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“Tem piada de todos os tipos, de pum e de trocadilho, ácida e bobinha. Tem piada de mau gosto? Tem também. Tem piada agressiva? Opa. Mas aí é só não assistir.” (Fábio Porchat, no Twitter, em 17/05/2023)
“Acho triste que alguns comediantes achem que o 'politicamente correto' é inimigo deles, e não o racismo, machismo, homofobia.” (Fábio Porchat, no Roda Viva, em 21/12/2020)
“Fábio, você é o cara que, em 2017, dizia que era contra o politicamente correto, e quando isso começou a virar mainstream, ó você aí falando que isso tá certo, olha você aí, endossando o discurso; e foi esse discurso […] que condenou o Léo [Lins].” (Danilo Gentili, no Youtube, em 18/05/2023)
Quando eu era moleque, tinha uma foto grande, emoldurada, do Rocky Balboa no meu quarto. A cada filme daqueles atores ruins, mas fortões, de Hollywood, dos anos 1980, a gente saía na rua querendo imitá-los – claro, dentro dos limites da imaginação. Treinávamos boxe, brincávamos de Rambo, enaltecíamos a crueldade de Chuck Norris e seus personagens – que, sempre, depois vulnerabilizar ao máximo os seus inimigos, largava a arma, dava-lhes uns sopapos de kung-fu, depois ainda lhes atirava com uma bazuca nas fuças. Curiosamente, esse mimetismo desapareceu já na adolescência, e, na vida adulta, ficamos sabendo que muito daquilo era autoadulação americana. Mas foi bom enquanto durou.
Quando assistíamos a Corra que a polícia vem aí, Apertem o cintos, o piloto sumiu, Loucademia de polícia; ou mesmo aos sexualizados Porkyʼs, O último americano virgem e American Pie, levávamos todos aqueles estereótipos na brincadeira – com aquele bullyingzinho de apelidar um ou outro com o nome dos personagens mais caricatos. Assim como fazíamos com os programas de TV, como Viva o Gordo, Chico Anysio Show, TV Pirata, Casseta e Planeta; e quando líamos as revistas Mad, Chiclete com Banana, ou mesmos a pasquinesca Bundas. Com as músicas não era diferente; desde Genival Lacerda, passando pela Blitz e Mamonas Assassinas. Tudo isso fazia parte daquelas coisas que não levávamos a sério, pois a vida no Brasil sempre foi séria demais. Tudo isso fazia rir num país ainda sob uma ditadura militar – que censurava muita coisa, mas deixava passar muita coisa também.
É para isso que existe o humor, seja ele de que natureza for: para não ser levado a sério, para divertir – às vezes, às custas do outro. Lembro-me de, nos tempos de escola, dizermos àqueles que, de repente, recebiam um apelido: “nem ligue, pois, se você reclamar, aí que o negócio pega mesmo”. E até os mais sensíveis eram obrigados, pelo “fato social” – para usar o termo de Durkheim – ao qual estavam submetidos, a se resignar. Levar na brincadeira era a melhor maneira de lidar com as coisas que nos constrangiam. Sem fazer juízo de valor, as coisas eram assim e, em grande medida, continuam sendo – como professor do ensino básico, posso atestar. Mudar uma cultura tão arraigada, num país tão carnavalesco como o Brasil, não é tarefa para amadores, tampouco para reformadores sociais. Há coisas que só o tempo muda, com educação e informação; nunca, jamais, com imposição, pois a imposição gera resistência. E o cuidado para com os mais vulneráveis não deve expô-los a mais constrangimento.
O fato é que o humor, a sátira, a comédia, o deboche sempre foram iconoclastas, às vezes propositadamente agressivos. Mas, dentro dos contextos expostos acima – cinema, teatro, música, e até na zoeira de criança – sempre ficção. As pessoas, na vida real, não são aquilo que a comédia delas muitas vezes representa. O humor é quase sempre um retrato escandaloso da realidade, de nossas limitações, de nossas idiossincrasias, de nossas certezas e de nossos preconceitos. Está sempre colocando a realidade em suspenso para que, ao aterrizarmos na vida, esta se torne mais suportável. Como diz Andre Breton, no (exaustivamente citado nos últimos tempos) prefácio à sua Antologia do Humor Negro (cuja conotação racial é bastante discutível): “o humor negro é o oposto da jovialidade, da sabedoria ou do sarcasmo. É parcialmente macabro, parcialmente irônico, sempre um insurreto absurdo do espírito e inimigo mortal do sentimentalismo; é, além disso, uma revolta superior da mente”. Não se leva a sério o humor, caso contrário nos tornamos alvos dele.
O fato é que o humor, a sátira, a comédia, o deboche sempre foram iconoclastas, às vezes propositadamente agressivos. Mas sempre ficção. As pessoas, na vida real, não são aquilo que a comédia delas muitas vezes representa.
O comediante, o humorista, tem o salvo conduto do Bobo da Corte, que não era levado a sério nem pelo rei. Os comediógrafos da antiguidade não tinham o estranho critério inventado por progressistas modernos, de que o humor, a piada, só pode ser direcionada aos poderosos, de que não se pode fazer piada com quem já sofre na vida real. O célebre Aristófanes ridicularizou Sócrates – que estava longe de ser poderoso, mas que era, para Platão, o homem “mais justo de seu tempo” – em sua peça As nuvens. Inclusive Platão, na Apologia, põe na boca do mestre uma defesa da sátira feita pelo prolífico humorista. Em seu desenvolvimento, “a comédia”, como diz Margot Berthold em História Mundial do Teatro, com a morte de Aristófanes, que tinha um humor mais político, “agora retirava-se das alturas da sátira política para o menos arriscado campo da vida cotidiana. Em vez de deuses, generais, filósofos e chefes de governo, ela satirizava pequenos funcionários gabolas, cidadãos bem de vida, peixeiros, cortesãs famosas e alcoviteiros”.
Curiosa e contraditoriamente, o humorista brasileiro Gregório Duvivier, que, em 2014, afirmou: “Tem coisas de que não vale a pena rir. Das minorias, por exemplo. Ou rir de um sofrimento real das pessoas. Não tem graça rir dessas coisas. Tem graça você rir do poder, você rir do opressor, não do oprimido”, em 2017 escreveu – ao que tudo indica, feliz da vida – o prefácio da obra Monty Python. Uma Biografia Escrita por Monty Python, da imortal, engraçadíssima e politicamente incorreta trupe britânica, dizendo, por exemplo: “A vida de Brian bate forte na igreja e seus dogmas, mas o filme tem muitos alvos: ri dos partidos políticos, dos movimentos sociais, dos anarquistas, dos poderosos. Ninguém escapa.”. Vai entender. Vale ressaltar que, em 2016, imolou-se metafórica, mas publicamente, por ter feito piada com uma mulher. O nome disso é hipocrisia.
Breton falou em sentimentalismo. Pois nunca é demais citar Theodore Dalrymple e seu Podres de mimados, dizendo que uma das coisas mais perversas do sentimentalismo é a sinalização de virtude, é “seu caráter público. Não mais basta derramar uma lágrima em particular, longe da vista alheia, pela morte da Pequena Neli; é necessário fazê-lo, ou seu equivalente moderno, à plena visão do público”. E vai além: “nesse mundo, aquilo que é feito ou que acontece em privado não é feito ou não aconteceu absolutamente, ao menos não no sentido mais pleno possível. Não é real no sentido de que um reality show é real”. E isso reflete o que vemos atualmente nas redes sociais:
“A expressão pública do sentimentalismo tem consequências importantes. Em primeiro lugar, ela demanda uma resposta daqueles que a testemunham. Essa resposta deve, de maneira geral, ser simpática e afirmativa, a menos que a testemunha esteja preparada para correr o risco de um confronto com a pessoa sentimental e ser acusada de dureza de coração ou de pura e simples crueldade. Há, portanto, algo coercivo ou intimidador em exibições públicas de sentimentalismo. Tome parte ou, no mínimo, evite criticar. Uma pressão inflacionária também age sobre essas exibições. Não há muito sentido em fazer algo em público se, de fato, ninguém repara. Isso significa que exibições emotivas cada vez mais extravagantes se tornam necessárias, se se pretende que elas compitam com outras e sejam notadas.”
A onda de indignação seletiva e, em última instância, o apelo à censura, são frutos da mentalidade sentimentalista de nossos tempos, fomentado por quem julga ser possível corrigir o mundo de suas contradições – baseados num moralismo de fancaria – com autoritarismo. Nesse ponto, creio piamente que as mudanças na sociedade devem partir da própria sociedade, por uma demanda da sociedade e não de grupos organizados, nem por motivos particulares ou mesmo por imposições do sentimento subjetivo. A sociedade não é estúpida, sabe o que a fere de fato – a não ser que a injustiça seja muito evidente e generalizada.
Isso não significa que eu, como negro, não tenha sofrido ou não sofra com preconceito ou mesmo racismo baseado nesses estereótipos que a ficção utiliza e, muitas vezes, reforça. Mas a escolha por me deixar atingir por isso é, em tese, minha. No ambiente público, naquilo que me atinge pessoalmente, luto contra isso, sempre lutei e continuarei lutando. Entretanto, não penso que a representação ficcional de preconceitos, daquilo que desnuda nossa natureza imperfeita e, muitas vezes, cruel, deva ser coibida por lei. Se não me faz bem, não consumo.