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“O horrível e o belo estão sempre contidos um no outro. Em todo o seu absurdo, este prodigioso paradoxo alimenta a própria vida, e, na arte, cria aquela unidade ao mesmo tempo harmônica e dramática”. (Andrei Tarkóvski)
À David Lynch, mestre absoluto.
Talvez o cinema seja, mesmo, a arte mais completa de todas. Unindo em si todas as demais seis artes – pintura, escultura, música, literatura, dança e arquitetura –, a chamada Sétima Arte tem o poder de nos provocar experiências únicas e marcantes. E eu, como alguém que ama cinema – como o leitor pode perceber, pela recorrência do tema em minha coluna –, sempre fico feliz quando sou surpreendido por obras que me fazem refletir.
Tomei contato com o diretor Sean Baker recentemente, por indicação de um amigo do trabalho com quem costumo trocar ideias e dicas sobre cinema. Ele me disse: “assista a Projeto Flórida”. O nome é pouco sugestivo e a capa do filme, de fato, não promete nada. A única coisa que eu tinha era a recomendação efusiva de meu amigo, que não é pouca coisa, mas, em se tratando de arte, o nível de subjetividade não pode ser desprezado; o que é bom para uns pode ser horrível para outros. Pois o que aconteceu, na verdade, é que eu, inesperadamente, levei uma tonelada de realidade na cabeça como há muito não ocorria ao assistir a um filme.
Sem militar, sem apelar ao sentimentalismo, sem fazer politicagem ou sinalizar virtude, Baker escreve e dirige histórias que se parecem documentários, tamanha a realidade que emprega nas personagens e situações
Projeto Flórida, de 2017, retrata um período na vida de Moonee (Brooklynn Prince), de 6 anos, e sua mãe, Halley (Bria Vinaite), uma jovem ex-stripper que tenta se manter sem emprego fixo, morando com a filha num hotel barato de nome pomposo, Magic Castle Inn & Suites, no subúrbio de Orlando, na Flórida, próximo da Disney World. O contraste é gritante. Tudo ali respira a magia do universo Disney, mas elas vivem numa pobreza que sufoca. Halley tenta, de todo modo, com pequenos golpes e subempregos, dar conta das coisas, enquanto Moonee, em toda inocência infantil, se diverte – e muito! – com seus amigos Scooty e Jancey, nos arredores do hotel, em meio a todo aquele clima de conto de fadas, embora um tanto maculado por imóveis abandonados, desbotados das cores vibrantes e aspecto melancólico. Vinaite – que, curiosamente, nunca tinha atuado e que Baker conheceu pelo Instagram, após ver os vídeos que ela fazia sobre o seu dia a dia – e Prince, como mãe e filha, entregam uma atuação envolvente e emocionante, amparadas pelo mestre Willem Dafoe, como Bobby Hicks, dono do hotel e um homem de bom coração que, na maior parte do tempo, está auxiliando as duas. Sean Baker escreveu, dirigiu e editou o filme, que é surpreendente e com uma cena final – filmada com um iPhone, diga-se – inesquecível.
Em 2024, Sean Baker simplesmente conquistou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com seu mais recente filme, Anora, que, para mim, o consolida como um dos maiores diretores de sua geração. Anora (Mikey Madison), que prefere ser chamada de Ani, é uma jovem stripper, de ascendência russa, que vive em Nova York e trabalha numa casa noturna em Brighton Beach. Por sua fluência em russo – que aprendeu com sua avó –, o dono da casa a coloca em contato com um cliente peculiar: o jovem Ivan (Mark Eydelshteyn), filho de um oligarca russo sedento por diversão na América. Ivan é um simpático jovem rico, que esbanja o dinheiro da família com os amigos e acaba por oferecer a Ani, por quem se afeiçoa, um trabalho como acompanhante durante uma semana. Ela, vendo nisso uma oportunidade de ouro, cobra um bom dinheiro e ele aceita. O problema é que os dois acabam se envolvendo de verdade e, obviamente, criando uma confusão de proporções épicas com a família de Ivan. Brigas, perseguições, situações pitorescas e divertidíssimas nos levam, mais uma vez, a um desfecho arrebatador, construído de maneira habilíssima por Baker, que novamente escreveu, dirigiu e editou o filme.
Pois bem. Após ver Anora, que me deixou completamente maravilhado, decidi ver os outros filmes de Baker, começando pelos mais conhecidos. Mesmo sem tê-lo ainda feito por completo, assistir a Tangerine, seu longa de 2015 – uma história inusitada filmada utilizando três iPhones 5S –, de baixíssimo orçamento, escrito, dirigido, editado e fotografado por ele, trouxe-me a esse artigo. Tangerine se passa na véspera de Natal e acompanha duas mulheres trans e garotas de programa, Sin-Dee Rella (Kitana Kiki Rodriguez) e Alexandra (Mya Taylor), em Hollywood, na Califórnia, numa busca pelo namorado e cafetão de Sin-Dee após ela descobrir que ele a traíra, enquanto ela estava na cadeia, com uma mulher de verdade. Sim, caro leitor, a história não parece muito interessante, sobretudo para os que têm pendores moralistas. Mas creia, é. Trata-se de uma obra, de novo, divertida e surpreendente, que nos traz uma história totalmente calcada na realidade. Realidade de pessoas que existem e não devem ser simplesmente ignoradas pela arte. Como diz Tarkóvski na epígrafe, “o horrível e o belo estão sempre contidos um no outro”. E a prostituição, com todos os seus desdobramentos, faz parte disso.
Assim como fez depois em Projeto Flórida, Sean Baker queria filmar numa região inusitada de um local bastante conhecido, e utilizou aquela parte de Hollywood mais periférica e longe do famoso letreiro com o nome da cinematográfica cidade. Baker e Chris Bergoch, seu costumeiro parceiro nos roteiros, conheceram Mya Taylor no Centro LGBT de Los Angeles. Taylor, que nunca foi prostituta, obviamente conhecia muitas das que trabalhavam nas ruas que Baker e Bergoch queriam retratar em seu filme. Os três se encontraram algumas vezes para conhecer melhor a história de Taylor, e, num desses encontros, ela trouxe consigo sua amiga Kitana Kiki Rodriguez, que também nunca havia atuado. Baker viu na hora que havia encontrado as protagonistas do filme, bem como seu enredo principal, quando Rodriguez contou a história de uma mulher trans que perseguiu a pessoa com quem seu homem a havia traído.
Assim como Projeto Flórida e Anora, Tangerine é uma comédia dramática, e Baker é habilidoso em mostrar situações de extrema complexidade – desolação, por vezes – com uma sutileza que diverte e desconcerta ao mesmo tempo, levando seus filmes a desfechos que são verdadeiras aulas de sensibilidade e arte. Na verdade, o que Baker aborda em seus filmes é a realidade de marginalização em que vivem, pelo menos nos filmes que vi até agora, pessoas que transitam nesse universo da prostituição, e o faz de uma perspectiva absolutamente nova – pelo menos para mim. Sem militar, sem apelar ao sentimentalismo, sem fazer politicagem ou sinalizar virtude, ele escreve e dirige histórias que se parecem documentários, tamanha a realidade que emprega nas personagens e situações.
Numa entrevista, ao site da revista Elle, sobre um de seus filmes – Red Rocket, de 2021, que conta a história de um ator pornô vigarista – a que ainda não assisti, Sean Baker afirma:
“Procuro contar histórias que sejam universais, que não sejam pregações, mas que explorem o assunto de uma maneira diferente da que um público mais geral está acostumado a ver. Porque, novamente, muita representação negativa – mesmo que, às vezes, de forma subconsciente – foi feita pela indústria, e o fazem porque foi assim que sempre vimos […]. Então, na verdade, trata-se de usar esses filmes para eliminar o estigma. Desbastando lentamente, um filme de cada vez, contando histórias que humanizam as trabalhadoras do sexo e que, esperançosamente, permitem que o público tenha empatia por elas.”
Os personagens de Baker são, acima de qualquer coisa, profundamente humanos, como eu e você
E, voltando a Tarkóvski, quando este diz que a arte é o anseio pelo ideal, ele não está circunscrevendo a arte somente a aspectos moralmente superiores. Ele afirma:
“Quando falo do anseio pelo belo, ideal como objetivo fundamental da arte, que nasce de uma ânsia por esse ideal, não estou absolutamente sugerindo que a arte deva esquivar-se da ʻsujeiraʼ do mundo. Pelo contrário! A imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra, o menor no lugar do maior. Para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição... não se pode materializar o infinito, mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem.”
E creio que Sean Baker, assim como Lars von Trier, David Lynch (que nos deixou hoje, dia da publicação deste artigo), Robert Bresson e o próprio Andrei Tarkóvski, fazem isso de forma magistral. O que fica muito claro nos filmes de Baker vistos por mim não é uma defesa ou glamourização da prostituição, mas uma reflexão adulta, séria, de modo por vezes irreverente, de realidades contraditórias, sofridas, de pessoas que estão à margem da sociedade e cujas histórias podem nos levar a pensar, por exemplo, sobre compaixão e a tão negligenciada caridade cristã. Os personagens de Baker são, acima de qualquer coisa, profundamente humanos, como eu e você.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos