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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

"País do futuro"

Onde está o Brasil em que Stefan Zweig viveu?

Stefan Zweig Brasil país do futuro
Stefan Zweig veio para o Brasil fugindo do nazismo e se apaixonou pelo país. (Foto: Imagem criada utilizando ChatGPT/Gazeta do Povo)

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“O Brasil parece-me um dos países mais modelares e, por isso, uns dos mais dignos de estima. É um país que odeia a guerra e, ainda mais, que quase não a conhece.” (Stefan Zweig)

Há duas semanas escrevi um artigo, aqui, nesta Gazeta do Povo, sobre a desfavelização do Brasil. Na semana seguinte, li Brasil, país do futuro, do escritor austríaco Stefan Zweig – um dos grandes autores europeus da primeira metade do século 20 –, um clássico dos estudos sobre o nosso tão combalido país, que nos traz uma visão que foi, desde o seu lançamento, celebrada por muitos e criticada por tantos outros, uma vez que nos mostra um Brasil que parece ter saído de um conto de fadas.

Stefan Zweig nasceu em 28 de novembro de 1881, em Viena, então capital do Império Austro-Húngaro, numa família abastada. Seu pai, Moritz Zweig, era um bem-sucedido industrial, que fez fortuna trabalhando com tecelagem. Sua mãe, Ida Brettauer, era oriunda de uma família de banqueiros de origem italiana. Todos tinham ascendência judaica. Estudou Filosofia e História da Literatura nas universidades de Viena e Berlim, obtendo o doutorado em Filosofia em 1904, com uma tese sobre o escritor francês Hippolyte Taine. Viveu uma vida dedicada à literatura; escreveu contos, novelas, peças teatrais, ensaios e biografias literárias, tendo se notabilizado por sua prosa elegante e pela análise psicológica dos personagens.

Com a ascensão do nazismo na Alemanha, Zweig se exila na Inglaterra, em 1934. Em 1939, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, partiu para os Estados Unidos em busca de refúgio e estabilidade. Durante esse período, realizou uma série de viagens pela América do Sul e, em 1936, visitou o Brasil pela primeira vez. A experiência o impressionou profundamente: encantou-se com o clima, a diversidade cultural e o espírito acolhedor do país, que passou a simbolizar, para ele, uma espécie de esperança em meio ao caos europeu. Retorna em 1940, depois, definitivamente, em agosto de 1941, fixando residência em Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro, acompanhado de sua segunda esposa, Lotte Altmann, que era sua secretária desde o seu primeiro casamento.

“Brasil, país do futuro” nos traz uma visão celebrada por muitos e criticada por tantos outros, uma vez que nos mostra um Brasil que parece ter saído de um conto de fadas

Pouco tempo depois de sua chegada definitiva ao Brasil, reuniu suas anotações e publicou Brasil, país do futuro, com suas impressões sobre a terra que o acolhera em seu exílio. Curiosamente, o livro pode ser considerado tanto um olhar romantizado sobre o Brasil como uma elegia à Europa, à época dilacerada por uma guerra. E foi exatamente a diversidade brasileira que encantou Zweig; por isso, logo na introdução, ele diz, sobre os motivos que o levaram a escrever o livro:

“Do grande número de aspectos, quero salientar principalmente um que me parece o de maior atualidade e coloca hoje o Brasil numa posição especial entre todas as nações do mundo no que respeita ao espírito e à moral. Esse problema central que se impõe a toda geração e, portanto, também à nossa, é a resposta à mais simples e, apesar disso, a mais necessária pergunta: como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões? É o problema que imperativamente sempre se apresenta a toda comunidade, a toda nação. A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez; é para gratamente testemunhar isso que escrevi este livro.”

Note, caro leitor, é a visão de um europeu que acabara de fugir de uma guerra provocada, sobretudo, por motivos raciais. Zweig era judeu. Quando chega ao Brasil e vê “as crianças que apresentam todos os matizes de cor da pele humana voltarem da escola de braço dado”, e nota que “essa união de corpo e de alma se estende até as classes mais elevadas, nas academias e nos empregos públicos”, fica encantado; e a alcunha de “país do futuro” carrega sua esperança de que o mundo, sobretudo a Europa, pudesse se livrar dos pendores racialistas que ela própria inventara, condenando o mundo sob a justificativa pseudocientífica.

E, apesar de a escravidão colonial brasileira ter passado por um processo de racialização tardia – ou seja, o que começou por motivos meramente econômicos ganhou justificação racial a partir do fim do século 19 –, o que Zweig encontra aqui no início dos anos 1940 é algo que ele jamais vira na Europa, com exceção de Portugal, uma vez que o português “é uma mistura proveniente de antepassados ibéricos, romanos, góticos, fenícios, judeus e mouros”. A miscigenação, conforme já dissera anteriormente Gilberto Freyre, é o grande trunfo do Brasil perante o mundo, é o que tornava o Brasil um país promissor diante da quimera europeia, de “quererem criar seres humanos ʻpurosʼ, quanto à raça, como cavalos de corrida ou cães de exposição”.

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Mas o que mais me impressionou no relato de Zweig foi sua visão sobre o povo brasileiro. O que ele descreve parece surreal a nós, e esse foi o principal motivo das críticas que sofreu, acusado de romantizar o país, de ser superficial e até de ter sido cooptado pelo governo ditatorial de Getúlio Vargas a fim de construir uma imagem edulcorada do Brasil. Um trecho específico pode nos dar a dimensão de sua experiência (ou seria delírio?) – a citação longa, mas imprescindível:

“O brasileiro é um indivíduo calmo, pensativo. e sentimental, às vezes até com um ligeiro laivo de melancolia, a qual já Anchieta em 1585 e o Padre Cardim julgaram sentir na atmosfera, quando qualificaram esta nova terra de ʻdesleixada e remissa e algo melancólicaʼ. Mesmo no trato exterior as maneiras são visivelmente moderadas. É raro ouvir alguém falar alto ou dirigir-se a outra pessoa, encolerizado, aos gritos. E precisamente onde se reúnem massas humanas sente-se mais claramente essa ausência de vozearia, o que ao estrangeiro causa admiração. Numa grande festa popular, como na Penha, ou numa travessia de barca para uma espécie de festa religiosa de arraial na Ilha de Paquetá, nas quais num pequeno espaço se acham milhares de pessoas, e entre estas muitas crianças, não ouvimos algazarra e gritos de júbilo, não vemos os indivíduos incitarem-se mutuamente para uma alegria turbulenta. Mesmo quando se divertem em massas, as pessoas aqui se conservam calmas e discretas, e essa ausência de tudo o que é forte e brutal dá à sua alegria suave um delicioso encanto. Fazer barulho, gritar, fazer algazarra e dançar desenfreadamente são no Brasil prazeres tão contrários aos costumes que, por assim dizer, se reservam para os quatro dias de carnaval, que servem de válvula de segurança para todos os instintos represados; mas, mesmo nesses quatro dias de alegria aparentemente infrene, numa massa de um milhão de pessoas como que picadas por uma tarântula, não se observam excessos, inconveniências e baixezas; todo estrangeiro e até qualquer senhora podem calmamente atrever-se a andar nas ruas cheias de bulício e de ruído. O brasileiro conserva sempre sua natural delicadeza e boa índole. As mais diversas classes tratam-se mutuamente com uma polidez e cordialidade que a nós pessoas da Europa, tão brutalizada nos últimos anos, sempre causam admiração.”

Inacreditável, não? Que Brasil é esse, que Stefan Zweig viu? Quem são essas pessoas? Tal realidade não parece absurda para nós? Se à época ele já recebeu críticas, imagine agora. A pobreza era uma realidade no Brasil; o Rio paradisíaco onde ele viveu já era cercado por favelas e miséria, e o pior, ele certamente não lera os grandes clássicos sobre o Brasil, Casa-grande & Senzala e Raízes do Brasil, lançados havia não muito tempo, e que faziam uma análise sobre o Brasil e os brasileiros  que chegavam a conclusões muito diferentes.

O que mais me impressionou no relato de Zweig foi sua visão sobre o povo brasileiro. O que ele descreve parece surreal a nós, e esse foi o principal motivo das críticas que sofreu

Gilberto Freyre, apesar de celebrar a miscigenação, jamais negou os problemas do país; e a tese de Sérgio Buarque de Holanda sobre o homem cordial caminhava em sentido inverso. Segundo este, a polidez do brasileiro é, na verdade, uma coisa superficial, “epidérmica do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções”. O brasileiro seria, na verdade, um ser puramente impulsivo (de onde vem o “cordial”, cordis, “coração” em latim).

O que Zweig fala das favelas, então, parece ainda mais descolado da realidade – e foi isso que me trouxe a este artigo, impressionado pela calamidade que passa o Rio de Janeiro e com o resultado da megaoperação policial ocorrida ontem, 29 de outubro, em que morreram mais de 100 pessoas. A favela que o austríaco viu é muito diferente do que vemos atualmente:

“Às vezes quando, curioso, ia eu ver as ʻfavelasʼ, essas pitorescas zonas de pretos que ocupam as encostas dos morros situados em plena cidade do Rio de Janeiro, sentia-me intranquilo e tinha um mau pressentimento, pois afinal de contas eu ia ali por curiosidade, para ver um nível mais baixo de vida e observar, em casebres de bambu e barro e cujo interior está exposto aos olhares de todos os transeuntes, indivíduos no estado mais primitivo e, com isso, indevidamente, espiar para dentro de suas casas e indagar da sua vida mais íntima. No começo, de fato, eu constantemente esperava, como num bairro de trabalhadores proletários na Europa, receber um olhar raivoso ou uma palavra injuriosa pelas costas. Mas, para esses indivíduos de boa fé, um estrangeiro que se dá ao trabalho de subir aqueles morros é um hóspede bem-vindo e quase um amigo; o preto que está carregando água e se encontra comigo, ri, deixando ver sua dentadura reluzente, e ajuda-me a subir os degraus escorregadios de barro; as mulheres que dão de mamar aos filhos, olham-me com afabilidade e despreocupação.”

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E, na descrição específica que faz do Rio, curiosamente lamenta:

“Algumas das coisas singulares, que tornam o Rio tão colorido e pitoresco, já se acham ameaçadas de desaparecer. Sobretudo as ʻfavelasʼ, as zonas pobres em plena cidade, será que ainda as veremos daqui a alguns anos? Os brasileiros não gostam de falar dessas ʻfavelasʼ; no ponto de vista social e no ponto de vista higiênico, constituem elas um atraso, numa cidade muito limpa e que, por um serviço modelar de higiene, em alguns anos se libertou inteiramente da febre amarela, que outrora nela era endêmica. Mas as ʻfavelasʼ apresentam um colorido especial no meio dessa figura caleidoscópica, e ao menos umas dessas estrelinhas do mosaico deveria ser conservada no quadro da cidade, porque elas representam um fragmento da natureza humana primitiva no meio da civilização.”

É tragicômico ler isso diante da situação atual. Entretanto, se ponderarmos o que ele escreveu e levarmos em consideração sua sinceridade, é possível tirarmos algumas lições:

Primeiro, que o Brasil que ele encontrou poderia não ser exatamente como ele descreveu, uma vez que ele já estava mergulhado no processo depressivo que o levou ao suicídio meses depois de chegar ao país (ele e sua esposa se suicidaram em 22 de fevereiro de 1942, em sua casa, em Petrópolis) e seu estado emocional pode ter afetado sua perspicácia de escritor, como aquele que observa de forma acurada a realidade. Ele, obviamente, comparara a situação da Europa como que encontrou no Brasil, e a ordem, paradoxalmente estabelecida pela ditadura Vargas, o deixara impressionado.

Penso que o Brasil que Zweig conheceu, em alguma medida, existiu realmente. Não era o paraíso que ele descreveu, mas também não era o inferno em que vivemos atualmente

Segundo, que, se o leitor for, como eu, nascido antes dos anos 1980, que tenha vivido ou tenha pais que viveram na época em que Zweig viveu no Brasil, é forçoso admitir que o Brasil era, de fato, outro. A começar que não tínhamos as facções criminosas que hoje dominam o país. O Comando Vermelho surgiu no fim dos anos 1970; o PCC, no início dos anos 1990. As pessoas eram, sim, mais educadas. Apesar de todos os problemas sociais, de todas as mazelas, que só se agravaram, tudo parecia mais ordeiro em todos os aspectos.

Por isso penso que o Brasil que Stefan Zweig conheceu, em alguma medida, existiu realmente. Não era o paraíso que ele descreveu, mas também não era o inferno em que vivemos atualmente. E digo mais: se existiu, pode voltar a existir. Só precisamos aprender como resgatá-lo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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