
No entanto, é forçoso admitir que os incentivos para que alguém se torne policial – sobretudo policial militar – costumam atrair pessoas de personalidade violenta. Desde aquele sujeito que cresceu como alguém fraco, sofria bullying por isso e quer se vingar, até o valentão deslumbrado pelo poder que a farda lhe dá. Soma-se a isso a “cultura” policial, que não consegue desconstruir o estereótipo habitual do suspeito (local em que está, vestimenta, modos... e cor) nem a ideia de que a violência é a maneira mais evidente de demonstrar o poder outorgado pela farda. Sem contar o desprezo por aqueles que estão submetidos à sua autoridade.
As pessoas são maltratadas só pelo fato de serem (aos olhos dos policiais) suspeitos. É como se já fossem culpadas até que consigam – se tiverem oportunidade, claro – provar o contrário. E policiais tendem a considerar o cidadão periférico alguém menos digno, uma espécie de empecilho que ele precisa, a toda hora, tirar do caminho pra que o “cidadão de bem” viva em paz, sem ser incomodado. E é bastante evidente que eles são mais enérgicos e truculentos com aqueles que, segundo sua avaliação estereotípica, não podem prejudicá-los de alguma maneira. Quem não se lembra daquela cena, em Alphaville, bairro nobre de São Paulo, na qual um policial que, chegando para atender uma denúncia de violência doméstica aberta pela esposa, ficou sendo pacientemente xingado, inerte, no portão da casa, pelo acusado (o caso ocorreu em maio de 2020 e foi noticiado pela imprensa)? Num bairro de periferia a situação seria completamente diferente. Será que Alberto Freitas, assassinado por seguranças numa loja do Carrefour, em Porto Alegre, em 2020, teria sido morto se fosse um homem branco cuja aparência denotasse uma posição social potencialmente prejudicial aos agentes do supermercado?
Sim, há muita gente sem caráter, enganadora, mentirosa, violenta, sem escrúpulos, que pratica crimes (e violências) por pura maldade. Mas como diferenciar esses de uma pessoa comum, um jovem de periferia comum, trabalhador, cujo estereótipo não difere muito daquele que escolhe – sim, escolhe – o crime? O chamado tirocínio policial não devia servir para isso? Sim, mas, infelizmente, não serve, e os ditos suspeitos são submetidos a humilhações para que saibam o seu “lugar”. Lembram do caso do ciclista que foi abordado por policiais militares, com armas apontadas e truculência, num parque de Cidade Ocidental, no entorno do Distrito Federal?
Há uma cultura que carrega de tensões e contradições a relação da polícia com a população periférica. Admitir isso é o primeiro passo para endereçar parte importante do problema
Não digo isso para fazer acusações gratuitas ou infundadas contra a Polícia Militar. Sei que policiais também trabalham em condições extremamente adversas, com níveis de estresse altíssimos, pouco auxiliados psicologicamente pela corporação, com salários baixos, tendo de lidar, diariamente, com esse nível absurdo de violência, em situações de vulnerabilidade constante, tendo de esconder sua profissão a fim de não expor suas famílias à potencial ação de criminosos. Tudo isso é compreensível. Mas o histórico também nos mostra, inequivocamente, que há, sim, uma cultura carregada de tensões e contradições na relação da polícia com a população periférica. Admitir isso é o primeiro passo para endereçar parte importante do problema.
Como mudar isso? Não sei. Só sei que não basta acusar racismo. Esse é o caminho mais fácil para quem não quer encarar as tais tensões e contradições. Que prefere investir na fácil e frágil dicotomia opressor vs. oprimido, negando as nuances. Nem sempre o pobre é a vítima, nem todo policial é malvado. No fim, creio que o problema seja, fundamentalmente, de educação. Somos uma sociedade que ama o estetismo, que ama fingir normalidade para não ter de encarar os problemas. Que prefere jogar a realidade para debaixo do tapete do que encará-la. E nossos intelectuais preferem colocar suas ideologias acima da realidade a fim de exaltarem utopias.
Tem de haver educação, bons incentivos, famílias estáveis, liberdade, uma amplitude de boas oportunidades, trabalho duro e paciência a fim de que o país entre num eixo virtuoso de desenvolvimento. Mas também tem de haver controle e punição rigorosos contra crimes de toda ordem. Não adianta massacrar o ladrãozinho enquanto os ricos são beneficiados pelas vantagens e pelo poder que o dinheiro lhes oferece. Nosso problema é profundo, gravíssimo, que não deve ser tratado com ideologias por gente que não tem compromisso com a realidade. Tampouco por gente de mentalidade escravocrata, sedenta por punitivismo barato, que menospreza os mais pobres e os considera um mal social (aquele pregado pelas ideologias eugenistas que vigoraram no país, como política de Estado, até pouquíssimo tempo) a ser eliminado.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos