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“‘Muito bem’ – pensei – ‘o conhecimento torna uma criança inapta para a escravidão’. Instintivamente, assenti à proposição; e, a partir desse momento, entendi o caminho direto da escravidão para a liberdade.” (Frederick Douglass)
Finalmente assisti ao tão aguardado filme Doutor Gama – já disponível na Globoplay –, dirigido por Jeferson De. Há semanas, nas minhas redes sociais, vinha recebendo mensagens insistentes com a pergunta: “está ansioso pelo filme?”, ao que sempre respondia que ansiedade só por filmes de Terrence Malick e dos Irmãos Coen. Na verdade, tinha ressalvas – não só pelo que os cineastas americanos têm feito com suas personagens históricas (falei sobre isso aqui), utilizando-as como meros veículos de suas ideologias, bem como pelo pouco apreço que tenho pelo cinema nacional (my bad). Mas confesso que me surpreendi positivamente com Doutor Gama.
Não só porque Jeferson De escapou das armadilhas ideológicas, e não tentou transformar o imenso rábula e abolicionista Luiz Gama num militante ao estilo Black Lives Matter, mas porque deu vida ao republicano como ele realmente foi: um defensor da liberdade e das leis. Mais do que isso: De teve a ousadia de mostrar, numa cena, Gama rechaçando um movimento abolicionista armado e revolucionário que o queria defender, dizendo: “eu fico com a lei”. E não é mentira, pois Luiz Gama, mesmo sendo um abolicionista e republicano radical, era, sobretudo, à exceção de um arroubo e outro, um prudente. Deixo que ele mesmo diga, em artigo de 1.º de dezembro de 1867: “Não se amedrontem, porém, os devotos adoradores da benigna paz, com a nossa revolução; porque na cruzada santa em que batalhamos é artilharia a palavra, metralha o pensamento e serve de gládio a pena”. Ou quando, acusado de estar a serviço da Internacional, asseverou, com veemência, no Correio Paulistano, em 1871:
“Sei que algumas pessoas dessa cidade, aproveitando caridosamente o ensejo do movimento acadêmico, mandaram dizer para a Corte e para o interior da província, que isto por aqui, ao peso de enormes calamidades, ardia entre desastres temerosos e desolações horríveis, atestados por agentes da INTERNACIONAL!... e que eu (que não por certo faltar à sinistra balbúrdia) estava capitaneando uma tremenda insurreição de escravos! [...] Protesto, sinceramente, não só para fazer calar os meus caluniadores políticos como aos inimigos da Loja América, que não sou nem serei jamais agente ou promotor de insurreições, porque de tais desordens ou conturbações sociais não poderá provir o menor benefício à mísera escravatura e muito menos ao partido republicano, a que pertenço, cuja missão consiste, entre nós, em esclarecer o país. Se algum dia, porém, os respeitáveis juízes do Brasil, esquecidos do respeito que devem à lei, e os imprescindíveis deveres que contraíram perante a moral e a nação, corrompidas pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ʻresistênciaʼ, que é uma virtude cívica, como a sanção necessária para pôr preceito aos salteadores fidalgos, aos contrabandistas impuros, aos juízes prevaricadores e aos falsos impudicos detentores.” (grifo meu)
Jeferson De escapou das armadilhas ideológicas e não tentou transformar o imenso rábula e abolicionista Luiz Gama num militante ao estilo Black Lives Matter, mas deu vida ao republicano como ele foi: um defensor da liberdade e das leis
Luiz Gonzaga Pinto da Gama – de quem já tratei brevemente aqui, nesta Gazeta do Povo –, nascido em 21 de junho de 1830, na Freguesia de Sant’Ana, em Salvador, foi um homem extraordinário. Filho de uma africana livre, Luíza Mahin, e de um fidalgo descendente de portugueses, foi vendido, aos 10 anos de idade, como escravo, pelo próprio pai, por conta de dívidas de jogos. Mas teve a ventura de, ao ser recusado por vários compradores pelo fato de ser “baiano” – sinônimo de insurgente por conta das revoltas escravas que ocorriam por lá (como a dos Malês) –, acabou ficando em casa de seu primeiro comprador, Antônio Pereira Cardoso, em São Paulo, e lá conhecendo um estudante de Direito, o jovem Antônio Rodrigues do Prado Júnior, de quem fica amicíssimo e que o ensina a ler e escrever.
Sem nunca ter frequentado uma escola, estuda, por conta própria, as leis, e torna-se, após conseguir, misteriosamente, documentos que provavam sua condição de livre e fugir, aos 17 anos, da casa de seu senhor – que, diga-se de passagem, o tratava muito bem –, um perito em Direito. Alista-se na Guarda Municipal e, depois, torna-se ordenança de um dos mais célebres paulistanos, o Conselheiro Francisco Maria de Souza Furtado Mendonça, chefe de polícia e professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que o ajuda em sua formação intelectual e jurídica. Foi ainda amanuense da Secretaria de Polícia até tornar-se poeta – com suas Trovas Burlescas de Getulino –, jornalista, advogado provisionado e ativíssimo maçom, sendo um dos fundadores da Loja América, chegando ao grau 18 do rito escocês.
O filme de Jeferson De pretende, nas pouquíssimas uma hora e meia – num instante, portanto –, dar conta do que considera essencial na vida de Luiz Gama através de seu curto e conhecido relato autobiográfico enviado, a pedido, a seu amigo Lúcio de Mendonça, em 25 de julho de 1880 –, o que é quase um pecado. Há cortes abruptos (alguns bem estranhos) e saltos cronológicos que prejudicam a construção do personagem; e muitos, muitos fatos importantes são deixados de lado – como sua grande atividade na maçonaria, tendo, inclusive, fundado uma escola de instrução primária e de adultos, com Olímpio da Paixão, e ter refletido com bastante profundidade sobre educação, sob o lema “instrução gratuita e obrigatória e liberdade de ensino”. Gama diz: “Por toda parte, onde houver uma choupana, onde houver um espírito, que haja também um livro”, pois “onde florescem a escola e a consciência livres, o despotismo é planta exótica que não medra”.
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Gama é apresentado em três momentos: em criança, com a mãe, até ser vendido como escravo; na juventude, quando conhece Antônio, aprende a ler e vai embora (sua “fuga” é muito mal apresentada); e já como advogado atuante. Os importantíssimos anos de formação e de atividade jornalística são simples e totalmente ignorados. Igualmente suprimida é sua prolífica produção poética, sendo somente mencionada en passant. Quando aparece adulto, já é advogado e logo encontra a esposa, Claudina Fortunato Sampaio, com quem teve seu único filho, Benedito Graco Pinto da Gama, a quem dedica uma carta muito especial, contendo o que seria sua filosofia de vida. Gama diz: “evitas a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos. Sê republicano, como o foi o Homem-Cristo. Faze-te artista; crê, porém, que o estudo é o melhor entretenimento, e o livro o melhor amigo. Faze-te o apóstolo do ensino, desde já. Combate com ardor o trono, a indigência e a ignorância. Trabalha por ti e com esforço inquebrantável para que este país em que nascemos, sem rei e sem escravos, se chame Estados Unidos do Brasil”. Trechos da carta são lidos no filme, adaptados (desnecessariamente, a meu ver), o que muda o contexto de algumas frases. Por exemplo: na carta, ele diz “sê cristão e filósofo”; mas no filme é dito: “seja um cristão, se quiser, mas também um filósofo”. O que justifica essa mudança do imperativo puro e simples para uma frase com uma condicional (se quiser) e uma oposição entre ser cristão e filósofo (“mas”)? Fiquei sem entender.
Gama era um cristão anticlerical, que criticava duramente a religião oficial e o contraditório escravagismo de muitas ordens religiosas. Ele afirma, numa carta a Cerqueira César, de 17 de junho de 1882 (pouco tempo antes de morrer, portanto), que “aos fiéis católicos e apostólicos romanos foi expressamente proibido ter escravos; tornou-se-lhes de todo ponto defeso a propriedade servil”. Em seguida, enumera vários documentos da Igreja, inclusive bulas papais, que condenavam a escravidão (falo sobre isso aqui). A leitura de Ernest Renan certamente o influenciou para uma visão humana de Jesus, que via como um grande mestre moral; por isso o conselho ao filho para ser como o “Homem-Cristo”. Também demonstra, em artigo de 18 de janeiro de 1868, como a verdadeira liberdade oferecida por Deus no Antigo Testamento (trato disso no primeiro artigo desta coluna) tinha sido rejeitada pela sujeição a reis humanos, fazendo jus à sua posição de antimonarquista ferrenho.
Sua intensa atividade de advogado, que libertou “em número superior a 500” de pessoas ilegalmente escravizadas (de acordo com a Lei Eusébio de Queiroz), é resumida em alguns poucos casos; mas consta sólida no último e emblemático embate do filme, num tribunal de júri popular. Sua morte, em 24 de agosto de 1882, de complicações por diabetes, e sua grandiosa repercussão – como disse um jornal, “não foi o enterramento de Luiz Gama, foi a sua festa, a sua apoteose” –, também foram deixadas de lado.
A vida de Luiz Gama, assim como a do imenso Rebouças, merece uma série. Mas o filme é muito melhor do que nada
No entanto, o filme é bom, é algo, é um começo. É o primeiro filme sobre um personagem tão emblemático, que, a exemplo de tantos outros apresentados por mim nesta coluna, serve de modelo exemplar para toda uma geração de pessoas que, acostumadas a ver negros em posições subalternas, terão a oportunidade de ver em ação um intelectual nobilíssimo como Luiz Gama. Destaque para o ator que faz Gama adulto, César Mello, está muito bem; a representação da defesa de um escravo que matara o seu senhor – justificativa para a frase que seduz liberais e revolucionários, “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa” – é maravilhosa.
Algo que me incomodou um pouco foi a leve relação da vida de Luiz Gama, através da trilha sonora, com religiões (ou pelo menos uma temática) de matriz africana. No entanto, é louvável admitir que Gama foi o primeiro homem negro a exaltar a beleza da mulher negra (“Tão formosa crioula, ou Tétis negra / Tem por olhos dois astros cintilantes”) no poema Meus Amores, e, ao transportar a mitologia grega para a África, demonstrar um grau elevadíssimo de consciência negra, em Lá vai verso: “Oh! Musa de Guiné, cor de azeviche, / Estátua de granito denegrido, / Ante quem o Leão se põe rendido, / Despido do furor de atroz braveza; / Empresta-me o cabaço d’urucungo, / Ensina-me a brandir tua marimba, / Inspira-me a ciência da candimba, / As vias me conduz d’alta grandeza”. De sua poesia, dirá Arlindo Veiga dos Santos, grande intelectual e fundador Frente Negra Brasileira:
“Herdeiro de dois sangues, dois povos de fina sensibilidade, como o português — que madrugou para o lirismo na longínqua Idade Média, com os mais suaves trovadores do provençalismo, captado pela força da fala galaico-portuguesa —, e o africano, que, no contato multissecular e multiforme com outros povos, revelou, nababescamente, uma psicologia riquíssima de vida interior, de meditação, de ‘banzo’ – chegando Jackson de Figueiredo a dizer haver sido ‘o africano que deu, sempre, a nota cristã mais profunda da nossa história’ –, manifesta-se lírica a alma bondosa de Gama, entristecendo-nos o cuidar em como a luta pela reivindicação (aliás, necessária) dos direitos humanos e cristãos do escravizado, nos roubos, em vir-a-ser uma das mais promissoras líricas do Brasil, que continuaria a tradição dos bardos da antiga Escola Mineira, onde a mesma mestiçagem fizera tamanha afirmação estética, marcando o mesmo fato na afrodescendência doadora de um Púchkin à Rússia e um Baudelaire à França”.
Apesar de ser um negro no mundo dos brancos – para usar a frase-título do livro de Florestan Fernandes –, não se esqueceu de suas origens, antes as exaltou como poucos. André Rebouças faria o mesmo com seus idílios africanos.
Na verdade sua vida, assim como a do imenso Rebouças, merece uma série. Mas o filme é muito melhor do que nada. Celebremos.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos